INTRODUÇÃO
O Direito Penal do Inimigo, teoria que regula um tratamento diferente aos “inimigos” do Estado na seara penal com a relativização de Direitos e Garantias Constitucionais, embora tenha sido preconizada nos anos 80, pelo alemão Günther Jakobs (2018), tem se mostrado bastante incidente nas políticas públicas penais atuais, resultando no sucateamento dos Direitos e Garantias Fundamentais tanto no âmbito nacional quanto no internacional.
Na visão do doutrinador em comento (2018), a lei penal já não é mais tratada como ultima ratio, inexistindo o princípio da subsidiariedade; é, portanto, um sistema mais endurecido, porém necessário para a garantia da ordem social. Deste modo, o preço para garantir o direito do cidadão é a legitimação do Direito Penal do Inimigo. Isto posto, faz-se imperioso citar o pai do funcionalismo sistêmico:
O Direito Penal do cidadão é o Direito de todos. O Direito Penal do Inimigo é daqueles que o constituem contra o inimigo: frente ao inimigo, é só coação física, até chegar à guerra (JAKOBS apud MELIÁ, Manuel, 2018, p. 65).
Nesta senda, a presente Monografia Jurídica, no capítulo I, incumbirá de expor tal teoria, na qual será apresentado o contexto histórico do Direito Penal do Inimigo e suas peculiaridades, além das diferenças entre quem é considerado cidadão para o Estado e quem é seu inimigo.
Ademais, igualmente no capítulo inicial, serão abordadas as velocidades do direito penal preconizadas por Silva Sánchez (2011), na qual implica uma mudança do sistema penal através das denominadas “velocidades”. A primeira, consiste no direito penal clássico, no qual há altas penas e várias garantias; na segunda, há a incidência do direito penal consensual ou de intervenção, cujas penas são baixas e não há vastas garantias; no que tange à terceira velocidade, estão presentes as altas penas e em contraposição, baixas garantias.
Nesta senda, será explicitada a nítida influência de Jakobs na terceira velocidade do direito penal, como expendido pelo abalizado penalista Cléber Masson:
Segundo Silva Sánchez, a transição da figura de “cidadão” à de “inimigo” seria produzida mediante a reincidência, a habitualidade, a delinquência profissional e, finalmente, a integração em organizações delitivas estruturadas (MASSON, 2017, p. 114).
Também será salientada a incidência da teoria em comento no direito comparado americano e francês, diante de fatores históricos que, de certo modo, “justificaram” a adoção do Direito Penal do Inimigo na legislação atual.
Diante disto, no segundo capítulo, realizar-se-á uma análise acerca dos Estados Unidos da América, diante das mudanças político-criminais após os ataques 11 de setembro de 2001, que ensejaram no Patriot Act, promulgado pelo então presidente George W. Bush. Após, será explicitado o Freedom Act, criado por Barack Obama em 2015, cujo suposto objetivo foi aumentar os Direitos e Garantias Individuais dos cidadãos norte-americanos, porém, mantendo ainda fortes resquícios da “Guerra contra o Terror”.
Na mesma senda, também no capítulo II, será abordada a influência do Direito Penal do Inimigo no âmbito francês, em face aos ataques do grupo terrorista Estado Islâmico e o crescente movimento contra a imigração, que incitou ainda mais a xenofobia para com os habitantes do Oriente Médio, resultando na “resposta” estatal positivada através da lei n° 2017-1510 du 30 octobre 2017 renforçant la sécurité intérieure et la lutte contre le terrorisme.
Já no terceiro capítulo desta Monografia Jurídica, será indicada a relação do Direito Penal do Inimigo com a legislação brasileira, que adotou alguns fragmentos da teoria de Jakobs, como a antecipação da tutela penal em alguns atos preparatórios elencados como “delitos”, mesmo sem que haja uma violação concreta de um bem jurídico tutelado.
Neste vértice, far-se-á uma análise do ordenamento jurídico pátrio, no que tange aos crimes de petrechos para falsificação de moeda (artigo 291 do Código Penal); associação criminosa (artigo 288 do Código Penal); posse/porte ilegal de arma de fogo de uso permitido (artigos 12 e 14, “caput”, do Estatuto do Desarmamento) e o crime de penetrar em unidades de conservação (artigo 52 da Lei nº 9.605/98), através de críticas acerca destes fragmentos do Direito Penal do Inimigo no Brasil.
In fine, o estudo em questão terá como finalidade expor a incidência cada vez menos velada do direito penal do autor na legislação atual, no cenário do direito comparado e no brasileiro, nos capítulos II e III, respectivamente, bem como expor críticas a esta teoria (inseridas no último capítulo), além de propiciar maior elucidação acerca do tema, com um diagnóstico categórico acerca do Direito Penal do Inimigo.
1 O DIREITO PENAL DO INIMIGO
1.1 Contexto Histórico
Anteriormente à criação do Estado Democrático de Direito, é sabido que reinava o caos em uma constante guerra de todos contra todos, como evidenciado por Hobbes (2003), no qual a vontade do mais forte se sobrepunha aos que a ele eram submetidos, seja por meio da força física ou da coação. Consistia em uma sociedade animalesca, na qual o terror, a desordem e a barbaridade eram reis.
Surgiu, deste modo, a necessidade de regulamentar as relações sociais, limitando as ações de cada indivíduo, com o fito de eliminar o estado caótico que a humanidade se encontrava. Na visão do renomado filósofo Rousseau (2006), houve a criação de um “Contrato Social”, no qual os cidadãos eram os signatários, devendo se submeter às regras a eles impostas; caso houvesse uma violação deste contrato, seriam delimitadas punições nos limites estabelecidos para este infrator.
Em outro vértice, Hobbes (2003), defendeu a criação de uma figura estatal forte, como se fosse possuidor de personalidade jurídica própria, o Leviatã. A “mão” estatal abarcaria a todos, sendo os cidadãos meros súditos do poderoso Estado, sendo devedores de obediência, lealdade e servidão.
Após o estado animalesco, no qual não havia uma sociedade organizada em um Estado, é nítido que a estruturação do direito juntamente à configuração do conceito de Estado foi se desenvolvendo no passar dos anos. Vale ressaltar, nesta senda, o advento do constitucionalismo, cuja maior herança foi a positivação das constituições, podendo citar à título de exemplo, a Constituição dos Estados Unidos da América, em 1787 e a Francesa, em 1789.
Deste modo surgiram os ideais de Estado de Direito, que defendiam a obediência às leis tanto para governantes quanto para os governados, sem distinção entre ambos. Entretanto, somente após a Segunda Guerra Mundial houve a criação do Estado Democrático de Direito, no qual foram incluídos nas leis valores morais, igualdade, liberdade e, principalmente, a dignidade da pessoa humana, vinculando governantes e governados.
Insta salientar que após alguns anos, em face do movimento expansionista penal (Sánchez, 2011), que revelou um aumento da população carcerária no mundo, a concepção da preservação destes valores em face da crescente onda de criminalidade foi cada vez mais questionada, propiciando o surgimento de duas grandes (e polêmicas) teorias do Direito Penal na década de 80.
Vejamos, neste vértice o Movimento norte-americano de Lei e Ordem, preconizado por Wilson e defendido por Rolling e Murray. De acordo com o criador da teoria (Kelling, Wilson, 1982), as pessoas consideradas “perigosas” devem viver no cárcere; o papel da polícia deve ser exacerbado, permitindo o cometimento de crimes para com estas pessoas, através de uma política de tolerância 0 e a maioria honesta deve ser preservada, combatendo os delinquentes de maneira retributiva, pois a minoria criminosa estaria recebendo especial atenção da justiça com os Direitos Humanos e valores inerentes às Garantias Fundamentais.
Similarmente, o alemão Jakobs (2018) propõe o Direito Penal do Inimigo, para aqueles que cometem crimes cuja gravidade é extrema, de modo que suas existências turvem, a comunicação social, perdem o status de “cidadãos” e ganham o de “inimigos”. Assim, tal teoria lhes garante um tratamento semelhante ao do Movimento acima mencionado, porém, dotado de maiores violações às Garantias e Direitos Fundamentais, pois, como mesmo defende o citado penalista, “frente ao Inimigo é só coação, até chegar à guerra.”
1.2 Conceito
A priori, com o fito de maior elucidação acerca da própria formação do Direito Penal do Inimigo, é mister destacar o posicionamento de Jakobs (2018) acerca do Direito Penal. Em sua visão, a função da Lei Penal é a manutenção de expectativas, pois ela é inapta a proteger bens jurídicos.
Ora, ao exemplificar tal situação, Jakobs (2018) sabiamente versa que o Direito Penal não protege devidamente o bem jurídico da vida, pois não evita a morte em relação às doenças; assim, não há a real tutela.
Logo, defender que o Direito Penal tem como objetivo à tutela de bens jurídicos, seria admitir o mero caráter simbólico da Lei, pois é indubitável que ela não abrange todos os motivos que ferem os bens jurídicos (supostamente) tutelados. Sob esta ótica, a Lei Penal não possui relevância no caso concreto, pois é falha no que deveria proteger, assemelhando-se, deste modo, a uma mera “folha de papel” (LASSALE, 1998).
Logo, para Jakobs (2018), o Direito Penal deve ter como objetivo a manutenção de uma determinada configuração social, reforçando as expectativas essenciais para a vida em sociedade e, assim, garantindo a confiança na segurança.
Novamente, à título de exemplo, cite-se um fato quotidiano: as pessoas avançam no semáforo verde sem conferir se há carros na via contrária ultrapassando o sinal vermelho, mesmo sabendo que há essa possibilidade; há a expectativa e confiança de que as regras serão obedecidas por todos. Entrementes, quando há a violação de uma norma, é certo que a pessoa deverá ser punida.
Logo, na concepção funcionalista sistêmica de Jakobs (2018), o delito não representa uma colisão entre indivíduos, e, muito menos entre bens jurídicos particulares. É, na verdade, uma situação contrafática que mantém a vigência da norma, através da confiança do cidadão de que o seu direito à segurança será devidamente mantido pelo Estado.
Nesta concepção, há uma mudança na valoração do coletivo em detrimento do individual, no qual a sociedade que deve ser tutelada, não a res furtiva de uma vítima de um crime patrimonial. Por conseguinte, quando a máquina estatal se move com fito de proteger as pessoas, há, logicamente, a proteção da sociedade.
Entretanto, diante da extrema subjetividade pessoal de cada um, Jakobs divide as pessoas em dois grupos, os cidadãos e os inimigos, que sofrem as consequências de suas infrações de maneira distinta, diante das expectativas que emanam em face à sociedade.
Assim, resta configurado na Teoria em comento do direito penal do autor, no qual não há uma consequência homogênea para todos os sujeitos quando cometem um crime; não se observa, o fato, mas quem o fez. Pune-se (ou deixa de fazê-lo), por a pessoa ser quem é e se enquadrar em algum grupo específico. Nesta senda, vejamos as diferenciações entre o cidadão e o inimigo:
1.3 Peculiaridades
1.3.1 Cidadão versus Inimigo
Incumbe salientar, primordialmente, que o Direito Penal do Cidadão e o Direito Penal do Inimigo não são isolados, pois, como aduz Jakobs (2018), são “dois polos de um só mundo”. Existem harmonicamente em uma sociedade real, na qual há infratores e benfeitores, na sintonia (quase perfeita) de ying e yang, revelando extrema dependência entre a ordem social de Jakobs e o tratamento individualizado para cidadãos e inimigos.
Em face à inspiração contratualista de Jakobs, todos os cidadãos se submetem a um contrato social, devendo obedecer às leis que dele emanam, com o fito de evitar a volta ao estado caótico de Hobbes, a luta de todos contra todos.
Entretanto, ao se submeter ao contrato social, é irrefutável que o signatário possui algumas garantias (e regalias) diante deste fato. É possuidor de direitos, os quais serão devidamente preservados pela força do mesmo contrato, mesmo nos casos atentatórios a ele.
Ou seja, neste caso, o cidadão, ao cometer um delito, será punido nos limites do contrato social, com todas as garantias legais que lhe faz jus, pois há nele a expectativa confiável de que poderá novamente se adequar às normas, volvendo ao estado anterior à infração.
Todavia, o inimigo, por se colocar fora do contrato social e atentar contra sua existência não tem o direito aos limites e regras dele. Além disso, sendo uma das garantias dos cidadãos a manutenção da segurança, eles possuem o direito de exigir do Estado que tome medidas eficazes para combater “os inimigos” que ameaçam a vida em sociedade.
Neste vértice, Jakobs salienta:
O Direito Penal do cidadão mantém a vigência da norma, o Direito Penal do inimigo (em sentido amplo: incluindo o Direito das medidas de segurança) combate perigos (JAKOBS, 2018, p. 29).
Destarte, aquele que repudia a harmônica convivência social e que se recusa a viver sob os moldes socioculturais e normativos impostos pelo Estado, perde o direito ao título de pessoa, e, consequentemente, todos os benefícios que a lei lhe confere. Este é o inimigo, que vive em constante guerra, em um estado caótico e similar ao de Hobbes, no qual, na concepção do pai do funcionalismo sistêmico, quem ganha a guerra determina o que é norma, e quem perde há de submeter-se a esta determinação (JAKOBS, 2018, p. 35).
O Estado, portanto, diante dos delinquentes, não deve garantir o mesmo tratamento para eles, vez que a subjetividade humana é extremamente exacerbada. De acordo com Jakobs (2018), os infratores se dividem em três grupos, sendo eles: pessoas que delinquem, pessoas que tenham cometido um erro, ou indivíduos que devem ser impedidos de destruir o ordenamento jurídico.
Deste modo, na seara desta teoria, faz-se necessária uma visão crítica acerca do autor do delito para identificá-lo corretamente em um dos grupos suso mencionados e, puni-lo, de acordo com as limitações à ele impostas (ou não) no ordenamento jurídico vigente.
Diante disso, faz-se mister salientar o método para identificar “o inimigo” criado por Prittwitz (2004), indubitavelmente inspirado por Jakobs. São, nesta senda aqueles que cometem crimes graves (crimes sexuais e de tráfico internacional); os que fazem do crime seu modo de vida (segundo Ferri (2008), é o criminoso habitual) e os que aderem a uma organização criminosa, obedecendo a máfia e não o Estado.
1.3.2 Tratamento do inimigo
Diante do exposto, o Inimigo, por não corresponder às expectativas sociais que lhe são impostas, atentar contra a ordem social e se recusar a viver em um estado de cidadania, deve ser, na concepção de Jakobs (2018), tratado diferentemente do cidadão.
De acordo o referido penalista, por não restar nenhuma outra alternativa a não ser combatê-lo, aqueles que enquadram o inimigo como um delinquente comum, frequentemente utilizam o processo penal como “arma” para essa guerra.
O processo penal do inimigo não deve ser confundido com o processo penal comum, vez que é uma medida excepcional para neutralizar o delinquente perigoso, pois não há chance de ressocialização, em decorrência do fato de que ele nunca foi parte da sociedade.
Este confronto ocorre inicialmente já no momento de identificação do inimigo, vez que ao ser uma fonte de perigos para a sociedade, deve instantaneamente ser excluído da mesma.
Assemelha-se aqui à teoria do labbeling approach, que trata o fato delituoso como uma construção social, rotulando aqueles que não se encaixam no “padrão” como delinquentes, resultando na marginalização dessas pessoas e no seu afastamento (exclusão) do convívio social, como, por exemplo, o estigma sofrido pelos ex-presidiários, que são muitas vezes excluídos da vivência em comunidade, simplesmente por serem quem são.
Jakobs exemplifica tal acontecimento em sua obra, ao defender que ninguém continua confiando o serviço de tesoureiro a uma pessoa corrupta, pois ele fica excluído do círculo de pessoas sobre as quais regem expectativas reais em relação à tesouraria; assim, ele é considerado uma fonte de perigo (JAKOBS, 2018, p. 57).
O inimigo, portanto, é etiquetado como fonte de expectativas não confiáveis perante a sociedade, devendo, assim, ser banido da coletividade, através da batalha regida pelo processo penal do inimigo.
Nesta senda, é imperioso colacionar o pensamento de Jakobs acerca do tema:
Portanto, o Direito Penal conhece dois polos ou tendências em suas regulações. Por um lado, o tratamento com o cidadão, esperando-se até que se exteriorize sua conduta para reagir, com o fim de confirmar a estrutura normativa da sociedade, e por outro, ‘o tratamento com o inimigo, que é interceptado já no estado prévio, a quem se combate por sua periculosidade’ (JAKOBS, 2018, p. 36).
Diante disso, aufere-se a característica da ótica prospectiva do processo penal do inimigo, que propicia a batalha mesmo antes de uma possível lesão à sociedade. Há, deste modo, o aval estatal para uma antecipação da repercussão penal; ou seja, para a punição antes mesmo de iniciada a fase da consumação do iter criminis.
Por consequência, é possível extrair outra “norma” do processo penal de guerra: a relativização dos direitos, garantias fundamentais e princípios gerais do Direito Penal ordinário. Ao permitir a punição sem mesmo o real cometimento de um crime, são colocados em jogo os princípios processuais penais da proporcionalidade da pena e da reserva legal.
Diante disso, diante das violações aos direitos e garantias fundamentais, ressalta Jakobs que a proposição “no Direito, todo ser humano deve ser tratado como pessoa” é incompleta, pois é seu dever a fidelidade ao regulamento jurídico (JAKOBS, 2018, p. 58).
Ademais, é possível também noticiar que além da antecipação da tutela penal, da punição de atos preparatórios e da relativização de direitos, sob a dura ótica de “guerra”, o Direito Penal do Inimigo também possui como “norma” a ampliação dos poderes da polícia, que em consequência diminui os poderes do magistrado e a alteração da valoração das provas no processo penal do inimigo, que indica que a confissão é a rainha das provas, podendo ser até mesmo obtida mediante tortura, extinguindo o princípio da proporcionalidade.
Neste giro, por não possuir o status de “pessoa”, o inimigo não é merecedor de nenhum direito e garantia constitucionalmente previsto para os cidadãos, devendo ser duramente combatido, sem o mínimo amparo legal.
1.4 AS VELOCIDADES DO DIREITO PENAL
Diante do exposto, faz-se oportuno trazer à baila a concepção das velocidades do direito penal preconizadas por Silva Sánchez (2011), que possui íntima relação com o Direito Penal do Inimigo. Cancio Meliá (2018, p. 91), afirma que o penalista em comento tem incorporado esta teoria em sua concepção própria de política criminal.
Extrai-se da inteligência da obra de Sánchez (2011), A Expansão do Direito Penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós industriais, que há três tipos de velocidade do direito penal, que no termo literal da palavra, exprimem qual modelo pune mais rapidamente, sendo o primeiro o mais moroso e o terceiro, em contrapartida, o mais ágil.
A primeira velocidade do direito penal refere-se ao direito penal clássico, no qual estão presentes as penas privativas de liberdade juntamente com todas as garantias processuais penais, além da obediência estrita aos princípios político criminais. Cite-se, à título de exemplo, o acusado, que possui amparo legal em todas as fases de um processo-crime, devendo ser contemplado com todos os direitos que lhe faz jus.
Em outra esteira, a segunda velocidade refere-se ao direito penal consensual ou de intervenção, que carrega fortes características do direito administrativo através de acordos penais em detrimento da lide processual. Tem se aqui a figura dos Juizados Especiais Criminais, novidade jurídica perante o advento das penas alternativas à prisão.
Ressalte-se que neste segundo momento, é nítido que o deslinde ocorre de maneira muito mais rápida e fluida do que na primeira velocidade, pois evita a demasiada morosidade judiciária, cheia de formalismos e burocracias. Em contrapartida, é notório que há a flexibilização dos princípios político-criminais e das garantias processuais para evitar a lentidão da máquina judiciária, visto que muitas vezes, o conflito é resolvido através de acordos penais por meio da conciliação e da composição.
Em outro vértice, na terceira velocidade, frisa-se a necessidade de uma punição extremamente veloz. Há, neste momento, uma junção da primeira e da segunda velocidade; são aqui aplicadas as penas restritivas de liberdade, porém, com a flexibilização de direitos e garantias processuais e político-criminais.
Isto posto, é cristalina a inspiração do Direito Penal do Inimigo na terceira velocidade de Sánchez, pois há a ótica prospectiva do crime, na qual o Estado pune o acusado antes mesmo do início de sua provável consumação, como veremos no próximo capítulo, ocorreu (ou ocorre) nos Estados Unidos e na França, por intermédio de violações a garantias constitucionais de supostos terroristas, antes mesmo de cometerem qualquer crime.
É, deste modo, veloz, e, indubitavelmente nocivo para a sociedade, em face de mero retributivismo exacerbado, reflexo de uma sociedade violenta que claramente desconhece o fato de que uma “reação extraordinária afirma e fomenta a irracionalidade”, como aduzem Callegari e Giacomolli (2018, p. 15) acerca do tema.
2 INCIDÊNCIA NO DIREITO COMPARADO
2.1 Patriot Act
O Patriot Act, ou Ato Patriota, foi uma legislação americana aprovada em regime de urgência, sendo uma reação imediata ao ataque terrorista que atingiu os Estados Unidos em 11 de setembro de 2001, assinada algumas semanas após tal feito, em 26 de outubro de 2001.
Por ter possuído inequívoco caráter de guerra, a legislação assinada pelo então presidente Bush teve como fito determinar um rigor maior concernente à aplicação da lei penal aos que praticam o crime de terrorismo, tratando-os como inimigos.
Ressalte-se que a própria versão estendida do título deste ato carrega a característica punitivista. O USA-PATRIOT serve como um acrônimo para “Uniting and Strengthening America by Providing Appropriate Tools Required to Intercept and Obstruct Terrorism”, com a fiel tradução para a Língua Portuguesa: “unindo e fortalecendo a América por meio do fornecimento de ferramentas apropriadas e necessárias para interceptar e obstruir o terrorismo”.
Da análise do Patriot Act, é relevante afirmar que foram implementadas medidas que retiraram os direitos civis dos cidadãos americanos em prol de um combate mais reforçado ao Inimigo, como por exemplo:
- O endurecimento das leis para a realização de investigações por meio de escutas telefônicas para rastrear crimes possivelmente relacionados com o terrorismo;
- A permissão para os agentes federais utilizarem roving wiretaps (escutas em movimento, que interceptam o sujeito; evitando que o descarte de um telefone prejudique a investigação) com autorização da corte de inteligência e vigilância para rastrear um suspeito terrorista, sem a necessidade de identificá-lo;
- A possibilidade do próprio governo conseguir mandados da corte de inteligência e vigilância com o intuito de monitorar eletronicamente alguém, não havendo necessidade de identificá-lo e nem de provar sua ligação com o terrorismo, chamada de lone wolf provision (uma menção aos “lobos solitários”);
- A permissão para notificar posteriormente alguém acerca de mandados de busca, evitando que o provável terrorista saiba que ele é um suspeito;
- A possibilidade dos agentes federais obterem, mediante determinação da corte, registros bancários e comerciais de determinadas pessoas para evitar a lavagem de dinheiro para o financiamento do terrorismo;
- A melhoria da comunicação entre as agências governamentais;
- O estabelecimento de penas mais rígidas para os terroristas condenados e àqueles que lhes dão abrigo;
- A permissão de executar os mandados de busca em qualquer distrito no qual houver a ocorrência de atividade terrorista, independentemente do local da concessão desse mandado;
- O fim do statute of limitations (condições para garantir o devido processo legal no âmbito judicial; no Brasil, cite-se como exemplo a prescrição e a decadência) para os crimes relacionados ao terrorismo;
- A ampliação da dificuldade de envolvidos em ataques terroristas de entrarem nos Estados Unidos;
Desta forma, é notória a incidência (total) do Direito Penal do Inimigo no USA-PARIOT, vez que o terrorista foi enquadrado na categoria de Inimigo, não fazendo jus a direitos constitucionais antes previstos para todos, como por exemplo a proibição de escutas telefônicas; a exigência de prévia notificação de mandado de busca; a inviolabilidade do lar; a liberdade de locomoção; a privacidade de suas contas bancárias e comerciais, dentre outras.
Ademais, podemos destacar que há o extermínio do princípio americano do due process of law (devido processo legal), vez que o Patriot Act atingiu não somente aqueles que cometeram crimes relacionados ao terrorismo após a sua vigência, mas também os já condenados.
Diante do exposto, faz-se imperioso colacionar a crítica de Dworkin acerca do Patriot Act, vejamos:
(...) atos violentos destinados a influenciar a política de governo por meio da intimidação ou da coerção, donde uma pessoa é culpada de contribuir com o terrorismo se doar dinheiro a qualquer grupo que tenha essa finalidade. A lei ampliou em muito o poder do governo para levar a cabo buscas secretas em domicílios privados, permitiu que o procurador-geral detenha estrangeiros quando quiser, na condição de ameaças à segurança, estipulou novas regras autorizando o governo a requisitar informações sobre as compras de livros ou empréstimos em livrarias e bibliotecas feitos por qualquer pessoa, e aumentou de várias outras formas a autoridade do governo para vigilância. (DWORKIN, 2004, p. 172).
Isto posto, em face de um cenário cuja privacidade e as liberdades individuais estavam ameaçados, mesmo com o prazo para expirar no ano de 2005, o então presidente Bush assinou o USA Patriot and Terrorism Reauthorization Act, determinando a continuidade do USA-PATRIOT, na data de 09 de março de 2006.
Frise-se que para tornar essa lei (in) constitucional válida e até mesmo aplaudida por muitos cidadãos norte-americanos, bastou determinar que o “excesso” das entidades governamentais no que tange às restrições de liberdades individuais se expirariam após tempo determinado e com possíveis prorrogações, tornando evidente a (falsa) percepção de que o estado de “guerra” chegará ao fim e logo a sociedade retornará à “normalidade”.
2.2 Freedom Act
Diante das inúmeras e cada vez mais crescentes preocupações dos cidadãos americanos acerca de sua privacidade, Barack Obama assinou o Freedom Act (ato da liberdade) em 02 de junho de 2015, um dia após o USA-PATRIOT expirar.
Como o seu antecessor, o USA-FREEDOM também é um acrônimo cuja versão estendida é: “Uniting and Strengthening America by Fulfilling Rights and Ensuring Effective Discipline Over Monitoring”, podendo ser traduzido para a Língua Portuguesa como: “unindo e fortalecendo a América respeitando os direitos e garantindo uma disciplina efetiva sobre o monitoramento”.
Entrementes, o USA-FREEDOM teve como principal condão endurecer as permissões dadas aos órgãos públicos de investigação principalmente no que concerne ao armazenamento de dados. Frise-que que o USA-PATRIOT, em sua Section 215, permitia que a Agência de Segurança Nacional (NSA) armazenasse grandes quantidades de dados telefônicos, bancários e comerciais de todos os americanos.
Desta feita, a “liberdade” foi trazida à baila somente no que tange à este ponto, vez que o a nova lei exige que a NSA requisite dados à operadoras de telefonia e aos bancos apenas de pessoas, contas ou aparelhos específicos que tenham ligações suspeitas com o terrorismo.
Além disso, também foi exigido um relatório anual de todas as atividades de espionagem realizadas pela NSA, garantindo também uma maior transparência na vigilância.
Entrementes, a nova lei em comento deu continuidade a três dos mais invasivos métodos de investigação advindos do USA-PATRIOT, sendo eles: a Section 215 (com as restrições acima mencionadas), as roving wiretaps (escutas em movimento) e a lone wolf provision (monitoramento eletrônico feito pelo governo de certos indivíduos).
Deste modo, o caráter do Direito Penal do Inimigo, que já era cristalino, tornou-se ainda mais evidente com o USA-FREEDOM, tendo em vista que as melhorias e os avanços em termos humanitários somente foram garantidos aos “cidadãos”, no mesmo vértice preconizado por Jakobs.
O Inimigo continuou alvo de um sistema penal de guerra, o qual foi ainda mais endurecido, sendo nítido que nem todos podem gozar da “liberdade” advinda deste Ato.
Nesta senda, é imperioso frisar que com essa nova lei houve um endurecimento no combate americano contra o Inimigo, como: o aumento na pena máxima de 15 para 20 anos de prisão no crime de auxílio material ao terrorismo e a permissão para o governo monitorar um suspeito terrorista pelo período de 72 (setenta e duas) horas após sua entrada nos Estados Unidos.
Isto posto, restou ainda mais visível a existência de um direito para o cidadão e outro para o inimigo, o qual nitidamente não faz jus aos direitos constitucionais. Exclui-se, em uma mesma lei, algumas pessoas das outras, impondo a uns um regime penal mais severo e extinguindo seus direitos, enquanto há a proteção desses mesmos direitos para outros. O Direito Penal do Inimigo, irrefutavelmente, incidiu no USA-FREEDOM também.
2.3 Lei Francesa N° 2017-1510 du 30 Octobre 2017 Renforçant la Securite Interieure et la Lutte Contre la Terrorisme
A priori, salienta-se que a Lei francesa nº 2017-1510 de 30 de outubro de 2017, que reforça a segurança nacional e a luta contra o terrorismo não é uma novidade para os franceses em termos de legislação antiterror. Este texto é o 10° desde o ataque terrorista americano de 11 de setembro e 2001 (já abordado no capítulo anterior) e o 18º desde a primeira lei francesa acerca desse assunto, datada de 9 de setembro de 1986.
A lei em comento logo se apresentou em seu artigo 1º como uma “solução” para o fim do estado de emergência declarado pelo Estado Francês, que teve início em 13 de novembro de 2015 e seu fim em 1º de novembro de 2017. Entrementes, insta ressaltar que tal lei trouxe consigo características inegáveis do Direito Penal do Inimigo de Jakobs (2014), pois persiste em adotar um posicionamento mais endurecido direcionado a certo grupo social.
Diante disso, antes mesmo de ser votada pelos deputados franceses, Malik Salemkour, Presidente da Liga dos Direitos do Homem, publicou uma carta aberta com o fito de impedir que fossem adotadas características violadoras de direitos e garantias fundamentais fora do estado de emergência, vejamos:
(...) As medidas previstas no presente projeto de lei reduzem o controle judicial sobre o exercício dos poderes da administração e dos prefeitos, com um risco de arbitrariedade e injustiça. Após uma análise cuidadosa destas medidas, constatamos que cada um dos objetivos prosseguidos pode ser realizado num quadro mais respeitador dos direitos, por meio de procedimentos seguros e da não discriminação, com base em provas e fatos convergentes: perímetros de segurança, encerramento de locais de culto, buscas e prisão domiciliária, vigilância orientada, etc. (...) Muitas autoridades independentes, como o Defensor dos Direitos Humanos e a Comissão Nacional Consultiva dos Direitos Humanos, manifestaram a sua profunda preocupação com estas novas disposições, que se destinam a estabelecer uma lógica a longo prazo de suspeição e controle maciços. Recentemente, o Relator Especial das Nações Unidas para a Promoção e a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais na Luta contra o Terrorismo apresentou um relatório que coloca o nosso país na lista negra, considerando que várias das disposições previstas estão em contradição com os compromissos assumidos pela França no âmbito da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos. Reafirmou firmemente que "a prevenção do terrorismo está indissociavelmente ligada à prevenção do respeito pelos princípios fundamentais dos direitos humanos". (...) (SALEMKOUR, 2017) (minha tradução).
Entretanto, o apelo para a conservação dos direitos e garantias individuais acima colacionado não obteve êxito, resultando em uma lei cujo objetivo foi mascarar tais violações de direitos humanos apontados no trecho da carta suso traduzida, na medida em que abranda as restrições de algumas liberdades individuais impostas durante o estado de emergência, ensejando em uma falsa “vitória” para os cidadãos.
Deste modo, aos cidadãos, foram garantidas algumas “regalias”, como o fim de medidas emergenciais: o fechamento de teatros, bares e locais de reunião, a proibição de manifestações, a dissolução de associações e a entrega de armas.
Ademais, a lei em análise inovou em alguns pontos, quais sejam:
- A criação de perímetros de proteção que englobam lugares ou eventos específicos que são possíveis alvos de ataques terroristas, como shows ou eventos esportivos;
- A submissão de buscas em indivíduos e veículos que desejam entrar nesses perímetros de proteção e o impedimento de adentrarem neles caso se recusem a serem revistados;
- A permissão para o governo fechar templos religiosos nos quais pregam o terrorismo, ódio ou discriminação com o prazo de 48h para notificar a organização religiosa;
- A permissão para o governo impor medidas de monitoramento para alguns indivíduos que apresentam uma ameaça “particularmente séria” e que estão em contato regular com organizações ou outras pessoas que se envolvem ou promovem atividades terroristas;
- A adoção de medidas individuais de controle e vigilância administrativa quando presentes "razões sérias para acreditar" que alguém possui um "comportamento que constitui uma ameaça particularmente grave para a segurança e ordem públicas";
- A permissão para o governo impedir o indivíduo monitorado de sair de uma área geográfica específica, determinando ainda que ele forneça notícias suas para a delegacia de polícia local uma vez ao dia;
- A permissão para prefeitos, mediante autorização judicial, ordenar policiais a conduzirem buscas em qualquer lugar que haja uma “séria razão para acreditar” que um suspeito terrorista frequenta esse local;
- A autorização para o governo investigar servidores públicos que estão em posição de autoridade e que apresentem risco de se tornarem “radicais”, investigando registros de viagens e interceptando todas as comunicações via wireless.
- A criação do crime de encorajamento de menor a se envolver com o terrorismo quando o agente possui autoridade sobre ele, cuja pena é de 15 anos de prisão.
Do exposto, ressai que a Lei francesa nº 2017-1510 de 30 de outubro de 2017, que reforça a segurança nacional e a luta contra o terrorismo relativiza alguns direitos constitucionais previstos na constituição francesa, como o direito de liberdade de locomoção, liberdade religiosa, sigilo aos dados pessoais e, principalmente, o princípio da presunção de inocência, pois por possuir muitos termos vagos como requisitos essenciais para o enquadramento de uma certa pessoa à condição de “terrorista” ou “inimigo”, observa-se que a sanção é aplicada com base na periculosidade do agente.
Destarte, é um direito penal do autor, criado mediante lei excepcional para o “combate” a um grupo específico de pessoas (inimigos), com um sistema penal diferente do assegurado aos cidadãos, ausente de direitos e garantias individuais, com uma persecução penal autônoma e penas diferentes.
Isto posto, resta evidenciado principalmente na utilização de termos vagos pelo legislador francês, que impedem uma futura garantia do contraditório e da ampla defesa, como por exemplo: “ameaça particularmente séria”; "razões sérias para acreditar que alguém possui um comportamento que constitui uma ameaça particularmente grave para a segurança e ordem públicas"; “uma séria razão para acreditar que um suspeito terrorista frequenta um determinado local” e “risco de se alguém se tornar radical”.
Logo, no estado democrático de direito, como seria possível proceder ao ônus probatório quando o próprio texto legal não especifica os elementos que o governo utilizou para condenar uma certa pessoa?
(In) felizmente, estamos em pleno estado de guerra, no qual vigora o Direito Penal do Inimigo. Neste contexto, Dworking (2004, p. 175), nas notas de rodapé de seu estudo, apontou que apenas 22% dos norte-americanos pensavam que durante este “estado de guerra” o governo havia “ido longe demais”. Ora, para muitos, a violação de direitos humanos e garantias constitucionais são justificáveis nesses períodos extremos, nos quais exigem “um novo equilíbrio entre liberdade e segurança.”
Entretanto, Dworking sabiamente salientou:
O único equilíbrio em questão é aquele entre a segurança da maioria e os direitos de outras pessoas, e devemos refletir sobre isso como uma questão de princípio moral, e não de nosso interesse próprio (DWORKING, 2004, p. 175).
Logo, torna-se cristalina, indubitavelmente, a discriminação entre o cidadão e o inimigo, ao passo de que a maioria considera “moral” o dilaceramento de direitos constitucionais de “outras pessoas” em detrimento de sua própria segurança. Quando o direito de uns torna-se mais importante do que o de outros? A que ponto nosso interesse próprio nos levou para considerarmos aceitável tal retrocesso? Interessante, nesta senda, citar um icônico trecho da obra literária O Sol É Para Todos:
(…) Se só existe um tipo de gente, por que as pessoas não se entendem? Se são todos iguais, por que se esforçam para desprezar uns aos outros? (LEE, 2006, p. 283).
O Direito Penal do Inimigo, em sua prórpia essência segrega os seres humanos, pintando um abismo entre os que se enquadram como “cidadãos” e outros como “inimigos”, fomentando a desigualdade entre ambos os perfis no mais alto nível: a guerra. Nela, não há nenhum princípio moral, somente a luta entre o interesse da maioria e o total desrespeito à minoria.
3 REFLEXOS NO BRASIL
3.1 Quanto aos Crimes
A priori, é mister frisar que no Brasil, diferentemente dos Estados Unidos e da França, não sofreu uma grande incidência do Direito Penal do Inimigo. Como foi exposto anteriormente, é necessária a criação de um novo sistema penal, voltado ao combate e consequente derrota do inimigo para que tal teoria se configure.
Entrementes, em nossa legislação pátria, podemos encontrar meros reflexos do ideal de Jakobs, vez que não foi criado um sistema penal totalmente diferente para alguns. Frise-se que há meros fragmentos do Direito Penal do Inimigo no Brasil, não sendo possível afirmar que essa teoria foi integralmente positivada aqui.
Isso ocorre por força constitucional do artigo 5º da Constituição Federal, que já em seu “caput” institui o princípio da isonomia, vedando disparidades de tratamento no âmbito jurídico. Em outros momentos, igualmente há fortes obstáculos para a implementação total do Direito Penal do Inimigo no Brasil, vez que nela há a proibição de práticas de tortura, há a proteção da integridade física e moral do preso, há também a garantia do contraditório e da ampla defesa, garantindo o devido processo legal e, além disso, veda a incomunicabilidade do preso.
Diante disso, far-se-á necessária a exposição destes fragmentos em alguns crimes elencados no ordenamento jurídico pátrio.
Como visto anteriormente, uma das características do Direito Penal do Inimigo é a adoção da perspectiva prospectiva do Direito Penal, logo, é a criação de um tipo penal autônomo anterior à ofensa de um bem jurídico tutelado. Pune-se alguém, retirando seus direitos constitucionais, antes mesmo da ocorrência de uma suposta violação.
Nesta esteira, à título exemplificativo, é possível citar três crimes que demonstram de modo cristalino a antecipação da tutela penal, sendo eles: o crime de petrechos para falsificação de moeda (artigo 291 do Código Penal); o crime de associação criminosa (artigo 288 do Código Penal); os crimes de posse/porte ilegal de arma de fogo de uso permitido (artigos 12 e 14, “caput”, do Estatuto do Desarmamento) e o crime de penetrar em unidades de conservação (artigo 52 da Lei nº 9.605/98).
Assim, faz-se mister colacionar o artigo 291 do Código Penal, in verbis:
Art. 291 – Fabricar, adquirir, fornecer, a título oneroso ou gratuito, possuir ou guardar maquinismo, aparelho, instrumento ou qualquer objeto especialmente destinado à falsificação de moeda:
Pena – reclusão, de dois a seis anos, e multa.
Tal crime tem como objetivo tutelar o bem jurídico da fé pública, vez que uma moeda falsa colocaria em xeque a credibilidade que o indivíduo tem no Estado e em suas instituições financeiras. Nas palavras do penalista Muñoz Conde (1999, p. 670), conforme citado por Nucci (2017, p. 1.035) esse tema é explanado com maestria:
Trata-se da confiança estabelecida pela sociedade em certos símbolos ou signos, que, com o decurso do tempo, ganham determinada significação, muitas das vezes impostas pelo Estado. Esse é o papel, por exemplo, da moeda, que possui um valor econômico a ela atrelado. Os signos gozam de crédito público e são, também, meios de prova. Sem a fé pública não se poderia desenvolver a contento os negócios jurídicos em geral. (NUCCI, 2017, p. 1.035).
Entretanto, como é possível extrair do tipo penal do artigo 291 do Código Penal, este crime é simplesmente um meio para um fim, qual seja a falsificação de moeda propriamente dita. Logo, é dotado de subsidiariedade implícita, pois configura mero ato preparatório do crime principal de moeda falsa e, quando configurado o crime principal, o crime do artigo 291 do Estatuto Repressivo será absorvido, respondendo o agente somente pelo delito de moeda falsa, nos termos da teoria da consunção.
Deste modo, é imperioso frisar o fragmento do Direito Penal do Inimigo neste crime, vez que é uma exceção para a dogmática jurídica de que não se pune os atos preparatórios do iter criminis (caminho do crime).
A antecipação da tutela penal, permitindo a punição de atos preparatórios foi até mesmo positivada de acordo com o entendimento jurisprudencial do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais:
[...] Em regra, os atos preparatórios não são puníveis, salvo quando configurarem, por si mesmos, infração penal. [...] (TJ/MG, Primeira Câmara Criminal, Re. Em sentido Estrito 1.0512.14.002077-1/001, Rel. Alberto Deodato Neto, julgado em 16/06/2015).
Logo, é nítido que o crime de petrechos para a falsificação de moeda não atingiu nenhum bem jurídico tutelado ainda, pois se trata de ato preparatório, vez que a consumação da violação da fé pública nem se iniciou de fato.
Tal fato igualmente ocorre no crime de associação criminosa, contido no artigo 288 do Código penal, que aduz:
Art. 288 – Associarem-se 3 (três) ou mais pessoas, para o fim específico de cometer crimes:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos.
Ora, por óbvio tal conduta também se trata de mero ato preparatório, vez que é a mera reunião de pessoas com o mesmo desígnio criminoso. Logo, como afirmar que há uma violação do bem jurídico paz pública quando a mesma ainda não chegou a ser violada?
Ademais, também possuem essa característica os crimes de posse ou porte de arma de fogo de uso permitido, elencados nos artigos 12 e 14, “caput”, do Estatuto do Desarmamento, in verbis:
Art. 12 - Possuir ou manter sob sua guarda arma de fogo, acessório ou munição, de uso permitido, em desacordo com determinação legal ou regulamentar, no interior de sua residência ou dependência desta, ou, ainda no seu local de trabalho, desde que seja o titular ou o responsável legal do estabelecimento ou empresa:
Pena – detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.
Art. 14 - Portar, deter, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob guarda ou ocultar arma de fogo, acessório ou munição, de uso permitido, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar:
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.
Diante da redação de ambos artigos, é nítido que não há a violação de nenhum bem jurídico tutelado, muito menos a segurança pública, pois qualquer objeto pode ofendê-la, a depender de sua destinação; uma faca, por exemplo, se utilizada com o intuito de facilitar a prática criminosa, torna-se um risco para a segurança pública.
Nestes crimes suso colacionados, é nítida a perspectiva prospectiva, pois há vários motivos que induzem uma pessoa a ter posse e/ou porte de arma de fogo os quais não implicam qualquer risco à segurança pública. Ora, o mero fato de “possuir” “manter sob sua guarda”, “portar”, “deter”, “adquirir”, “fornecer”, “receber”, “ter em depósito”, “transportar”, “ceder”, “emprestar”, “remeter”, “empregar”, ‘manter sob guarda” ou “ocultar” arma de fogo e/ou munição não configura logo qualquer violação a qualquer bem jurídico, somente consiste em ato preparatório caso haja iter criminis.
Novamente, pune-se uma conduta antes mesmo de se configurar uma efetiva lesão a um objeto jurídico, como ocorre nos crimes formais, definidos por Nucci (p. 139, 2017) como “delitos que se contenham com a ação humana esgotando a descrição típica, havendo ou não resultado naturalístico”.
Outrossim, impossível não mencionar o artigo 52 da Lei nº 9.605/98, in verbis:
Art. 52 - Penetrar em Unidades de Conservação conduzindo substâncias ou instrumentos próprios para caça ou para exploração de produtos ou subprodutos florestais, sem licença da autoridade competente:
Pena - detenção, de seis meses a um ano, e multa.
Assim, igualmente podemos constatar que há a antecipação da tutela penal no crime suso transcrito, vez que antes mesmo de ocorrer uma prática delituosa, o mero fato de alguém adentrar em uma Unidade de Conservação ambiental com “substâncias ou instrumentos próprios para caça ou para exploração de produtos ou subprodutos florestais, sem licença da autoridade competente”, já configura crime. Mais uma vez, pune-se um ato preparatório antes mesmo de uma real violação a um bem jurídico tutelado pela lei penal.
Contudo, embora esteja indubitavelmente presente a perspectiva prospectiva, não seria correto afirmar que tais crimes são exemplos do Direito Penal do Inimigo no Brasil, tendo em vista que foi adotada somente essa característica. Restam ausentes a figura do Inimigo, a delimitação de penas mais rigorosas, um regime processual penal específico e a relativização de direitos e garantias fundamentais. Esses crimes acima abordados não são um direito penal de guerra, apenas antecipações punitivas feitas pelo legislador; entretanto, se são relevantes, adequadas ou não, é mero subjetivismo. O cristalino é que não incide de fato o Direito Penal do Inimigo nestes crimes.
3.2 Quanto às Leis
Primordialmente, é preciso afirmar que há também fragmentos do Direito Penal do Inimigo na Lei de Terrorismo, na Lei de Crimes Hediondos e no Regime Disciplinar Diferenciado (RDD). Em todos os casos, diferentemente dos crimes anteriormente explicitados, houve uma seletividade penal advinda da criação de leis específicas para alguns delitos.
A lei antiterror brasileira (nº 13. 260/16), possui vários pontos questionáveis, entretanto, o artigo 5º merece ênfase por possuir similaridade com algumas características do Direito Penal do Inimigo, vejamos:
Art. 5º Realizar atos preparatórios de terrorismo com o propósito inequívoco de consumar tal delito:
Pena - a correspondente ao delito consumado, diminuída de um quarto até a metade.
§ 1º Incorre nas mesmas penas o agente que, com o propósito de praticar atos de terrorismo:
I - recrutar, organizar, transportar ou municiar indivíduos que viajem para país distinto daquele de sua residência ou nacionalidade; ou
II - fornecer ou receber treinamento em país distinto daquele de sua residência ou nacionalidade.
§ 2º Nas hipóteses do § 1º, quando a conduta não envolver treinamento ou viagem para país distinto daquele de sua residência ou nacionalidade, a pena será a correspondente ao delito consumado, diminuída de metade a dois terços.
Neste artigo há uma explicita menção à antecipação da tutela penal no que tange à punição de atos preparatórios, que incide na discussão levantada no capítulo anterior; não há bem jurídico violado nesse momento, vez que somente haverá quando iniciada a efetiva ofensa com a execução do crime de terrorismo.
Impende ressaltar também que essa lei específica tem como caráter também incidente no Direito Penal do Inimigo a punição direta do autor e não dos atos por ele praticados. Isso fica nítido quando observado o §1º, inciso II, do artigo suso colacionado. Assim, o mero fato de receber treinamento em outro país que não seja o de origem pode gerar a responsabilização criminal por terrorismo.
Contudo, não há a positivação de fins de garantias e direitos individuais, não consta presente a adoção de um direito penal autônomo para aquela pessoa que se distanciou da sociedade.
Em relação à Lei de Crimes Hediondos, insta salientar que ela é aplicável somente para determinados crimes, conforme o artigo 1º da Lei nº 8.072/90; portanto, é aplicável a indivíduos específicos que os praticam. Neste caso, há uma especificação da tutela penal, um dos fragmentos do Direito Penal do Inimigo.
Como já anteriormente explicitado, o Direito Penal do Inimigo não é meramente um direito, mas um sistema penal, que abrange regras de direito material, processual e de execução penal diferenciadas para o combate do Inimigo.
No caso da Lei dos Crimes Hediondos, o legislador instituiu uma progressão de pena mais rigorosa para aqueles que praticam os crimes nela elencados, sendo ela de 2/5 a 3/5 de cumprimento da pena ou do cumprimento do restante da pena, a partir da data-base. Assim, mostra-se inequívoco o rigor maior para o condenado fazer jus a esse direito do que para aquele que cometeu um delito fora do rol de hediondos.
Entretanto, impende frisar que não há antecipação da tutela penal nos crimes hediondos, ao passo de que nessa Lei há um rigor maior no que tange à prisão cautelar, à progressão de pena com um modelo mais gravoso e o livramento condicional. Logo, há somente um fragmento do Direito Penal do Inimigo, pois não há a previsão de um direito penal preventivo, não há a punição de atos preparatórios.
Ademais, é importante igualmente trazer à baila o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD) e sua conexão com o Direito Penal do Inimigo. Do mesmo modo das Leis expostas nesse capítulo, tal previsão jurídica somente possui alguns fragmentos da teoria de Jakobs, pois não se trata de um direito penal autônomo e nem contrário ao direito penal comum (para todos os cidadãos).
O RDD é somente uma situação específica durante o cumprimento da pena, presente na Lei de Execução Penal Brasileira, com o objetivo de ser um instrumento de diminuição da criminalidade organizada. Incumbe salientar que o RDD é somente uma sanção disciplinar diferenciada, vez que não é um regime penal (fechado, semiaberto e aberto), logo, não é um regime autônomo.
Adicionalmente, por ser o RDD uma punição dentro de uma punição (ocorre já durante a fase da execução penal quando enquanto está cumprindo a pena, o condenado comete falta grave), é interessante expor um fragmento do Direito Penal do Inimigo, no que tange a um indício de direito penal do autor.
No RDD, diferentemente da Lei de Terrorismo Brasileira e da Lei de Crimes Hediondos, há a caracterização mais incisiva da figura do “inimigo”, sendo aquele indivíduo que está subvertendo a ordem pública e o que se coloca contra a disciplina. Deste modo, há uma definição um tanto mais delimitada de “inimigo” do que as outras Lei citadas, demonstrando exatamente quem vai ser atingido por essa sanção. Nesta senda, o doutrinador Cézar Bitencourt aduz:
Com efeito, à luz do novo diploma legal, percebe-se que às instâncias de controle não importa o que se faz (direito penal do fato), mas sim quem faz (direito penal do autor). Em outros termos, não se pune pela prática de fato, mas sim pela qualidade, personalidade ou caráter de quem faz, num autêntico Direito Penal do autor (BITENCOURT, 2012, p. 162).
Em outro vértice, faz-se imperioso colacionar o posicionamento favorável ao RDD do penalista Guilherme de Souza Nucci:
Se todos os dispositivos do Código Penal e da Lei de Execução Penal fossem fielmente cumpridos, há muitos anos, pelo Poder Executivo, encarregado de construir, sustentar e administrar os estabelecimentos penais, certamente o crime não estaria, hoje, organizado, de modo que não haveria necessidade de regimes como o estabelecido pelo art. 52 da Lei de Execução Penal. A realidade distanciou-se da lei, dando margem à estruturação do crime, em todos os níveis. Mas, pior, organizou-se a marginalidade dentro do cárcere, o que é situação inconcebível, mormente se pensarmos, que o preso deve estar, no regime fechado, à noite, isolado em uma cela, bem como, durante o dia, trabalhando ou desenvolvendo atividades de lazer ou aprendizado. Diante da realidade, oposta ao ideal, criou-se o RDD. Tanto quanto a pena privativa de liberdade, é o denominado mal necessário, mas não se trata de uma pena cruel (NUCCI, 2014, p. 19).
Assim, extrai-se do pensamento de Nucci acima colacionado, que o RDD é um mal necessário para conter a criminalidade organizada e dar segurança à sociedade brasileira. Entrementes, se é necessário ou não, frise-se que há inúmeros debates e posicionamentos contrários e favoráveis que entram na seara subjetiva de cada penalista, o que não incorpora o objetivo da presente pesquisa.
De qualquer forma, em qualquer um dos pontos da legislação penal brasileira podemos encontrar fragmentos do Direito Penal do Inimigo, como a antecipação da tutela penal e a adoção de penas diferentes (mais rigorosas para alguns crimes em específico); entretanto, não há uma clara redução de direitos e garantias fundamentais e nem a ideia de “combate” ao inimigo.
Logo, é possível afirmar que em alguns pontos do direito penal brasileiro há fragmentos do Direito Penal do Inimigo, mas ele não se encontra em sua totalidade, como já exposto anteriormente. Desta feita, sob a ótica do RDD, está presente uma definição de “inimigo” e também um rigor diferenciado, mas não há uma antecipação da tutela penal nessa sanção, como não há também em relação a todos os crimes hediondos. Destarte, restam ausentes características para afirmar que há, efetivamente, o Direito Penal do Inimigo no Brasil.
3.3 Críticas ao Direito Penal do Inimigo
Inicialmente, é interessante afirmar que o direito penal do inimigo antes foi uma mera constatação da Jakobs, entretanto, após o ataque terrorista de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos, passou a ser uma defesa de um direito penal que estava surgindo e que também era visto como necessário, não apenas à luz da época, mas para a prevenção de futuras ameaças terroristas.
Para o doutrinador, o direito penal do inimigo tem que ser colocado em prática e implementado porque o direito penal atual é insuficiente para tratar de determinados crimes que são praticados por quem Jakobs entende que é o inimigo.
Nesta senda, Luiz Gracia Martín (2007) sabiamente faz uma crítica acerca do Direito Penal do Inimigo, evidenciando o preconceito que essa teoria carrega. Além de pregar um preconceito, há igualmente um preconceito em relação ao próprio Direito Penal do Inimigo. Ou seja, tal teoria, como proposta de Jakobs, possui uma seara de evidente discriminação ao tratar algumas pessoas como inimigas; por outro lado, também é criticada e sofre um preconceito pela carga ideológica da expressão utilizada, até mesmo pelo fato de ser apresentada por um doutrinador alemão.
Ainda de acordo com Garcia Martín (2007), o fato de o Direito Penal do Inimigo ser apresentado por um alemão, remete a alguém que cresceu ouvindo histórias sobre o nazismo e que está na nação em que houve o Holocausto. Por esse fato, Jakobs já é visto com desconfiança pela comunidade Internacional.
Já acerca da carga ideológica do conceito de “inimigo”, Martín aduz que a expressão “Direito Penal do Inimigo” suscita, ao ser pronunciada, determinados preconceitos e precauções motivadas pela indubitável carga ideológica e emocional do termo “inimigo”.
Desta feita, para Martín, ao fazer a conexão entre a nacionalidade de Jakobs e expressão “inimigo” de sua teoria, surge automaticamente um preconceito e, a partir desse momento, tudo o que se ouve em relação do Direito Penal do Inimigo resta contaminado por um conceito prévio, contaminando toda a compreensão posterior, então, há uma tendência humana em observar tudo o que é abordado por Jakobs sob uma ótica nazista.
Em extrema consonância com a visão anteriormente explicitada, é possível perceber a veracidade nas palavras de Martín quando analisado o posicionamento de Dotti (p. 9/10, 2005) acerca do Direito penal do Inimigo, quando o mesmo aduz que tal teoria é uma ressureição de uma visão nazista sobre o ser humano, porém sob o enfoque do preconceito social.
Ademais, no âmbito brasileiro, imperioso mencionar as críticas feitas por Cancio Meliá, elencadas pelo ilustre doutrinador Damásio de Jesus (2008):
- O Direito Penal do Inimigo afronta a Constituição, pois esta não admite que alguém seja tratado pelo Direito como mero objeto de coação, despido de sua condição de pessoa (ou de sujeito de direitos);
- O modelo decorrente do Direito Penal do Inimigo não cumpre sua promessa de eficácia, uma vez que as leis que incorporam suas características não têm reduzido a criminalidade;
- O fato de haver leis penais que adotam princípios do Direito Penal do Inimigo não significa que ele possa existir conceitualmente, como uma categoria válida dentro de um sistema jurídico;
- Os chamados “inimigos” não possuem a “especial periculosidade” apregoada pelos defensores do Direito Penal do Inimigo, no sentido de praticarem atos que põem em xeque a existência do Estado. O risco que esses “inimigos” produzem dá-se mais no plano simbólico do que no real;
- A melhor forma de reagir contra o “Inimigo” e confirmar a vigência do ordenamento jurídico é demonstrar que, independentemente da gravidade do ato praticado, jamais de abandonarão os princípios e as regras jurídicas, inclusive em face do autor, que continuará sendo tratado como pessoa (ou “cidadão”);
- O Direito Penal do Inimigo, ao retroceder excessivamente na punição de determinados comportamentos, contraria um dos princípios basilares do Direito Penal: o princípio do direito penal do fato, segundo o qual não podem ser incriminados simples pensamentos (ou a “atitude interna” do autor).
Desta feita, é notório que há grandes críticas acerca do Direito Penal do Inimigo, especialmente por essa teoria ser dotada de elementos inconstitucionais e indubitavelmente violadores de direitos e garantias fundamentais. Impende registrar, in fine, as sábias palavras de Zaffaroni:
Na medida em que a doutrina penal legitime ou ignore, com o nome que for o tratamento diferenciado dos inimigos ou estranhos, esse comportamento está atingindo o Estado de direito concreto, real ou histórico e, ao mesmo tempo, está invalidando o princípio diretor do Estado direito, porque toda racionalização doutrinaria nesse sentido implica uma quebra do instrumento orientador da função política do direito penal. Não é de se estranhar, portanto, que tantas vezes o direito penal tenha perdido o rumo (ZAFFARONI, 2007, p. 190).
Nesta senda, é importante ressaltar que por mais extremas que as situações aparentam, é imprescindível reconhecer que o Estado de Direito deve sempre prevalecer, de modo a garantir que o direito das maiorias não se sobreponha aos das minorias, resguardando, deste modo, as garantias constitucionais de todos e impedindo que qualquer “guerra” faça o Direito Penal “perder seu rumo”.
CONCLUSÃO
O Direito Penal do Inimigo é uma teoria preconizada pelo alemão Günther Jakobs (2018), diante da ineficácia do Direito Penal ordinário em reprimir os crimes mais graves que ameaçam o próprio Estado, cometidos pelos “inimigos”, aqueles cidadãos possuem características incompatíveis com a vida em sociedade e ameaça a própria existência dela.
Desta forma, o Direito Penal do Inimigo surge como uma forma de garantir a existência da sociedade e “combater” aquele que a ameaça. Há diversas características que se mostram evidentes neste Direito Penal de “guerra”, sendo elas: a determinação de um “inimigo”; a antecipação da tutela penal; a inobservância de direitos e garantias constitucionais aos “inimigos”, por não serem “cidadãos”; a elevação de penas, ao passo que se tornem desproporcionais; a ampliação dos poderes da polícia e a consequente diminuição dos poderes dos magistrados, a valoração exacerbada da confissão como meio de prova e a possibilidade de sua obtenção mediante tortura.
Diante do exposto, é válido ressaltar que o Direito Penal do Inimigo, ao passo que em um momento anterior era somente uma especulação da parte de Jakobs (2018), ganhou crescente e irrefutável notoriedade após o ataque terrorista de 11 de setembro de 2001 aos Estados Unidos.
A partir deste momento, foi defendida por Jakobs (2018), a necessidade da implantação real da teoria em face à ameaça crescente do terrorismo, fato que foi adotado por muitos países, como por exemplo os Estados Unidos, a França e até mesmo o Brasil, de maneira “simbólica”.
Os Estados Unidos reagiram ao ataque acima mencionado com o USA-PATRIOT, assinado pelo então presidente Bush, dotado de inconstitucionalidades e violações a garantias e direitos fundamentais. Após, o presidente Obama assinou o USA-FREEDOM, que possuiu o objetivo de substituir o USA-PATRIOT com normas mais assecuratórias de direitos referentes à proteção de dados aos “cidadãos”; porém, preservou alguns pontos de seu antecessor e endureceu algumas normas para combater o “inimigo”.
No mesmo giro, a França, diante da crescente onda de ataques terroristas em 2013, reforçou sua legislação antiterrorista em 2017, prevendo uma lei até mais “dura” que a americana, com normas de relativização de direitos e garantias fundamentais cheias de traços xenofóbicos.
Assim, diante de uma sucinta análise das três leis acima citadas, foi constatada uma grande incidência do Direito Penal do Inimigo nas mesmas e o caráter cristalino de “combate” e “guerra” ao terrorista (inimigo).
Entrementes, no Brasil, embora haja algumas características do Direito Penal do Inimigo, não é possível afirmar que há uma incidência como exposto nos Estados Unidos e na França, ao passo que não há na legislação pátria uma lei específica dirigida ao “combate” de um certo indivíduo atentatório à sociedade que possua todas as características propostas por Jakobs (2018) para eliminá-lo.
Ressalte-se que embora tenha inspirado vários países na “luta” antiterror, o Direito Penal do Inimigo é criticado em peso por vários doutrinadores, diante das várias inconstitucionalidades que ele prega, da incompatibilidade com vários princípios constitucionais, do preconceito difundido por essa teoria, da punição de atos preparatórios, da implementação do direito penal do autor, dentre outros.
Assim, como bem explicita Manuel Cancio Meliá (2018, p. 114), embora é evidente a inconstitucionalidade e o “perigo” de incorporar o Direito Penal do Inimigo no Direito Penal ordinário, isso ocorre principalmente no que tange às leis antiterror, como já exposto nos capítulos anteriores desta monografia.
Nesta senda, é imperioso citar a contextualização do referido autor:
(...) o “Direito Penal” do inimigo contamina com especial facilidade – como um pouco de azeite industrial um meio aquático natural – o Direito Penal ordinário (JAKOBS, 2018, p. 114).
Impende aclarar deste modo, a importância da defesa do Estado Democrático de Direito juntamente com a garantia de princípios e garantias constitucionais de forma igualitária para todos os seres humanos, vez que o Direito Penal ordinário já se encontra contaminado por esse “azeite industrial”, sendo o papel de todos os operadores do direito “filtrar” o que é constitucional e o que não é.
REFERÊNCIAS
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BRASIL. Constituição Federal de 1988. <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03 /constituicao/constituicaocompilado.htm> Acesso em: 23 de março de 2019.
BRASIL. Lei n° 7.210, de 11 de julho de 1984. Lei de Execução Penal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L7210.htm. Acesso em: 23 de fevereiro de 2019.
BRASIL. Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003. Estatuto do Desarmamento. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.826.htm>. Acesso em: 02 abr. 2020.
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BRASIL. Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990. Lei de Crimes Hediondos. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8072.htm>. Acesso em: 02 abr. 2020.
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