A possibilidade de acumulação de cargos públicos à luz da Constituição brasileira

O princípio da supremacia constitucional e o parecer GQ 145/98

26/10/2020 às 05:22

Resumo:


  • A acumulação de cargos públicos é um tema atual e relevante, com destaque para a desorganização da legislação vigente sobre o assunto.

  • O Parecer GQ 145/98, revogado posteriormente, estabeleceu limitações à acumulação de cargos públicos, como a restrição de 60 horas semanais de trabalho para servidores com duplo vínculo.

  • A inconstitucionalidade do Parecer GQ 145/98 foi evidenciada em relação ao princípio da Supremacia Constitucional, que destaca a superioridade da Constituição Federal sobre as demais normas do ordenamento jurídico.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

O presente artigo procura abordar os aspectos gerais da vedação à acumulação de cargos públicos frente ao princípio da Supremacia Constitucional e ao Parecer GQ 145/98 da Advocacia Geral da União - AGU.

A acumulação de cargos públicos é um tópico atual e necessário, visto a desorganização da legislação atual acerca deste. Existe a positivação constitucional que esclarece regras de forma clara e abrangente, porém a legislação infraconstitucional (em evidência, o Parecer GQ 145/98, atualmente revogado) ofende de forma muito óbvia a Carta Magna Brasileira, causando confusão e muitas discussões sobre o assunto.

A intenção do Parecer GQ 145/98 foi preencher uma suposta lacuna deixada na legislação suprema vigente; tratando sobre a acumulação de cargos públicos, expressou que esta é vedada (com exceção dos casos específicos nos quais a lei permite), salvo no caso de compatibilidade de horário entre os cargos e limite subsidiário.

Tomando por exemplo a compatibilidade de horários mencionada acima, o Parecer criou uma limitação de 60 horas semanais nos casos de duplo vínculo de servidores à administração pública. Tal limitação, como foi demonstrado supra, é inconstitucional; o Parecer não seria instrumento capaz de editar ou emendar assunto tratado pela Constituição Federal Brasileira.

A superioridade constitucional que o presente trabalho procurou demonstrar não permite que situações como esta (a que este parecer submeteu a administração pública) passem incólumes pelo ordenamento jurídico brasileiro, sem a devida análise e correção. A Carta Magna que rege o país foi concebida com o intuito de garantir que os órgãos e agentes públicos brasileiros funcionem de forma eficiente, ordenada e legal, de forma que o serviço prestado à situação seja o melhor possível. Isso se torna impraticável de se realizar quando o próprio sistema normativo brasileiro contraria o texto da Lei Fundamental.

Assim, a intenção do estudo é explicar o instituto da acumulação de cargos públicos, seus requisitos e limitações, à luz do princípio da Supremacia Constitucional, e demonstrar de que forma o Parecer GQ 145/98 da AGU ofendeu esse princípio, sendo inconstitucional e, com razão, submetido à reanálise.

2. A CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA: SEGURANÇA JURÍDICA ADVINDA DOS PRINCÍPIOS NORTEADORES

2.1 A Carta Magna na hierarquia das normas

A Constituição Federal Brasileira de 1988 é a lei suprema do Brasil. Segundo Goffredo Telles Junior (2009, p. 123), ela é uma lei soberana que predomina sobre todas as demais leis, prevalece sobre todos os imperativos autorizantes e que nenhum mandamento pode contrariar validamente; ou seja, a Constituição é o ápice do ordenamento jurídico do país onde foi promulgada, e é dotada de superioridade em relação às demais normas do referido ordenamento. Desta forma, não pode ser contrariada por leis tratadas como “infraconstitucionais”, que, por sua vez, deverão estar de acordo com a Lei Fundamental.

Sobre a hierarquia no sistema normativo supracitado, faz-se mister citar o jurista austríaco Hans Kelsen, que defendeu a superioridade da Constituição de um país em relação às demais leis do dito local. Segundo sua teoria, existiria uma dualidade entre a Norma superior (fundamento) e norma inferior (fundada), sendo a primeira a Magna Carta e a segunda as leis abaixo desta. É fácil deduzir dessa explicação que a Lei Suprema é o norte e fundamento de validade das normas chamadas infraconstitucionais, e que cada nova norma que surge vem desta anterior, que lhe concede validade.

 Importante também ressaltar que, dado o caráter altivo e basilar do texto constitucional, este não poderá ser alterado, reescrito ou editado da mesma forma que as demais leis chamadas constitucionais; por ser a lei de maior importância do ornamento, esta não poderá ser equiparada com as demais leis do sistema normativo, tendo um procedimento específico para ser tratada, reexaminada ou alterada.

A característica que define a impossibilidade de mudança do texto constitucional de forma diversa ao rito solene definido por lei é o seu caráter rígido. Uma Constituição diz-se rígida quando depende do rito solene e especial para ser alterada, ou seja, não existe possibilidade de ser modificada da mesma maneira qe as leis ordinárias.

A importância da necessidade de rito solene provindo de lei para que exista possibilidade de alteração ou emenda à constituição dá-se ao fato de existir a obrigação da segurança jurídica no sistema normativo. A Segurança Jurídica é um princípio-norma constitucional vital para as relações jurídicas, visto que concede estabilidade para estas.

Sobre o assunto, faz-se importante citar José Afonso da Silva:

“a segurança jurídica consiste no ‘conjunto de condições que tornam possível às pessoas o conhecimento antecipado e reflexivo das consequências diretas de seus atos e de seus fatos à luz da liberdade reconhecida’. Uma importante condição da segurança jurídica está na relativa certeza que os indivíduos têm de que as relações realizadas sob o império de uma norma devem perdurar ainda quando tal norma seja substituída” (SILVA, J., 2006, p. 133).

As relações jurídicas devem inspirar confiança nas partes para que haja eficicácia e organização. Se as normas jurídicas pudessem ser facilmente alteradas de forma cotidiana, o sistema jurídico colapsaria, pois não existiria o respeito da população às normas e a administração pública, levando o Estado a um estágio de anarquia. Por esse motivo é tão importante o rito solene necessário para alterar o texto constitucional; para que não haja arbitrariedade e desordem. Assim, pode-se afirmar que a rigidez constitucional confere à Magna Carta a segurança jurídica necessária para se manter eficiente.

2.2 Princípios constitucionais: a Supremacia Constitucional

Os princípios constitucionais são os valores basilares que norteiam a Constituição Federal Brasileira, protegendo suas atribuições. Não se encontram todos positivados no texto escrito, mas atribuem carga valorativa a cada norma preconizada na Carta Maior. Por se introduzirem de forma abstrata (em algumas ocasiões, também de forma positivada) no ordenamento jurídico, abrangem todo o sistema, possibilitando a resolução de casos concretos por dar os meios de resolução destes. Um exemplo de princípio constitucional já foi mencionado, o da Segurança Jurídica.

Um dos princípios constitucionais mais importantes do sistema normativo constitucional e que se faz essencial para o presente estudo é o Princípio da Supremacia Constitucional. Este pode ser definido em como a Constituição Federal Brasileira está no topo da hierarquia das normas, ou seja, está acima das demais leis do sistema normativo do Brasil, como já explicitado acima.

Sobre o Princípio, lecionam Wolfgang, Marioni e Mitidiero (2017, p. 240):

O Princípio da supremacia da constituição significa que a constituição e, em especial, os direitos fundamentais nela consagrados situam-se no topo da hierarquia do sistema normativo, de tal sorte que todos os demais atos normativos, assim como os atos do Poder Executivo e do Poder Judiciário (mas também e de certo modo todo e qualquer ato jurídico), devem ter como critério de medida a constituição e os direitos fundamentais.

Como já mencionado, a consequência da rigidez da Constituição Brasileira é a imutabilidade das leis constitucionais (que não podem ser alteradas da mesma forma que acontece com as normas infraconstitucionais). A importância da rigidez se dá pelo fato de garantir que a lei maior do Brasil não seja equiparada com as leis abaixo desta, de forma a priorizar e manter o texto constitucional no topo do sistema hierárquico normativo.

3. A QUESTÃO DA ACUMULAÇÃO DE CARGOS: CONCEITO E LEGALIDADE

Mattos (2010, p.828) manifestou-se acerca da acumulação de cargos públicos no seguinte sentido: “acumulação de cargos é a possibilidade de duas situações jurídicas concomitantes do servidor (vínculo) perante o Poder Público”. Por conseguinte, a acumulação de cargos públicos é nada mais que o direito do servidor de possuir duplo vínculo com a Administração Pública , nas hipóteses permitidas em lei.”

A Constituição Federal de 1988 dispôs sobre o assunto em seu artigo 37, in verbis:

“Art. 37, XVI – é vedada a acumulação remunerada de cargos públicos, exceto, quando houver compatibilidade de horários, observado em qualquer caso o disposto no inciso XI. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
a) a de dois cargos de professor; (Incluída pela Emenda Constitucional no 19, de 1998)
b) a de um cargo de professor com outro, técnico ou científico; (Incluída pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
c) a de dois cargos ou empregos privativos de profissionais de saúde, com profissões regulamentadas; (Redação dada pela Emenda Constitucional no 34, de 2001)”.

Isto posto, fora as hipóteses onde a natureza dos cargos permite a acumulação, existe apenas a exigência da compatibilidadede de horários, visto que é impossível um servidor exercer concomitamente duas funções de forma simultânea. Portanto, faz-se necessária a compatibilidade de horários de ambas os cargos em exercício. Além disso, é exigida a limitação quanto à remuneração e o subsídio, conforme inciso XVI do artigo

37 da CF, in verbis:

XI - a remuneração e o subsídio dos ocupantes de cargos, funções e empregos públicos da administração direta, autárquica e fundacional, dos membros de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, dos detentores de mandato eletivo e dos demais agentes políticos e os proventos, pensões ou outra espécie remuneratória, percebidos cumulativamente ou não, incluídas as vantagens pessoais ou de qualquer outra natureza, não poderão exceder o subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, aplicando-se como limite, nos Municípios, o subsídio do Prefeito, e nos Estados e no Distrito Federal, o subsídio mensal do Governador no âmbito do Poder Executivo, o subsídio dos Deputados Estaduais e Distritais no âmbito do Poder Legislativo e o subsídio dos Desembargadores do Tribunal de Justiça, limitado a noventa inteiros e vinte e cinco centésimos por cento do subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, no âmbito do Poder Judiciário, aplicável este limite aos membros do Ministério Público, aos Procuradores e aos Defensores Públicos.

Ou seja,  na acumulação de cargos públicos, no que concerne ao subsídio vindo do duplo vínculo, este não poderá ultrapassar o subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal.

Também é importante ressaltar que, de acordo com Gasparini (2012, p. 241), a acumulação de provento com vencimento é permitida. “Assim, o servidor recebe vencimentos pelo regime estatutário e proventos pelo regime celetista”.

A Constituição Federal se preocupou em lecionar sobre o assunto para inibir abusos na administração pública. É importante obedecer aos princípios admninistrativos, a eficiência e a moralidade do serviço público para que exista um equilíbrio na sociedade Brasileira como um todo, em conformidade com seu ordenamento jurídico.

3.1 Alguns exemplos de acumulação de cargos 

3.1.1 Atividade docente

A permissividade da acumulação de cargos públicos por professores está positivada no art.37, XVI, alíneas a e b, abaixo citado:

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Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
XVI - é vedada a acumulação remunerada de cargos públicos, exceto, quando houver compatibilidade de horários, observado em qualquer caso o disposto no inciso XI: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
a) a de dois cargos de professor; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
b) a de um cargo de professor com outro técnico ou científico; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)

A intenção do legislador ao permitir este duplo vínculo permitido em ambas as ocasiões se deu pelo fato da baixa remuneração do profissional de educação no país, onde é uma profissão ainda muito desvalorizada, e também garantir o aproveitamento do profissional em mais de uma instituição educacional brasileira.

 Ocorre em casos de dois cargos de professor ou um cargo de professor e um de técnico científico, como já exposto no artigo em questão; importante esclarecer que não há possibilidade da acumulação de mais de dois cargos, sendo impossível a posse do profissional de magistério em três ou quatro, por exemplo.

Faz-se mister, para melhor aproveitamento do assunto, citar o entendimento do STJ sobre a definição de “cargo técnico”, que esclareceu:

“O Superior Tribunal de Justiça tem entendido que cargo técnico ou científico, para fins de acumulação de cargo de professor, nos termos do art. 37, XVI, da Lei Fundamental, é aquele para cujo exercício sejam exigidos conhecimentos técnicos específicos e habilitação legal, não necessariamente de nível superior.”

Segundo o entendimento, o cargo mencionado pela Carta Magna pode ser entendido como o cargo que exige conhecimento abrangente de natureza técnica que seja indispensável à sua atuação, não sendo exigido nível superior para tanto, como já exposto acima.

Tratando-se de limite de trabalho de horas semanais, não existe para o caso em tela, exigindo-se apenas a compatibilidade de horários para que o profissional exerça plenamente suas funções, de forma assídua.

Portanto, por se tratar de norma constitucional dotada de superioridade constitucional, como já explicado em tópicos anteriores, não há que se discutir o direito do professor de possuir duplo vínculo trabalhista em instituições educacionais, desde que o horário de ambos os cargos possam coexistir de forma a satisfazer seus afazeres de forma plena.

3.1.2 Atividades da área de saúde

Os profissionais de saúde, assim como os de magistério, foram recepcionados pela Constituição Federal em seu artigo 37, transcrito abaixo:

Art. 37, XVI -  é vedada a acumulação remunerada de cargos públicos, exceto, quando houver compatibilidade de horários, observado em qualquer caso o disposto no inciso XI:
c)  a de dois cargos ou empregos privativos de profissionais de saúde, com profissões regulamentadas;

Também como os professores, existe uma carência muito grande de profissionais da área de saúde (médicos, enfermeiros, técnicos); por isso, e também devido “a necessidade de se manter bons profissionais na medicina pública” (MAZZUOLI e ALVES, 2013) frente ao mercado brasileiro, foi permitido que se mantenham com o duplo vínculo trabalhista.

Segundo Mazzuoli e Alves, profissional de saúde pode ser definido como os que são “aqueles cujo cargo possui natureza própia, necessitando de formação em área especializada do conhecimento, dotada de método próprio de formação, o que lhe dá uma noção de cargo técnico ou científico”.

No que tange a acumulação de cargos públicos pelos trabalhadores da área de saude, houve uma mudança de entendimento do STJ quanto ao limite de horas semanais da jornada laboral desses profissionais, em sede de recurso especial.

O Recurso Especial 1.746.784 teve grande repercussão no ordenamento jurídico brasileiro. O referido documento foi submetido à análise do Supremo Tribunal de Justiça, com o fito de apontar a inconstitucionalidade da vedação ao acúmulo legal de cargos e funções púnlicas pelo Parecer GQ 145/98, alegando afronta ao disposto no art. 37, XVI, c , da Constituição Federal.

A Recorrente no caso em tela abordado pelo recurso é Técnica em Enfermagem, e foi impedida de assumir cargo diverso ao que ocupava na ocasião pela parte Recorrida (que usou de fundamento o parecer já mencionado acima), já que possuía uma jornada de trabalho de 30 horas e ao assumir a outra função, extrapolaria o limite de jornada laboral de 60 horas semanais estabelecida pelo parecer da Advocacia Geral da União.

Essa jurisprudência é considerada de extrema importância e sua grande repercussão se deu por alterar o entendimento do STF em relação ao parecer previamente aludido; De relatoria do ministro Og Fernandes, por unanimidade, fixou o entendimento de que a acumulação de cargos públicos de profissionais da área de saúde, prevista no artigo 37, XVI, da CF/88, não se sujeita ao limite de 60 horas semanais.

ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. SERVIDOR PÚBLICO. ACUMULAÇÃO DE CARGOS PÚBLICOS REMUNERADOS. ÁREA DA SAÚDE. LIMITAÇÃO DA CARGA HORÁRIA. IMPOSSIBILIDADE. COMPATIBILIDADE DE HORÁRIOS. REQUISITO ÚNICO. AFERIÇÃO PELA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. 1. A Primeira Seção desta Corte Superior tem reconhecido a impossibilidade de acumulação remunerada de cargos ou empregos públicos privativos de profissionais da área de saúde quando a jornada de trabalho for superior a 60 horas semanais. 2. Contudo, o Supremo Tribunal Federal, reiteradamente, posiciona-se "[...] no sentido de que a acumulação de cargos públicos de profissionais da área de saúde, prevista no art. 37, XVI, da CF/88, não se sujeita ao limite de 60 horas semanais previsto em norma infraconstitucional, pois inexiste tal requisito na Constituição Federal" (RE 1.094.802 AgR, Relator Min. Alexandre de Moraes, Primeira Turma, julgado em 11/5/2018, DJe 24/5/2018). 3. Segundo a orientação da Corte Maior, o único requisito estabelecido para a acumulação é a compatibilidade de horários no exercício das funções, cujo cumprimento deverá ser aferido pela administração pública. Precedentes. 4. Adequação do entendimento desta Corte ao posicionamento consolidado pelo Supremo Tribunal Federal sobre o tema. 5. Recurso especial provido.

Desta sorte, resta comprovado o direito do profissional de saúde possuir duplo vínculo com a administração e exercer plenamente a medicina pública, visto que, segundo a própria Carta Magna nacional, apenas se exige a compatibilidade de horários e subsídios para tanto.

3.1.2 Atividade legislativa municipal – os vereadores

Segundo Mazzuoli e Alves, a regra constitucional é no sentido de não permitir esse duplo vínculo específico (mandato eletivo com outro cargo público), para garantir o mandato efetivo e independente. Porém, existe exceção se tratando do Poder Legislativo municipal, preconizando que, havendo compatibilidade de horários, existe o direito de acumulação, de acordo com o artigo 38, abaixo transcrito:

Art. 38. Ao servidor público em exercício de mandato eletivo aplicam-se as seguintes disposições:
       I -  tratando-se de mandato eletivo federal, estadual ou distrital, ficará afastado de seu cargo, emprego ou função;
        II -  investido no mandato de Prefeito, será afastado do cargo, emprego ou função, sendo-lhe facultado optar pela sua remuneração;
        III -  investido no mandato de Vereador, havendo compatibilidade de horários, perceberá as vantagens de seu cargo, emprego ou função, sem prejuízo da remuneração do cargo eletivo, e, não havendo compatibilidade, será aplicada a norma do inciso anterior;

No caso de não existir compatibilidade de horários, o vereador ficará obrigado a se afastar da outra função, ou optar por receber remuneração apenas por um dos cargos públicos.

3.1.3 Aposentadorias

A respeito de proventos e vencimentos por servidores públicos aposentados, foi decidido pela EC nº 20 de 15.12.1998, que veio disciplinar o seguinte:

“É vedada a percepção simultânea de proventos de aposentados [...] com a remuneração de cargo, emprego ou função pública, ressalvados os cargos acumuláveis na forma desta Constituição, os cargos eletivos e os cargos em comissão declarados em lei de livre nomeação e exoneração.”

Ou seja, em que pese a vedação da permissão de duplo vínculo pelo servidor aposentado, ainda existem exceções ressalvadas na emenda constitucional para garantir a paridade da situação em tela com as outras diversas de acumulação de cargos públicos.

3.1.4 Vice-governadores e Ministros de Estado

A falta de previsão Constitucional da referida situação deixou uma grande controvérsia sobre o assunto. No caso de governador estadual, a Constituição Federal esclarece em seu artigo 26, §1º que no caso deste assumir outro cargo ou função na esfera da administração pública, perderá o mandato, ressalvada a posse em virtude de concurso público. Ora, é impossível que um servidor público possa exercer de forma satisfatória o papel de governante de Estado e de servidor ministerial, como bem coloca Mazzuoli e Alves, quando afirma que ou se governa um Estado ou se labora para o Governo Federal em ministério, não sendo crível possa um Governador exercer ambas as funções.


Isto posto, o referido artigo constitucional só dispõe sobre o duplo vínculo governador/ministro do estado, não se estendendo a hipótese do vice-governador.  Portanto, este não fica impedido de assumir cargo ministerial em razão da falta de proibição constitucional sobre o assunto. Assim, o vice-governador não perderá o mandato caso opte por assumir também um cargo de ministro estadual.

3.1.5 Atividade judicante em acumulação com a docência

De acordo com Mazzuoli e Alves, na “[...] Constituição Federal de 1988, os juízes possuem permissão constitucional expressa para acumular seu cargo com outro cargo ou função pública de magistério [...]”

Este entendimento provém do artigo 95 da Carta Magna, que prevê:

Art. 95. Os juízes gozam das seguintes garantias:
(...)
Parágrafo único. Aos juízes é vedado:
1 – exercer, ainda que em disponibilidade, outro cargo ou função, salvo uma de magistério;

Analisando o artigo, os juízes são impedidos constitucionalmente de assumir (com excessão da magistratura) outro cargo ou função pública, ficando permitido a estes o exercício regular de função em instituições ou cursos do setor privado, ficando submetido para tanto à regra da compatibilidade de horários entre ambas as ocupações.

4. O PARECER GQ 145/98: INCONSTITUCIONALIDADE FRENTE AO PRINCÍPIO DA SUPREMACIA

Expressas na Carta Magna em seu art. 37, já citado supra, existem apenas essas duas restrições em relação a acumulação de cargos públicos (compatibilidade de horários e limite do aporte), conforme exposto anteriormente; porém não existe delimitação no texto constitucional quanto a limite de horas de trabalho no caso concreto.

Como forma de suprir essa “lacuna” na Constituição brasileira, veio o parecer nº GQ – 145 da AGU, de 16 de março de 1998, que vincula a Administração Pública Federal. Sobre ele, leciona Anna Carolina Mendonça Gomes:

“Referido Parecer vinculante sustenta que embora inexista expressa disposição constitucional ou legal que imponha um limite de horas à jornada de trabalho do servidor sujeito a regime de acumulação, existiriam limitações implícitas, decorrentes da necessidade de se ofertar aos agentes públicos condições dignas para o exercício das funções que lhe são legalmente cometidas e lhes proporcionar tempo e condições de convício social, bem como garantir a eficiência laborativa.”

Ainda sobre o assunto, prevaleceu o entendimento do Supremo Tribunal Federal, no julgamento MS 19.336/DF, DJE 14/10/2014, abaixo transcrito:

“a acumulação de cargos constitui exceção, devendo ser interpretada de forma restritiva, de forma a atender ao princípio constitucional da eficiência, na medida em que o profissional da área de saúde precisa estar em boas condições físicas e mentais para bem exercer as suas atribuições, o que certamente depende de adequado descanso no intervalo entre o final de uma jornada de trabalho e o início da outra, o que é impossível em condições de sobrecarga de trabalho. Desse modo, revela-se coerente o limite de 60 (sessenta) horas semanais, fato que certamente não decorre de coincidência, mas da preocupação em se otimizarem os serviços públicos, que dependem de adequado descanso dos servidores públicos. É limitação que atende ao princípio da eficiência sem esvaziar o conteúdo do art. 37, XVI, da Constituição Federal”.

Desta forma, o Parecer limitou a sessenta horas semanais a jornada do servidor em regime de acumulação de cargos, com vistas a preservar tanto a saúde física e mental do trabalhador quanto o cumprimento efetivo de suas funções; Para isso, o legislador levou em consideração também a distância entre um local de trabalho e o outro, e também se o servidor começaria ambas as jornadas sem um período de descanso entre elas, conforme item 15 do referido Parecer:

Parecer-AGU nº GQ-145, vinculante:

 15. De maneira consentânea com o interesse público e do próprio servidor, a compatibilidade horária deve ser considerada como condição limitativa do direito subjetivo constitucional de acumular e irrestrita sua noção exclusivamente à possibilidade do desempenho de dois cargos ou empregos com observância dos respectivos horários, no tocante unicamente ao início e término dos expedientes do pessoal em regime de acumulação, de modo a não se abstrairem dos intervalos de repouso, fundamentais ao regular exercício das atribuições e do desenvolvimento e à preservação da higidez física e mental do servidor. É opinião de Cretella Júnior que essa compatibilidade "deve ser natural, normal e nunca de maneira a favorecer os interesses de quem quer acumular, em prejuízo do bom funcionamento do serviço público" (Op. cit.).

Apesar do efeito vinculante do parecer frente à Administração Pública Federal, este não foi bem recepcionado pelos Tribunais brasileiros, que não possuíam “entendimento pacífico quanto à adoção do parecer da AGU, justamente por se tratar de um parecer e não de previsão legal.” (FERREIRA e SILVA, 2017)

Dessa sorte, é também importante citar o professor Luciano Ferraz:

Esse parecer, com o devido respeito, fez uma indevida analogia entre as disposições sobre servidores públicos estatutários (não regidos pela CLT) e as regras da Consolidação das Leis do Trabalho. A CLT prevê descanso mínimo diário de 11 horas para o trabalhador (artigo 66), com uma hora de intervalo para descanso ou alimentação (artigo 71). Assim sendo, restaram 12 horas diárias de trabalho e 12 x 5 dias = 60 horas/semana.

Além da analogia apontada pelo professor Luciano Ferraz, que descreve um claro equívoco no concebimento do parecer nº GQ – 145, analisado à luz do Princípio da Supremacia, ofende a Constituição Federal Brasileira. De acordo com o ministro Barroso (2009. P. 84): A constituição é dotada de superioridade jurídica em relação a todas as normas do sistema, e, como consequência, nenhum ato jurídico pode subsistir validamente se for com ela incompatível.

Nesse contexto, dada a clara inconstitucionalidade do parecer GQ nº145/98, este  acabou sendo revogado pela AGU e enviado para o gabinete presidencial brasileiro. Se sancionado, se tornará lei.

6- CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho teve como objetivo tecer comentários acerca do instituto da acumulação de cargos públicos no cenário da administração federal brasileira.

 Essa situação foi recepcionada pela Constituição Brasileira de 1988, que vedou a possibilidade do duplo vínculo, exceto em situações previstas em seu artigo 17, inciso XVI, como nos casos de professores e profissionais de saúde.

Como complemento ao texto constitucional, foi exarado pela agu o parecer GQ 145/98, que limitou as horas semanais de trabalho a 60. Dessa forma, nos casos de acúmulo de cargos, ambos (somados) não poderiam ultrapassar esse limite.

A intenção do parecer foi tão somente garantir a eficiência da administração pública, tanto com um trabalho bem feito quanto pela saúde e disposição do servidor.

De acordo com o Princípio da Supremacia da Constituição, o referido parecer é inconstitucional; isso se dá pelo fato deste ser uma norma infraconstitucional que contraria uma da Lei Fundamental, como já explicado na pesquisa acima.

Desta forma, o objetivo da pesquisa foi traçar um raciocínio que procure explicar o porquê do parecer ofender a Magna Carga brasileira e analisar o instituto da Acumulação de Cargos Públicos sob esta ótica.

7- REFERÊNCIAS

BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: Os Conceitos Fundamentais e a Construção do Novo Modelo. 2 ed. São Paulo: Saraiva. 2010, p. 85.

BRASIL. Constituição Federal de 05 de outubro de 1988. Publicada no Diário Oficial da União em 05 de outubro de 1988. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>,

acesso em 13 mai 2019.

BRASIL. Parecer n. GQ 145 de 30 de março de 1998. Publicado no diário Oficial da União em 01 de abril de 1998. Disponível em <https://www.lexml.gov.br/urn/urn:lex:br:advocacia.geral.uniao:parecer:1998-03-16;gq-145>, acesso em 17 nov 2019.

FERRAZ, Luciano. Acumulação lícita de cargos não está limitada a 60 horas semanais. Revista Consultor Jurídico, 2019. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2019-abr-25/interesse-publico-acumulacao-licita-cargos-nao-limitada-60-horas-semanais>, acesso em 19 nov 2019.

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, Martins Fontes, São Paulo, 1987, p. 240

MATTOS, Mauro Roberto Gomes de. Administração. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva. MENDES, Gilmar Ferreira. DO NASCIMENTO, Carlos Valder do (org.).

Tratado de Direito Constitucional, v. I. São Paulo: Saraiva, 2010.

MAZZUOLI, Valerio; ALVES, Waldir. Acumulação de cargos públicos: uma questão de aplicação da Constituição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.

SARLET, Ingo; WOLFGANG, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel; Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2017

SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. São Paulo: Malheiros, 2006.

SILVA, M.; FERREIRA, D. (2017). A influência do Parecer GQ n. 145/98 da AGU nas acumulações de cargos públicos. Revista Digital De Direito Administrativo4(1), 112-130.

STJ - REsp: 1746784 PE 2018/0139716-3, Relator: Ministro OG FERNANDES, Data de Julgamento: 23/08/2018, T2 - SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe 30/08/2018

TELLES JUNIOR, Goffredo. Iniciação na Ciência do Direito, 4 ed., rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 123.

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