A JUDICIALIZAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE E O ESTADO DEMOCRÁTICO

26/10/2020 às 16:56
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O ARTIGO DISCUTE A QUESTÃO DA JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE E SEUS PONTOS FAVORÁVEIS NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO.

A JUDICIALIZAÇÃO DAS POLITICAS PÚBLICAS DE SAÚDE E O ESTADO DEMOCRÁTICO

Rogério Tadeu Romano

 

A atual Constituição chilena remonta a 1980 e, embora alterada várias vezes, é criticada por ser uma herança do regime militar de Augusto Pinochet e por dar um papel residual ao Estado na prestação de serviços básicos, o que é justamente um dos motivos dos protestos que começaram em 18 de outubro de 2019 e se estenderam até março de 2020, em um movimento que passou a ser conhecido como estallido social (ou estouro social, em tradução literal).

Esse modelo ditatorial chileno, expresso numa Constituição, não prevê que saúde, educação e previdência — os três pilares das reivindicações dos manifestantes — sejam atribuições do setor privado, "mas estabelece princípios que limitam a ação do Estado e promovem a atividade privada",

Desde o fim de 2019, o Chile tem vivido um estado de tensão social grave com manifestações ao redor de todo o país pedindo o fim do neoliberalismo, uma nova constituição, a derrubada do presidente Sebastián Piñera e diversas outras pautas.

Em razão disso, a sociedade chilena, por larga maioria, resolveu por revogar a Constituição que lhe fora dada por um governo ditatorial.

O povo chileno entendeu que deveria destruir o velho patriarcado e lutar por maior participação.

O voto popular também teve como propósito definir o mecanismo a partir do qual a nova Constituição será redigida, ou seja, através de uma convenção constitucional composta por 155 membros que serão eleitos por votação direta em 11 de abril de 2021.

Para uma boa parte dos cidadãos e das elites políticas, a Constituição de 1980 naquele país havia se tornado uma verdadeira pedra no sapato, tanto simbolicamente quanto instrumentalmente.

Simbolicamente, a Constituição atual foi escrita em meio a uma ditadura e sem a participação dos cidadãos.

A Constituição de Pinochet é hierárquica e desvincula a cidadania do poder político porque não inclui mecanismos de participação. 

Essa Constituição chilena era um consórcio instituído entre o capitalista liberal e um Estado forte, com as forças armadas como braço armado daquela forma de opção econômica, sob o respeito da classe média chilena que nela confiava.

Em 1988, o Brasil rumou para um caminho democrático ao ver promulgada a sua Constituição-cidadã.

No Brasil, o quadro instituído pela Constituição de 1988 era diverso a tal ponto a permitir a chamada judicialização dos deveres estatais quanto aos compromissos ali contidos voltados a pretensões contra o Estado para a efetivação de direitos sociais.

Alinha-se a Constituição de 1988, no Brasil, a um moderno Estado Democrático de Direito que reclama uma Democracia Participativa aberta, dentro de uma Constituição aberta a todas as instâncias de participação permanente. Fácil e ver que os esquemas político-institucionais baseados em estruturas antigas, do tipo liberal-individualista, não se adaptam às novas exigências da ordem coletiva.

O Estado tem o dever de zelar pela saúde, a educação, a segurança, o meio ambiente, pela proteção ao consumidor. Assim há dano moral coletivo em lesão a interesses difusos ou coletivos, tais como o meio ambiente, a qualidade da vida e saúde da coletividade e mesmo, no caso de consumidores. Até mesmo a edição de uma lei inconstitucional existe o dano moral que possa provir dos efeitos desse ato legislativo viciado como ensina Caio Tacito(Responsabilidade Civil do Estado por dano moral, in Revista de Direito Administrativo, n.197, Rio de Janeiro, ed. Renovar, julho – setembro de 1994).

Dir-se-á, como revela Luíza Cristina F. Frischeisen(PolíticasPúblicas – A responsabilidade do administrador e do Ministério Público, Max Limonad, 2000, pág. 146 a 150) as normas constitucionais da ordem social constitucional delimitam políticas públicas, vinculantes para o administrador, que visam o efetivo exercício dos direitos sociais para a realização dos objetivos daquela: o bem-estar social e a justiça social, sendo que o seu descumprimento gera responsabilidade para a Administração, pois tal conduta é ilegal e inconstitucional.

Parece-me, na linha de Eduardo Talamini(Tutela relativa aos deveres de fazer de não fazer – art. 461, do CPC e art. 84 do CDC) deve-se distinguir entre as hipóteses normativas constitucionais de que se extrai apenas o dever de o Estado realizar políticas públicas de caráter social e aquelas que, mais do que a imposição de diretrizes objetivas estatais, embasam verdadeiros direitos subjetivos públicos. No caso de exigência quanto a formulação de políticas públicas, dir-se-á que há restrições á tutela jurisdicional. No segundo caso, é viável o ingresso no Judiciário para a fruição completa do direito assegurado no texto constitucional.

Dir-se-á que o administrador público tem discricionariedade quanto a essa atuação.

Mas, há limites implícitos e explícitos. Tem o administrador público o dever constitucional de respeitar os limites mínimos de destinação de recursos públicos para manutenção e desenvolvimento do ensino. O não oferecimento e a oferta irregular do ensino obrigatório importam responsabilidade da autoridade competente(art. 208, § 2º, da Constituição Federal).

Dir-se-á, outrossim, que não espaço para uma política pública de alcance geral em que o objeto é indeterminado como, por exemplo, a criação de frentes de trabalho, imposição generalizada de bolsas de emprego em empresas privadas.

Diversa é a situação da ocorrência de uma grave epidemia em que se constata a omissão do Poder Público em combatê-la. Aqui não se abre qualquer discricionariedade ao Administrador na definição de prioridades ou de meios a utilizar. Há, ao invés, inequívoca violação de dever constitucional imposto, sendo caso de responsabilidade, abrindo-se ao cidadão evidente direito subjetivo público, sendo de permitir o emprego da tutela jurisdicional para constranger a Administração a efetuar programa de ação social. Tal é exigir junto ao Judiciário a implementação de política pública, refletindo, cada vez mais, a efetiva participação da sociedade civil nos desígnios da Nação. Nessa hipótese, o patrimônio valorativo de certa comunidade foi agredido de maneira injustificável do ponto de vista jurídico.

Reconhece-se, outrossim, plena justicialidade dos direitos sociais quando as diretrizes estatais já foram postas em prática pelo Estado, pois concretizada a política pública surge para o cidadão o direito de exigir judicialmente acesso igual aos serviços de saúde, de transportes, de ensino.

Assim pensou o Superior Tribunal de Justiça quando do julgamento do Recurso Especial nº 575998/MG, Relator Ministro Luiz Fux, DJ de 16.11.04, pág. 191, permitiu-se tutela jurisdicional ao se entender que a questão da coleta do lixo é prioritária, pois na defesa do direito da população à saúde pública.

Diga-se que o cabimento da tutela jurisdicional, nessas hipóteses, não significa transferir ao Judiciário a competência para formular políticas públicas, como as de saúde, mas apenas reconhecer que também nesse terreno o Judiciário desenvolve sua atividade típica de dar atuação à ordem jurídica(ainda que sob uma feição nova). Por outro lado, tampouco há afronta ao princípio da representatividade democrática. Como bem disse Eduardo Talamini(Tutela relativa aos deveres de fazer de não fazer, RT, 2001, pág. 145), como o que se buscará é uma atuação estatal de abrangência geral, não individualizável, haverá de se empregar ação voltada à tutela coletiva. O processo coletivo envolve, portanto, importante papel de instrumento de participação democrática; confere aos cidadãos, individualmente ou reunidos em associação, a possibilidade de influenciar os destinos da sociedade política, zelando pelo respeito às diretrizes estatais constitucionalmente impostas.

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Assim a ação civil pública, a Arguição de preceito fundamental(de origens germânicas), como outras ações constitucionais(ação direta de inconstitucionalidade, mandado de injunção) hão de refletir, cada vez mais, a efetiva participação de esferas da sociedade civil nos desígnios da Nação.

Concretizada a política pública, surge para o cidadão o direito – exigível judicialmente – de igual acesso aos bens e serviços ofertados.

Proíbe-se, assim, nessa linha de pensar, o retrocesso.

Assim tal se dá como cláusula pétrea. É impossível(functor alético), falar-se em mudança constitucional na hipótese.

Esse é o quadro em que se desenvolve o debate sobre a vacinação no Brasil.

O Supremo Tribunal Federal vai discutir a vacinação após partidos políticos acionarem a Corte para julgar as controvérsias em torno do tema. Uma das ações quer impedir o governo de prejudicar o andamento de qualquer pesquisa de imunizante no Brasil.

Outras duas discutem a legalidade de impor a vacinação obrigatória à população.

É de fundamental importância para a Corte Suprema do Brasil dirimir tais conflitos em defesa da cidadania.

Enquanto isso, o presidente da República, parece não entender a Constituição a que jurou.

Eu entendo que isso não é uma questão de Justiça, isso é questão de saúde, acima de tudo. Não pode um juiz decidir se você vai ou não tomar a vacina, isso não existe", afirmou Bolsonaro a apoiadores no Palácio da Alvorada. "Nós queremos é buscar solução para o caso. Pelo que tudo indica, todo mundo diz que a vacina que menos demorou até hoje foram quatro anos, não sei por que correr em cima dela."

O Brasil deve ser envergonhar de ser um pária internacional e de ser jogado “no lixo da história”.

Por fim, parece que diante do que foi dito, o resultado do plebiscito democrático no Chile, que enterrou uma ditadura de triste memória no continente, deixará a presidência do Brasil cada vez mais isolado.

Não é tempo de elogiar o dantesco espetáculo que foi a ditadura Pinochet, mas estimular uma democracia participativa no Brasil, que passa pela judicialização dos direitos sociais, voltadas para a definição de prioridades nas políticas públicas, por aspectos inerentes à dignidade da pessoa humana que é seu valor fundamental na ordem jurídica posta no Brasil.

Nesse lugar, há lugar para os verdadeiros liberais, pois não é verdade que os verdadeiros liberais sejam a favor da facultatividade da vacinação no Brasil, antes uma questão de conscientização.Os verdadeiros liberais não negam o acesso ao Judiciário para a implementação de políticas públicas.

Lembro, por fim, o filósofo americano Jason Brennan, que é um libertário sério, que já demonstrou que o respeito à liberdade individual não é incompatível com vacinação compulsória. Ele invoca o “princípio das mãos limpas”, segundo o qual todo indivíduo tem a obrigação de se abster de opções que, agregadas, causam danos. Uma pessoa que deixa de se vacinar parece ser irrelevante. Mas tomados em conjunto, os indivíduos que não se imunizam quando poderiam fazê-lo aumentam o risco de uma doença se espalhar e causar vítimas. Ao se omitir, eles “sujam as mãos”.

 

 

 

 

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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