Pode-se dizer ser crime o furto de uma caneta comum?

24/10/2020 às 22:40
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Aplicabilidade do Princípio da Bagatela nos crimes patrimoniais, notadamente o crime de Furto

Teoria do Crime

A Teoria do Crime, em sua análise majoritária, diz que para configuração de uma infração penal são necessários, dentre outros elementos: 1) tipificação, 2) ilicitude/antijuridicidade e 3) culpabilidade. Por esse prisma, só se pode dizer ser crime o fato típico, ilícito/antijurídico e culpável.

Na ausência de qualquer um desses elementos, restará não configurado o delito, gerando, por via de consequência, a absolvição do agente.

Fato típico

A tipicidade é o primeiro elemento analisado na Teoria do Crime. Ela opera na estrita relação entre o fato praticado pelo agente e o que consta no estatuto repressor (Código Penal) ou na legislação penal extravagante. É, portanto, o ato de subsunção do que ocorreu (fato) à norma penal (previsão feita pelo legislador).

A tipicidade divide-se em tipicidade formal e tipicidade material, e ambas possuem subdivisões que vão relacionar elementos necessários para que se possa reconhecer que aquele ato praticado é “típico” e, por consequência, é crime. A tipicidade formal é o perfeito encaixe da conduta na letra do dispositivo violado e a tipicidade material é a aferição da efetiva lesão ou ameaça de lesão causada pela conduta.  Para que se diga que o fato é típico, portanto, é necessário que haja tanto tipicidade formal, quanto tipicidade material, pois, se assim não o for, o fato restará “atípico”.

 Princípio da Insignificância

O princípio da Insignificância ou princípio da Bagatela (ou Teoria Bagatelar), que não possui fundamento legal expresso (não há norma posta que o preveja), é uma corrente doutrinariamente construída em âmbito do Direito Penal, principalmente palas ideias surgidas de grandes pensadores, como Claus Roxin. Tem origem normativa no brocardo de minimis non curat praetor.

Sua ideia central é dizer que um fato só possui tipicidade material se possuir verdadeira relevância. Veja-se, portanto, que esse princípio discute a ocorrência de lesão ou de ameaça de lesão que a conduta do agente causou ao bem jurídico tutelado, de forma que, se não causou, esse fato será tido como insignificante, não merecendo atenção do Direito Penal.

Em outras palavras, essa teoria diz que só se pode dizer que um fato é crime aos olhos da norma penal se esse fato tiver influído de forma relevante no mundo externo.

O núcleo dessa teoria está na demonstração da irrelevância penal do fato em âmbito penal, a fim de concluir que, ainda que o fato possua todos os elementos para configuração de um crime, ele não poderá ser tido como típico, e por via de consequência não poderá ser tratado como crime, já que falta-lhe relevância.

A jurisprudência, em especial o STF, possui requisitos genéricos para balizar o que se pode enquadrar no princípio da Bagatela ou não, quais deverão ser levados em conta na análise do caso concreto. 

Ultima ratio – Fragmentariedade do Direito Penal

O princípio da Insignificância ocorre porque o ramo do Direito Penal é tido como a ultima ratio do Direito – algo como “a última instância do Direito”. Isso quer dizer que um fato só deve chegar às discussões da seara criminal se ele não puder, de forma eficaz e absoluta, ser resolvido nas demais áreas de abrangência do Direito, como o Direito Civil, o Direito do Trabalho, o Direito Empresarial etc.

Essa construção advém da ideia de que o Estado deve exercer o mínimo possível de interferência na vida das pessoas quando o que está em jogo é a liberdade (direito de ir e vir), um dos princípios basilares das garantias fundamentais humanas. Diante disso, a seara penal – em regra o único ramo através do qual o Estado pode “privar” a liberdade de alguém – deve se preocupar apenas com as causas mais sérias e que não possam, de outra forma, ter uma solução plausível por meio de outras áreas do Direito – como é o caso de um assassinato (crime de Homicídio), por exemplo.

Outro fundamento para essa teoria é que não é razoável movimentar todo o organismo estatal para apurar situações de cunho proporcionalmente irrelevante, quando o Estado poderia estar se dedicando a apurar causas mais sérias, cujas condutas realmente lesionem ou ameacem lesionar bens jurídicos de forma relevante – ou seja, condutas contundentes.

O furto da caneta

Imagine agora a seguinte situação: ao iniciar uma prova escrita de um concurso público, João percebe que esqueceu sua caneta em casa; nervoso, João, então, olha para o lado e vê que Maria, que acabou indo ao banheiro antes da avaliação, possui mais de uma caneta e, por isso, resolve pegá-la para si para fazer a prova; após o ocorrido, tendo constatado que a caneta encontra-se com João, Maria promove o registro policial da ocorrência contra João.

Cogita-se: em tese, foi configurado algum crime na situação hipotética?

Sim, em regra João cometeu o crime de Furto, previsto no art. 155 do Código Penal - CP: subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel - reclusão, de um a quatro anos, e multa.

Como houve o encaixe da conduta no tipo penal previsto no CP (Furto), diz-se que a conduta é formalmente típica.

Ocorre que, na ação descrita, restou ausente a tipicidade material, justamente por conta do Princípio da Insignificância acima debatido. Considerando a ínfima lesividade efetiva/concreta causada ao bem jurídico tutelado (patrimônio), em tese o ato praticado por João não há de ser tido como crime, cabendo a outras searas tratar da questão.

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Então não haverá nenhuma reprimenda ao furtador?

Não é bem assim. O que foi dito é que a conduta criminal é que restará não configurada, mas isso não impede que o fato seja eventualmente apurado, por exemplo, em âmbito do Direito Civil, por meio de uma ação reparatória que vise a devolução pecuniária equivalente ao objeto furtado.

A Teoria Bagatelar não converte a conduta criminosa em insignificante jurídico, mas sim em insignificante penal, afastando a discussão dos fatos apenas em meio ao ramo do Direito Penal, com a ideia de que este deve se concentrar em delitos dotados de maior relevância.

Absolvição

Ao construir o raciocínio de que faltou no fato a tipicidade material, e por consequência restou ausente a própria tipicidade como um todo, ensejando a não configuração de crime, o pleito defensivo deverá ser a absolvição do réu, com base no inciso III, do art. 386, do Código de Processo Penal – CPP.

Sobre o autor
Gustavo Carvalho

Graduado em Direito pela Faculdade de Direito de Itu - FADITU e Pós-Graduado em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC/MG - Assessor Jurídico e Advogado Contencioso - garantista por natureza

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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