Ao se mencionar um vernáculo, sempre tentamos compreender sua origem etimológica, pois, assim, tenderíamos ao seu real significado e sua carga funcional diante da sociedade. Não diferente, a dignidade advém do dignitas, latim vulgar e que se deriva do dignus que significa digno, valioso, adequado, compatível com os propósitos, ainda, de acordo com o dicionário Michaelis, tem como significado a autoridade moral, honestidade, respeito a valores e sentimentos.
O conceito de dignidade da pessoa humana remonta tempos longínquos na linha da História humana. A Lei Moisaica talvez tenha sido a primeira precursora dos direitos da pessoa humana, invocando a dignidade como salvaguarda da liberdade e alegando direitos aos Povos aprisionados pelo regime faraônico, apesar de ser dificilmente encontrada a expressão “dignidade humana”, conforme Yair Lorberbaum[1], o termo “kavod” aparece na Talmude dos Hebreus centenas de vezes e suas raízes estão provavelmente na palavra “kaved” que significa substância (presença física).
Já com os pensamentos medievos de Tomás de Aquino, a dignidade humana descrita na Summa Theologiae bem evidencia o caráter indissociável do atributo dado a todo ser humano com a interleçção do mistério Divino-cristão. Com isso, inicia-se um movimento que cuida por aprofundar o que convém reconhecermos como dignidade. A teologia cristã está conectada com a dignidade humana quando reafirma o tratado bíblico que diz o homem é a imagem de Deus, dando um caráter mais preternatural ao dispositivo em comento[2] – claro que não podemos nos dissociar da questão moral à época, pois nem todos possuíam dignidade tal como afirmada pelos escolásticos e pensadores da Igreja.
Por sua vez, na Era Moderna, autores como Voltaire, Rousseau e até Kant se debruçaram a traçar o conteúdo que sintetiza ou, ao menos, indaga a questão que, por tantos anos, tornou-se tormentosa pelo simples fato de não ter havido um conceito uníssono, mas foram partes que se compunham. Podemos ver na atuação de Voltaire, o espírito de defesa aos mais necessitados. O filósofo de Paris defendeu a dignidade humana em seus aspectos formais e materiais, considerado o primeiro advogado de direitos humanos da Europa, e nisso via a dignidade, legitimidade e justiça. No entanto, foi com Immanuel Kant na sua obra Fundamentação da Metafísica dos Costumes que enlaçou o que temos hoje por definição mais fidedigna com a aplicação do instituto. Para Kant, o ser humano não poderia ser tido como meio, mas o próprio fim em si mesmo. Assim, sintetizou o seu pensamento[3]:
Pois bem, o ser humano, como natureza racional, existe como valor absoluto e fim em si e, por isso, constitui-se como a base da lei prática. O ser humano não deve, por conseguinte, absolutamente ser usado como meio, mas tão-somente como fim em si mesmo, devendo ser chamado de pessoa e não de coisa, porque, enquanto esta possui valor relativo, aquela é fim em si mesmo, possui valor absoluto e, portanto, dignidade. (2009, p. 207).
Ou seja, por ser dotado de valor (e não de preço, como as coisas), o ser humano deveria ser o ponto inicial e o final para todo e qualquer passo. Importante assinalar que, muitos anos antes da Primeira Grande Guerra (1914-1918) – que conspurcou a definição da dignidade da pessoa humana - , o filósofo de Könisgberg já sinalizava a carga semântica do que viria a ser um princípio apregoado em um sem fim de Cartas Magnas, de modo a assegurar e reafirmar o homem como o fim em si mesmo, apesar de guerras, disputas ideológicas, comerciais e toda sorte de mudança. É consabido que o significado da dignidade da pessoa humana não se limita ao campo ontológico (neste incluído o biológico).
No entanto, com os rompimentos das duas Grandes Guerras, houve por bem fazer uma releitura, de modo a alargar o alcance do princípio da dignidade da pessoa humana e, sobretudo, a sua aplicação como compromisso inarredável de confluir as ideias abduzidas em prol do ser humano. Entrementes, não há se confundir a aplicabilidade moldada aos olhos neoconstitucionalismo com a elevação de categorias graníticas ou absolutista. É fato que a dignidade da pessoa humana, como alicerce fundamental da Carta da República Federativa do Brasil de 1988, não é princípio absoluto no ordenamento jurídico.
No pós-segunda guerra, tendo em vista a releitura do princípio da dignidade da pessoa humana, muitos anos imergiram em todos os aspectos evidenciais do propósito deste supedâneo, notadamente como assinalada Jorge Pereira da Silva, citando Canotilho e Jorge Miranda[4]:
A ideia de dignidade da pessoa humana corresponde, certamente, ao mais importante conceito da gramática dos direitos fundamentais e, em geral, do constitucionalismo posterior à Segunda Guerra Mundial. [...] fornece a base para os direitos em geral, no sentido de que disponibiliza um argumento-chave para explicar por que razão os homens devem ter direitos.
O primeiro documento marcante, pós o Holocausto, que trouxe a dignidade considerada em si mesma foi a Carta da São Francisco, de 1945, por ocasião da Conferência Internacional das Nações Unidas, que evoca no seu preâmbulo, a dignidade e o valor do ser humano. Muito embora, a Declaração Universal de Direitos Humanos seja não vinculatória, ou seja, soft law para o Direito Internacional Público, indubitavelmente é farol reluzente para as Cartas Magnas posteriores. Além de criar costume internacional que, se preenchido os requisitos legais, torna-se-á norma hard law.
Fazendo uma análise nas Constituições do Brasil, podemos apontar categoricamente que o princípio da dignidade da pessoa humana nunca fora antes erigido a uma carga axiológica tão efusiva quanto ao que fora dado pelo Poder Constituinte Originário de 1988, colocando-o como princípio fundante da República. Também é fato que o mesmo Poder não trouxe um status supraconstitucional ao demandado princípio. O entendimento é de que, diante da pulverização dos temas constitucionais, dos princípios de Direitos Humanos assumidos pelo Brasil em pactos internacionais, da máxima efetividade da constituição, do modo a não relegá-la à ineficácia, seria um vetor de categoria ímpar no ordenamento jurídico brasileiro. O ponto de concatenação do real significado da Carta Política no seu aspecto material e, com isso, proporcionar a efetividade do Direito vindicado. Não baste a letra da norma, tão somente. É preciso mais! É necessário o implemento das considerações hermenêuticas e as releituras da norma e do Direito – que é autopoiético, segundo Luhmann -, tendo em vista a hipercomplexidade da sociedade atual.
Aponta-se que, na Constituição de 1824, o princípio da dignidade era preordenado para o alcance pro homine de restritas pessoas, tais quais, os monarcas e familiares diretos [5]. Outrossim, nas Constituições 1934 e 1946 o incremento da dignidade era apontado sob o título da Ordem Econômica (já na de 1946, ficava na Ordem Econômica e Social), atrelando-se a um conceito indiretamente tutelado, sobressaindo a normativa de “possibilitar a todos existência digna”, mas nota-se que a incidência ficava sob o julgo da Ordem Econômica e Social. A bem da verdade, nunca se teve em toda História do Brasil, a elevação do princípio em debate a conceito com força motriz para rotacionar todo o eixo da Constituição. Tamanho a sua importância no ordenamento jurídico para dirimir as lides vindouras. No entanto, com a Constituição Cidadã, o princípio alcançou vetor essencial para a interpretação da Lex Magna.
Autores como Uadi Lammêgo Bulos, traz sob a maestria de um menestrel, citando Antonio Enrique Pérez Luño, as dimensões do princípio da dignidade da pessoa humana, como sendo: sua dimensão fundamentadora; dimensão orientadora e dimensão crítica. Ainda, elenca o princípio a exegese de decisões de importância ímpar sob o crivo do STF. A saber[6]:
O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, apresenta-se em três dimensões: 1) dimensão fundamentadora - núcleo basilar e informativo de todo o sistema jurídico-positivo; 2) dimensão orientadora – estabelece metas ou finalidades predeterminadas, que fazem ilegítima qualquer disposição normativa que persiga fins distintos, ou que obstaculize a consecução daqueles fins enunciados pelo sistema axiológico-constitucional; 3) dimensão crítica – serve de critério para aferir a legitimidade das diversas manifestações legislativas. (BULOS, 2020)
Tendo em vista o aspecto descritivo do princípio da dignidade da pessoa humana, é sobressalente que se trata de um vetor indissociável do Direito. E, apenas, com a Constituição de 1988 que chegou ao status imprescindível na operação da hermenêutica, de modo a conduzir o intérprete, seja o postulante, seja o decisor, seja qualquer ator direta ou indiretamente afetado aos ditames da Justiça.
Muito embora, não podemos entremear o princípio em debate como um instituto multifacetado e de multiuso. Não se pode descambar ao equívoco de que tudo deve ser tratado pelo viés da dignidade da pessoa humana. É consabido que a Constituição de 1988 é principiológica (embora correntes minoritárias assegurem o seu caráter preceitual), mas isso não é capaz de dizer que o prius interpretativo deva ser única e necessariamente a dignidade da pessoa humana. No próprio art. 1º, inciso V, temos o pluralismo político – que é, em última análise, o pluralismo de ideias, de opiniões, de pautas.
Nessa senda, o operador deve se preordenar pelos inenarráveis outros princípios que pautam a nossa Carta de Outubro, a depender do caso concreto, mas sem se desgarrar com a ideia de que em ricochete, a lesão e ameaça de lesão ao direito, recai, inevitavelmente, na dignidade da pessoa humana ofendida ou em vias de. Com sobriedade e clareza, o princípio da dignidade da pessoa humana serve de limitador aos excessos infundados ou às lacunas preordenadas. A ponderação servirá para sopesar o que de fato é necessário e determinante no caso concreto. Não podendo relegar tudo a uma única coisa, sob falha de esvaziamento da própria Constituição, vez que tudo seria pautado no princípio estudado.
Diante disso, a temperança é aliada na exegese. Entender o princípio da dignidade como um limitador de excessos e faltas é, primordialmente, atender a sua própria essência – não desamparar a quem de direito.
[1] Lorberbaum, Y. (2014). Human dignity in the Jewish tradition. In M. Düwell, J. Braarvig, R. Brownsword, & D. Mieth (Eds.), The Cambridge Handbook of Human Dignity: Interdisciplinary Perspectives (pp. 135-144). Cambridge: Cambridge University Press.
[2] Koulagna, Jean. (2020). La dignité humaine au coeur de la tradition biblico-chrétienne. Publié dans N. Y. Soede, P. Poucouta et L. Santedi (éds), Culture, Politique et Foi en Afrique, Abidjan, Ed.
Paulines, 2019, p. 173-186 – pas de tiré à part
[3] KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. de Guido Antônio de Almeida. São Paulo: Discurso Editorial: Barcarolla, 2009.
[4] SILVA, Jorge Pereira da. Direitos fundamentais: teoria geral – Lisboa: Universidade Católica Editora, 2018. Pág. 43.
[5] SARLET, Ingo Wolfgang. Comentário ao art. 1º, III. In. CANOTILHO, J.J. Gomes; MENDES, Gilmar Ferreira; SALERT, Ingo Wolfgang; Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo:Saraiva/Almedina, 2013, p. 123-125.
[6] BULOS, Uadi Lammegô. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Editora Saraiva, 2020.