Os valores redimensionados do Direito Contemporâneo

25/10/2020 às 18:07
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Vivenciamos um período pós-positivista vivenciado pelos Estados e de Constituições comprometidas e transformadoras que asseguram direitos fundamentais sociais, e deslocou-se para o Judiciário.

Vivenciamos um período pós-positivista[1] vivenciado pelos Estados e de Constituições comprometidas e transformadoras que asseguram direitos fundamentais sociais, e deslocou-se para o Judiciário a questão sobre as condições interpretativas que se propõem a encontrar a reposta adequada à Constituição acerca de demandas não satisfeitas pelos Poderes Legislativo e Executivo.

 

Devido a previsão de grande número de direitos e a possibilidade de enquadrá-los como fundamentais, resultou-se na indeterminabilidade do Direito e na ineficácia das normas constitucionais.

 

No cenário das condições interpretativas da norma jurídica, é curial observar e analisar a relação entre hermenêutica e ideologia e, desta última, a função integradora valorativa utilizada pelos intérpretes do Direito, que serve de sistema neutralizador de valores.

 

Sob o prisma ideológico, crê-se que a existência de lacuna na norma jurídica ocorre quando há uma subversão na expectativa dos valores já instituídos na sociedade e, que a colmatação desta lacuna se dará através de decisões dos juízes, que inspirados em considerações fundadas em avaliações ideológicas usarão de orientações gerais para sanar os casos concretos.

 

Estas orientações gerais servirão de base para o ato de interpretar a norma jurídica, apresentado por Gadamer em sua teoria do círculo hermenêutico[2], como apenas o explicitar de algo já compreendido previamente em razão do modo de ser no mundo do intérprete.

 

Diante do quadro dinâmico da ideologia e das normas que regulam determinada sociedade e também a pré-compreensão do intérprete eivada de fundamentos da ideologia valorativa, pretende-se abordar rapidamente a estrutura e o sistema de valoração ideológica usado por juízes na colmatação das lacunas da norma jurídica e no redimensionamento valorativo do Direito.

 

Ao abordar a ideologia, se faz de forma afastar-se o sentido negativo e desvinculado do estudo científico das ideias, originariamente depreciado por Napoleão em suas críticas aos ideais intelectuais liberais do Instituto da França que ameaçavam seu poder. Procura-se a ideologia como meio de compreensão da estrutura do pensamento e ideias e, como esta pode delimitar o âmbito axiológico que prescinde as decisões do Judiciário.

 

A ideologia tem forte influência no sistema jurídico e reflete o problema do preenchimento de lacunas. A compreensão desta relação se inicia coma análise ontológica do conceito de norma e valor.

 

Nesta ótica, considera-se a norma jurídica um ser, uma realidade, e o valor uma qualidade atribuída a ela, seria um dever ser. A integração da qualidade do dever-ser atribuída à norma e ao fato possibilita a elaboração da norma. Nesta integração de fato e valor à norma, Maria Helena Diniz (1997) destaca a função do elaborador da norma.

 

O elaborador da norma é razão do dever-ser, é o elemento de referência, a medida para determinação de valores, pois é ele que dá valor às normas. A autoridade que elabora as normas assume uma atitude de quem relaciona fatos e valores, sem, contudo, valorar os fatos; não lhes interessa saber qual o valor determinado. Sua função não é estimar, positiva ou negativamente, a norma de direito, mas a relacionar a fatos e a valores, dando-lhe um sentido, sem lhe atribuir um valor.

 

Afinal, o sentido da norma destina-se a explicitar seu objetivo de existência, qual seja o de ser instrumento dirigido à liberdade humana e à realização da justiça. A questão da justiça adiciona a estrutura da norma por dupla relatividade expressa por processos seletivos responsáveis pela concretização de valores, que são: o campo valorativo e programa valorativo.

 

Tércio Sampaio Ferraz Junior explica o conceito de cada processo.

O primeiro dimensiona a possibilidade fática de realização do conteúdo axiológico da norma, ou seja, ocorrendo determinado comportamento, este será justificado por um valor determinável ou determinado.

 

Em outras palavras, um comportamento (ou conjunto deles) tido como invariante é recepcionado pela dimensão axiológica do direito, se justificado por um valor.  Sua função por este motivo é de seleção externa e justificadora.

 

O segundo modifica e de- marca a realidade, ou seja, fixa diretrizes sobre um dado. Neste processo já existe um valor invariante, que servirá de base para criação de critérios de seleção de comportamentos. Sua função por este motivo é de seleção interna e modificadora.

 

Acontece que em casos concretos, para além dos processos seletivos (programa-campo valorativo) o sistema jurídico deve proceder a uma simplificação, ou neutralização de valores por meio da ideologia.

 

Acredita-se, também, na ideologia como um sistema estabilizador e encobridor de valores nas correntes doutrinárias de fundamentação, nas instâncias institucionalizadas e nos setores dogmáticos de experiência jurídica.

 

Confirmada a tese de que todo sistema jurídico está imbuído de ideologia, e partindo da premissa de que o juiz está condicionado a prévia escolha axiológica na tomada de suas decisões, pretende-se traçar uma relação entre a pré- escolha axiológica do juiz e a pré-compreensão desenvolvida nas teses do círculo hermenêutico[3] de Heiddeger e Gadamer, para então aclarar o fundamento das decisões judiciais.

 

A principal crítica feita por Heiddeger e Gadamer no início do século XX foi em relação ao processo interpretativo clássico que definia a interpretação como resultado de processo fracionado em partes, em que o primeiro se compreende, depois se interpretar e, para finalmente, se aplicar.

 

Gadamer, em oposição a este fracionamento atribui ao ato de interpretar fundamentos da hermenêutica filosófica, estes por sua vez influenciados pelos teoremas de Heiddeger: o círculo hermenêutico e a diferença ontológica, explicam a interpretação sob um novo vértice.

 

O acontecer da interpretação ocorre a partir de fusão de horizontes, porque compreender é sempre o processo de fusão dos supostos horizontes para si mesmos. Para interpretar, necessitamos compreender, e para tanto, temos que ter uma pré-compreensão, constituída de estrutura prévia do sentido - que se funda essencialmente em uma posição prévia, visão prévia e concepção prévia.

 

A proposta de virada linguística ontológica é de não condicionar o ato interpretativo aos métodos e procedimentos, mas sim, compreendê-lo à luz da fenomenologia do conhecimento, produto de uma estrutura prévia de sentido das coisas.

 

A estrutura circular de Heiddeger como forma de realização da própria interpretação compreensiva e, não de sua práxis. O que significa afirmar que a aplicação do método ocorre depois da compreensão, pois conforme afirma

 

Lenio Streck, o método (o procedimento discursivo) sempre chega tardiamente, porque pressupõe saberes teóricos separados da realidade. Pois antes de argumentar, o intérprete já compreendeu. A compreensão é condição de possibilidade.

 

A ideologia fixa a norma positivada, dando-lhe um cerne axiológico indisputável, de modo que ela não possa ser questionada, permitindo-se apenas sua discussão técnico-instrumental, pois a ideologia manifesta sua superioridade valoradora, ao eliminar, de modo artificial, outras possibilidades (DINIZ, 1997, p. 284).

 

Lenio Luiz Streck (2007) explica a relação da compreensão com o estabelecimento da norma:

 

“Estamos condenados a interpretar. O horizonte de sentido nos é dado pela compreensão que temos de algo. Compreender é um existencial, que é uma categoria pela qual o homem se constitui.  A facticidade, a possibilidade e a compreensão são alguns desses existenciais. É no nosso modo da compreensão como ser no mundo que exsurgirá a “norma” produto da “síntese hermenêutica”, que se dá a partir da facticidade e historicidade do intérprete (STRECK, 2007, p. 32)”.

 

Em suma a relação entre a pré-compreensão do círculo hermenêutico de Gadamer[4] e a prévia escolha axiológica do juiz é verificada nos limites impostos pela valoração ideológica e também pela compreensão do modo de ser no mundo do interprete no momento do preenchimento de lacunas.

 

Cabe ainda elucidar um último ponto comum entre a pré-compreensão e a prévia escolha do juiz, que é o de fixar a norma. Sobre a valoração ideológica a qual está imbuído o juiz em sua prévia escolha, visualiza-se o caráter imperativo da norma.

 

Este controlador e impositor de comportamento fixa a relação autoridade/sujeito, e conforme Tércio Sampaio Ferraz Júnior (2006, p.156), “torna rígida a relação estabelecida, dando-lhe os limites de variação, mas garantindo-a contra eventuais desqualificações, mesmo à custa de uma coerência lógica”.

 

O conceito de lacuna decorrente da subversão de expectativas ideológicas abre a possibilidade de um redimensionamento valorativo no sentido dado às normas jurídicas, pois como visto no decorrer do trabalho o juiz está condicionado a uma prévia escolha axiológica e também a uma pré-compreensão ou antecipação de sentido, exsurgida do seu modo de ser no mundo.

 

Todo o percurso deste trabalho apresentou os limites delimitadores das decisões judiciárias diante de situações que a simples norma positivada não encontra resposta.

 

Demonstrou-se, inclusive, que a colmatação de lacunas resulta no redimensionamento das expectativas ideológicas, deveras importante para o acompanhamento da dinamicidade dos comportamentos sociais e do próprio Direito.

 

A intenção de identificar similaridades entre os conceitos da prévia escolha axiológica do juiz e da pré-compreensão desenvolvida no círculo hermenêutico de

 

Gadamer encontrou êxito quando se consideram ambos como fenômenos do conhecimento, limitados pela facticidade e historicidade do intérprete, e explicados pela hermenêutica filosófica de Heiddeger e Gadamer.

 

Entende-se, dessa maneira, a dificuldade de desvincular a pré-compreensão do juiz no preenchimento da lacuna[5], e também de dissociar a hermenêutica jurídica da hermenêutica filosófica, se for considerado que a valoração ideológica como integradora do Direito e a interpretação como mera explicitação do que já foi previamente compreendido.

 

No que se refere ao conceito explanado de interpretação e a proximidade entre ideologia e hermenêutica jurídica, afinal, resta a seguinte reflexão: o que é uma ideia senão um pensamento. E que é o pensamento senão uma compreensão. E o que é a compreensão senão aquilo que se apreende do modo de ser no mundo.

 

O contrato pautado na boa-fé objetiva e passível de rebus sic stantibus, a tutela penal do meio ambiente, direito fundamental à reparação de danos (morais e materiais), o direito fundamental à moradia e a garantia de crescimento sustentável das cidades, a informação ao consumidor quanto os organismo geneticamente modificados, a garantia da dignidade da pessoa humana e, ainda, o desenvolvimento sustentável a partir da cooperação internacional. O direito à opção sexual diferenciada, a família sob outros moldes além dos previstos tradicionalmente.

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O reconhecimento do afeto como valor jurídico impregnado de natureza constitucional: um novo paradigma que informa e inspira a formulação do próprio conceito de família.

 

A proteção das minorias e dos grupos vulneráveis qualifica-se como fundamento imprescindível à plena legitimação material do Estado Democrático de Direito. – Incumbe, por isso mesmo, ao Supremo Tribunal Federal, em sua condição institucional de guarda da Constituição (o que lhe confere “o monopólio da última palavra” em matéria de interpretação constitucional), desempenhar função contramajoritária, em ordem a dispensar efetiva proteção às minorias contra eventuais excessos (ou omissões) da maioria, eis que ninguém se sobrepõe, nem mesmo os grupos majoritários, à autoridade hierárquico-normativa e aos princípios superiores consagrados na Lei Fundamental do Estado. Precedentes. Doutrina” (BRASIL, 2011, p. 1).

 

Esses são basicamente os valores redimensionados pelo direito contemporâneo, mas não se esgotam nesse pequeno rol.

 

 

Referências:

 

BRASIL, Deilton Ribeiro; RIBEIRO, Luiz Gustavo Gonçalves; FREITAS, Sérgio Henriques Zandona. Temas de Direito Contemporâneo. Segunda Edição. Maringá- PR: Editora IDDM, 2018.

DINIZ, M. H. As Lacunas no Direito. São Paulo: Saraiva, 1997.

DUARTE, Hugo Garcez. Os fundamentos do direito no regime contemporâneo. Disponível em: https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-160/os-fundamentos-do-direito-no-regime-contemporaneo/  Acesso em 30.8.2020.

FERRAZ JR, Tércio Sampaio. Rigidez teleológica e flexibilidade valorativa, in Filosofia II – Anais do VIII Congresso Interamericano de Filosofia, p. 242-243.

______. Teoria da Norma Jurídica: ensaio da pragmática da comunicação normativa. Rio de Janeiro: Forense, 2006.

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método / Hans-Georg Gadamer; tradução de Flávio Paulo Meurer. - Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.

LEITE, Gisele. Direito Contemporâneo e principiologia jurídica. Disponível em: https://www.jornaljurid.com.br/colunas/gisele-leite/direito-contemporaneo-e-a-principiologia-juridica Acesso em 30.8.2020.

MANTZAVINOS, Chrysostomos. O Círculo hermenêutico. Que problema é este? Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/ts/v26n2/v26n2a04.pdf Acesso em 30.8.2020.

SAMPAIO DA SILVA, Rui. O círculo hermenêutico e a distinção entre ciências humanas e ciências naturais. Disponível em:  https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/5059156/mod_folder/content/0/Filosofia%20da%20Ci%C3%AAncia/O%20c%C3%ADrculo%20hermen%C3%AAutico%20e%20a%20distin%C3%A7%C3%A3o%20entre%20ci%C3%AAncias%20humanas%20e%20ci%C3%AAncias%20naturais.pdf?forcedownload=1 . Acesso em 30.8.2020.

STRECK, Lenio Luiz. Bases para a compreensão da hermenêutica jurídica em tempos de superação do esquema sujeito-objeto. Revista Sequência, no54, p. 29-46, jul. 2007.

______. Verdade e Consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas: da possibilidade à necessidade de respostas corretas em Direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

ZANIN, Caroline Prado. A hermenêutica de Hans-Georg Gadamer. Disponível em: https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-80/a-hermeneutica-de-hans-georg-gadamer/ Acesso em 30.8.2020.

 

 

 

 


[1] Identificado o problema da validade formal bem como o exercício do poder discricionário do julgador no Positivismo Jurídico, o que gerava arbitrariedades, ao final do século XX, vislumbrou-se a necessidade da elaboração de uma teoria que demonstrasse qual deva ser o conteúdo legítimo do direito de modo que não haja a imposição de visões de mundo, fazendo surgir, então, o Pós-positivismo Jurídico, no qual pode-se alocar Ronald Dworkin e Robert Alexy, os quais apresentam interessante solução para o problema da conciliação entre a legalidade e a legitimidade no direito, por meio da análise dos princípios e regras como espécies de normas jurídicas.

[2] Da obra de Gadamer extraímos o que chamou de círculo hermenêutico: o ato de interpretar se inicia com conceito prévios carregados pelo intérprete ao longo de sua história, que são substituídos paulatinamente por conceitos diversos com maior grau de adequação.

[3] O círculo hermenêutico é concebido, tipicamente, ou como um problema ontológico ou como um problema lógico, e é analisado em função dessas concepções. Mas cabe indagar se o fenômeno ao qual os hermeneutas se referem e caracterizam como o “círculo da compreensão” não é, afinal, um problema empírico. Com isso quero dizer que o movimento da compreensão do todo para a parte e de volta ao todo seria uma operação mental suscetível de ser analisada com as ferramentas da ciência empírica.

Nesse caso, o círculo da compreensão não teria nenhum vínculo com a ontologia ou com a lógica, mas com a representação do conhecimento na mente do intérprete, apresentando o seguinte tipo de problema empírico: como o sistema cognitivo do intérprete percebe, classifica e compreende os sinais escritos? Essa operação mental está automatizada? Que tipo de mecanismo cognitivo é ativado para que o significado da parte de uma expressão escrita só seja acessível ao intérprete em relação ao todo e vice-versa?

[4] “O círculo serve, em realidade, como uma metáfora que viabiliza a descrição da compreensão que se dá, como num jogo, em que há o intercâmbio entre o movimento da tradição e o movimento do intérprete. Constata-se a partir dele que há uma antecipação de sentido que guia, por exemplo, a interpretação de um texto, a qual não é um ato da subjetividade, já que se determina a partir da comunhão que nos une com a tradição.

[5] Hart assevera a existência de uma margem, ou seja, como Kelsen, admite espaços deixados em aberto para que o aplicador do direito busque a melhor forma de julgar determinado caso: “Se o mundo no qual vivemos tivesse apenas um número finito de características, e estas, juntamente com todas as formas sob as quais podem se combinar, fossem conhecidas por nós, poderíamos então prever de antemão todas as possibilidades.

Poderíamos criar normas cuja aplicação a casos particulares nunca exigiria uma escolha adicional. Poder-se-ia tudo saber e, como tudo seria conhecido, algo poderia ser feito em relação a todas as coisas e especificado antecipadamente por uma norma. Esse seria um mundo adequado a uma jurisprudência “mecânica”. Esse não é, evidentemente, o nosso mundo; os legisladores humanos não podem ter o conhecimento de todas as combinações possíveis de circunstâncias que o futuro pode trazer […]” (HART, 2009, p. 166-167).

Sobre a autora
Gisele Leite

Gisele Leite, professora universitária há quatro décadas. Mestre e Doutora em Direito. Mestre em Filosofia. Pesquisadora-Chefe do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Possui 29 obras jurídicas publicadas. Articulista e colunista dos sites e das revistas jurídicas como Jurid, Portal Investidura, Lex Magister, Revista Síntese, Revista Jures, JusBrasil e Jus.com.br, Editora Plenum e Ucho.Info.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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