A prática de extração mineral, sem as licenças para tanto, implica discussão quanto à capitulação jurídica do fato. Defendia-se que, com a entrada em vigor da Lei 9.605/1998, a conduta amoldar-se-ia, apenas, à figura típica prevista no artigo 55 da Lei dos Crimes Ambientais, não se devendo aplicar o artigo 2º da Lei 8.176/1991, o qual estaria derrogado, devido ao fato de aquela lei ser mais específica (e recente) que esta.
Com o passar do tempo, porém, a jurisprudência foi-se firmando em sentido distinto. STF e STJ, hoje, exibem julgados que pugnam pela existência de concurso formal de crimes (art. 69 do CP) quando há prática de extração irregular (rectius: sem as devidas licenças ou em desacordo a elas) de minério.
O fundamento comumente usado é o de que, na espécie, estamos diante de duas normas que protegem bens jurídicos distintos. A Lei 9.605/1998 visa a proteger o Meio Ambiente. A seu turno, a Lei 8.176/1991 visa a proteger a ordem econômica.
De fato, a leitura da ementa dessas normas seria suficiente para a percepção de que elas cuidam de bens jurídicos distintos:
Lei 8.176/1991: Define crimes contra a ordem econômica e cria o Sistema de Estoques de Combustíveis.
Lei 9.605/1998: Dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e dá outras providências.
No HC 144.118 - STF (relatora: Ministra Rosa Weber), o voto relator deixa clara essa distinção entre os bens jurídicos protegidos pelas duas leis em comentário:
Carece de plausibilidade jurídica a tese defensiva, porquanto o ato dito coator está em consonância com a jurisprudência desta Corte firmada no sentido de que “Como se trata, na espécie vertente, de concurso formal entre os delitos do art. 2º da Lei n. 8.176/1991 e do art. 55 da Lei n. 9.605/1998, que dispõem sobre bens jurídicos distintos (patrimônio da União e meio ambiente, respectivamente), não há falar em aplicação do princípio da especialidade para fixar a competência do Juizado Especial Federal” (HC 111.762/RO, Rel. Min. Cármen Lúcia, 2ª Turma, DJe 04.12.2012); e “Os artigos 2º da Lei n. 8.176/91 e 55 da Lei n. 9.605/98 tutelam bens jurídicos distintos: o primeiro visa a resguardar o patrimônio da União; o segundo protege o meio ambiente. (...) Daí a improcedência da alegação de que o artigo 55 da Lei n. 9.605/98 revogou o artigo 2º da Lei n. 8.176/91” (HC 89.878/SP, Rel. Min. Eros Grau, 2ª Turma, DJe 14.5.2010).
No mesmo sentido, confiram-se as razões expostas no julgamento do Resp 942.326 - STJ.
Ainda, o julgado do TRF 3 disponível no seguinte link: https://web.trf3.jus.br/acordaos/Acordao/BuscarDocumentoGedpro/4008395.
Firmada essa premissa, doravante passaremos a abordar como se dá a regulamentação ambiental, de um lado (importante para a caracterização do tipo penal previsto no artigo 55 da Lei 9.605/1998) e, de outro, como se dá a regulamentação econômica (importante para a caracterização do tipo previsto no artigo 2º da Lei 8.176/1991).
De fato, aquele que pretende explorar minério deverá obter as licenças ambientais (Licença Prévia, Licença de Instalação e Licença de Operação), conforme exigências previstas na Lei 6.938/1981 e na Resolução 237/97 – CONAMA. E por que são necessárias licenças ambientais para a prática da mineração? Porque se trata de atividade potencialmente lesiva ao meio ambiente, implicando, portanto, aplicação do artigo 225, IV, da Constituição.
Aliás, frise-se, é tão evidente o potencial lesivo ao Meio Ambiente da atividade de mineração que a própria Constituição, depois de frisar que os minerais são bens da União, prevê compensação financeira a Estados e Municípios em que essa atividade for explorada (art. 20, § 1º, Lei da Leis).
Seguindo, paralelamente à necessidade de obtenção das licenças ambientais, o empreendedor deverá obter os títulos minerários respectivos, conforme previsão legal contida no Código de Mineração (vide Decreto 9.406/2018, que regulamenta as Leis 6.567/1978, 7.805/1989, 13.575/2017 e o DL 227/1967).
Significa dizer que, de um lado, aquele que pretende praticar extração mineral válida deverá obter as licenças ambientais pertinentes - licença prévia, de instalação e de operação, sem as quais se caracteriza o crime previsto no artigo 55 da Lei 9.605/1998:
Art. 55. Executar pesquisa, lavra ou extração de recursos minerais sem a competente autorização, permissão, concessão ou licença, ou em desacordo com a obtida:
Pena - detenção, de seis meses a um ano, e multa.
O crime igualmente se caracteriza se o empreendedor, a despeito de ter obtido as licenças, pratica a atividade em desacordo com suas condicionantes.
Por outro lado, se o mesmo empreendedor tampouco detém os títulos minerários (também chamados de licenças econômicas), vale dizer, se não tem Autorização de Pesquisa, Concessão de Lavra, Licenciamento ou Permissão de Lavra Garimpeira, conforme o caso, ele estará incorrendo no crime previsto no artigo 2º da Lei 8.176/1991:
Art. 2º Constitui crime contra o patrimônio, na modalidade de usurpacão, produzir bens ou explorar matéria-prima pertencentes à União, sem autorização legal ou em desacordo com as obrigações impostas pelo título autorizativo. Pena detenção, de um a cinco anos e multa. § 1º Incorre na mesma pena aquele que, sem autorização legal, adquirir, transportar, industrializar, tiver consigo, consumir ou comercializar produtos ou matéria-prima, obtidos na forma prevista no caput deste artigo.
Em resumo, temos que, para a prática regular da atividade de mineração, são necessárias licenças de dois distintos matizes:
LICENÇAS AMBIENTAIS |
LICENÇAS ECONÔMICAS |
Licença prévia |
Autorização de pesquisa |
Licença de instalação |
Concessão de lavra |
Licença de operação |
Permissão de lavra garimpeira |
Licenciamento |
|
(Registro de extração) |
Sem as licenças ambientais ou em desacordo a elas, está caracterizada a prática do crime previsto no artigo 55 da Lei 9.605/1998, cujo elemento normativo remete à ausência dessas licenças.
Sem as licenças econômicas (títulos minerários) ou em desacordo a suas condicionantes, temos caracterizada a prática do art. 2º da Lei 8.176/1991, cujo elemento normativo remete à falta destes títulos.
Dessa forma, resta caracterizada a correção do posicionamento jurisprudencial de que, quando se dá a extração mineral irregular, há concurso formal de crimes, pois as multicitadas leis protegem bens jurídicos distintos.
Mais do que isso, porém, o presente artigo visava demonstrar que o elemento normativo dos tipos penais em discussão remetem a regulamentações distintas. O da Lei Ambiental, à falta das licenças ambientais ou o descumprimento de suas condicionantes. O da Lei dos Crimes contra a Ordem Econômica, à falta das licenças econômicas ou o descumprimento de suas condicionantes.
Assim, ao perceber que cada tipo penal remete a uma regulamentação inteiramente distinta, fica extremamente simples perceber que não há conflito de normas e, em consequência, compreender também o porquê de os tribunais seguirem firmes na remansosa jurisprudência que pugna pelo concurso material de crimes, já que estamos diante de proteção a bens jurídicos absolutamente distintos: de um lado, o Meio Ambiente; de outro, o bem da União (minério).