A imposição de astreintes no processo penal

27/10/2020 às 15:42
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O presente artigo busca responder a seguinte indagação: pode o juízo penal valer-se das astreintes, do ramo processual civil, para pressionar terceiro a fornecer informações e subsídios probatórios? Para o STJ, a resposta é afirmativa.

É sabido que o acusado não tem o dever de colaborar com a produção de provas que contra ele são desfavoráveis. Disso decorre do brocardo latino “nemo tenetur se detegere”[1], estando esculpido como garantia constitucional no inciso LXIII, do art. 5º, da Constituição Federal[2]. Afinal, é do Estado, titular do poder punitivo, o ônus de produzir as provas necessárias, que não deixem margem à dúvidas, pois “in dubio pro reo”[3], para condenar o responsável pelo cometimento de algum delito.

Bem por isso, seria descabido o juízo exigir do réu que produzisse prova contra si, sob pena de aplicação de multa diária ou outras medidas coativas que o valham. Contudo, o direito ao silêncio e a não produzir provas contra si não atingem terceiros, estranhos ao processo penal.

Daí surge interessante questão: pode o juízo penal valer-se das astreintes, do ramo processual civil, para pressionar terceiro a fornecer informações e subsídios probatórios?

Essa indagação foi enfrentada pela Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça – STJ – que, por maioria, com voto vencido do Ministro Rogerio Schietti Cruz, acolheu tese do Ministro Ribeiro Dantas para fixar a possibilidade de aplicação de astreintes contra terceiros, mesmo no processo penal e sem previsão no correlato Código de Processo, com aplicação subsidiária do Código de Processo Civil – CPC[4].

As astreintes, nada mais são, do que forma de coagir determinada pessoa, com aplicação de multa diária, a fazer ou deixar de fazer algo. É um mecanismo, segundo o STJ, de poder geral de cautela, ferramenta à disposição do juízo para garantir a efetividade do processo e do cumprimento de suas decisões.

Explicitou-se a admissão do CPC, em caráter subsidiário, para suprir lacuna do CPP. Anotou-se que “a multa cominatória surge, no direito brasileiro, como uma alternativa à crise de inefetividade das decisões, um meio de se infiltrar na vontade humana até então intangível e, por coação psicológica, demover o particular de possível predisposição de descumprir determinada obrigação”. Distinguiu-se esta multa cominatória da multa por litigância de má-fé, que é inadmitida no processo penal.

Defendeu, na linha do voto vencedor, que existe poderes implícitos ao magistrado para aplicar as astreintes, com vistas a atingir a finalidade perseguida em suas decisões, qual seja, ter acesso a informações probatórias.

Quanto a isso, ensinam Eduardo Luiz Santos Cabette e Francisco Sannini Neto que[5]:

A teoria dos poderes implícitos tem sua origem na Suprema Corte dos EUA, no ano de 1819, no precedente Mc CulloCh vs. Maryland. De acordo com a teoria, a Constituição, ao conceder uma função a determinado órgão ou instituição, também lhe confere, implicitamente, os meios necessários para a consecução desta atividade.

Logo, para o STJ, cabe ao magistrado adotar todas as medidas necessárias para que exerça a contento a sua função jurisdicional, inclusive coagir terceiros, que não integram a lide penal, a que obedeçam a sua determinação, sob pena de multa diária em caso de descumprimento.

Foi lembrado, inclusive, “a existência de dispositivos expressos, no próprio Código de Processo Penal, que estipulam multa ao terceiro que não colabora com a justiça criminal (arts. 219 e 436, § 2º)”.

A mencionada decisão foi mais longe, como consequência da possibilidade de aplicação de multa diária, entendeu-se também pela viabilidade do débito gerado pelo descumprimento ser cobrado por meio de bloqueio via Bacen-Jud ou, ainda, com inscrição do terceiro descumpridor da decisão judicial em dívida ativa.

Foi explicitado “não haver um procedimento legal específico, nem tampouco previsão de instauração do contraditório. Como visto, por derivar do poder geral de cautela, cabe ao magistrado, diante do caso concreto, avaliar qual a melhor medida coativa ao cumprimento da determinação judicial, não havendo impedimento ao emprego do sistema Bacen-Jud”.

O caso concreto envolveu uma rede social eletrônica renomada que, mesmo devidamente cientificada dos dados que foram requeridos pelo juízo penal, em apuração de crimes graves, de pedofilia e estupro de vulnerável, com a regular decretação de quebra de sigilo, demorou seis meses para atender a ordem judicial. Isto cominou em multa diária com teto de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais), o que foi tido como proporcional pela Corte Superior em questão.

A decisão foi assim ementada na parte que interessa a este artigo:

5. Aplica-se o poder geral de cautela ao processo penal, só havendo restrição a ele, conforme reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal, na ADPF 444/DF, no que diz respeito às cautelares pessoais, que de alguma forma restrinjam o direito de ir e vir da pessoa. O princípio do nemo tenetur se detegere e da vedação à analogia in malam partem são garantias em favor da defesa (ao investigado, ao indiciado, ao acusado, ao réu e ao condenado), não se estendendo a quem não esteja submetido à persecução criminal. Até porque, apesar de ocorrer incidentalmente em uma relação jurídico-processual-penal, não existe risco de privação de liberdade de terceiros instados a cumprir a ordem judicial, especialmente no caso dos autos, em que são pessoas jurídicas. Trata-se, pois, de poder conferido ao juiz, inerente à própria natureza cogente das decisões judiciais.

6. A teoria dos poderes implícitos também é fundamento autônomo que, por si só, justifica a aplicação de astreintes pelos magistrados no processo criminal.

7. Sobre a possibilidade do bloqueio de valores por meio do Bacen-Jud ou aplicação de outra medida constritiva sobre o patrimônio do agente, é relevante considerar dois momentos: primeiramente, a determinação judicial de cumprimento, sob pena de imposição de multa e, posteriormente, o bloqueio de bens e constrições patrimoniais. No primeiro, o contraditório é absolutamente descabido. Não se pode presumir que a pessoa jurídica intimada, necessariamente, descumprirá a determinação judicial. Quando do bloqueio de bens e realização de constrições patrimoniais, o magistrado age em razão do atraso do terceiro que, devendo contribuir com a Justiça, não o faz. Nesse segundo momento, é possível o contraditório, pois, supondo-se que o particular se opõe à ordem do juiz, passa a haver posições antagônicas que o justificam.

8. No caso concreto, o Tribunal local anotou que as informações requisitadas só foram disponibilizadas mais de seis meses após a quebra judicial do sigilo e expedição do primeiro ofício à empresa.  Logo, não se verifica o cumprimento integral da medida.

Cabe anotar que o voto do Ministro Rogerio Schietti Cruz foi favorável pela possibilidade de aplicação de astreintes a terceiros em lide penal, com base em farta jurisprudência daquela Corte Superior, porém condicionava a cobrança ao devido processo legal, com execução fora do juízo penal, com a finalidade de constituir o crédito não tributário.

Ponderou também, em voto vencido, o Ministro Sebastião Reis Júnior:

Entendo, até porque estamos admitindo a aplicação de uma multa não prevista no processo penal e, como já antevejo, cujo valor pode ser bloqueado sem qualquer contraditório junto à conta do, em tese, descumpridor de ordem judicial, que não é possível deixar a critério do juiz a sua fixação sem qualquer tipo de limite, a seu livre critério.

Não há parâmetros objetivos na ação em que a multa é imposta (ação penal, cujo valor é inestimável) e não me parece suficiente simplesmente afirmar que a multa deve obedecer aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. A sua execução, ou pelo menos, o início de sua execução, com o bloqueio dos valores correspondentes na conta corrente da parte envolvida, pode causar-lhe danos irreparáveis.

Não podemos tomar como referência aqui a capacidade das empresas envolvidas nos processos em análise, considerando que estamos admitindo a aplicação dessa multa a qualquer terceiro, pessoa física ou jurídica, de pequeno, médio ou grande porte, que, eventualmente, na condição de terceiro, descumpra ordem judicial proferida em processo penal. Amanhã podemos nos deparar com uma multa abusiva imposta a uma pessoa jurídica de pequeno ou médio porte, cuja execução imediata simplesmente inviabilize o seu funcionamento, o seu dia a dia, impedindo-a, inclusive, de cumprir seus compromissos ordinários, como pagamentos de contas de luz, água, telefone e salários.

Nesse contexto, acho mais do que razoável que a multa tenha como limitador os valores indicados no art. 77, § 5º, do CPC/2015.

Nesse panorama, cabe ponderar que essa permissividade de mecanismos distintos, de diplomas com finalidades próprias, serem aplicados, ainda que confira maior celeridade, efetividade e de maneira subsidiária, não parece a melhor solução. Direito Penal e Civil são independentes e assim foram criados.

Não parece, a rigor, adequado pinçar o que melhor aprouver de diplomas diferentes, sob pena de se criar um verdadeiro “frankenstein” normativo, fruto do que, em tese, é melhor de cada código, em prol de uma etérea efetividade do processo, seja qual for e de quanto é relevante a questão que está em investigação ou apuração.

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Se são necessários novos mecanismos no CPP, deve-se seguir o caminho ordinário, qual seja, a alteração legislativa, e não, ainda que em Corte Superior, ser autorizado mecanismos estranhos ao Processo Penal.

A alegada lacuna não existe, pois descumprimento de ordem judicial pode ser punido com o crime de desobediência, capitulado no art. 330 do Código Penal[6]. Ou seja, determina-se que o representante legal da empresa cumpra a ordem, em determinado prazo, sob pena de incorrer em crime de desobediência.

Ainda mais grave é, além de impor multa diária, sem previsão no CPP, o bloqueio de valores ou inscrição na dívida ativa sem o necessário contraditório e ampla defesa, ao argumento de celeridade nas decisões. Deve-se, tal como pontuado no voto vencido, constituir o crédito, com liquidez e certeza, antes de se adotar medidas de constrição patrimonial e negativação da pessoa a quem se imputa um débito. Como é de praxe, antes de cobrar por via mais gravosa, deve-se liquidar a dívida e oportunizar o voluntário adimplemento.

Veja que não se discorda da necessidade de celeridade, efetividade e integral cumprimento das ordens judiciais, quaisquer que sejam, principalmente na seara criminal e em crimes de reprovabilidade elevada, porém é necessário que isto esteja previsto no diploma processual respectivo, sob pena de se criar novas disposições legais com “pinçamento” dos artigos de qualquer lei, ainda que criada com outra intenção e finalidade.

Dessarte, conclui-se que a decisão do STJ em permitir mecanismo do CPC no CPP não é adequada, pois cada norma deve se manter dentro da sua sistemática, sua estrutura normativa em que foi concebida, evitando se valer de disposições que não lhe pertencem, estranhas ao seu universo, ainda que a intenção seja louvável. Em outras palavras, o juízo penal não deveria utilizar os astreintes em processos penal, ainda que contra terceiros, por ausência de disposição neste sentido no CPP, mas se valer da constrição penal comum, qual seja, o crime de desobediência do art. 330 do Código Penal.  


[1] O direito de não produzir prova contra si mesmo.

[2] LXIII - o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado;

[3] A dúvida milita a favor do réu.

[4] REsp 1.568.445-PR, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, Rel. Acd. Min. Ribeiro Dantas, Terceira Seção, por maioria, julgado em 24/06/2020, DJe 20/08/2020.

[5] https://www.conjur.com.br/2013-abr-09/poder-investigatorio-ministerio-publico-nao-amparo-legal#:~:text=A%20teoria%20dos%20poderes%20impl%C3%ADcitos%20tem%20sua%20origem%20na%20Suprema,para%20a%20consecu%C3%A7%C3%A3o%20desta%20atividade.

[6] Art. 330 - Desobedecer a ordem legal de funcionário público: Pena - detenção, de quinze dias a seis meses, e multa.

Sobre o autor
Alexandre Santos Sampaio

Advogado. Mestre em Direito pela Uniceub - Centro Universitário de Brasília. Especialista em Direito Público pela Associação Educacional Unyahna. Especialista em Direito Civil pela Universidade Federal da Bahia. Bacharel em Direito pela Universidade Católica do Salvador. Bacharel em Administração pela Universidade do Estado da Bahia.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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