A IDENTIDADE GENÉTICA COMO GARANTIA À DIGNIDADE HUMANA E AO DIREITO À SAÚDE.

Resumo:


  • O genoma humano é o conjunto de genes contidos nos cromossomos, e a identidade genética é a base biológica da individualidade de uma pessoa, sendo única e irrepetível.

  • A proteção jurídica da identidade genética humana ganhou destaque com o avanço das ciências genéticas, levando à criação de normas que respeitam os direitos fundamentais e a dignidade humana, tanto em âmbito nacional quanto internacional.

  • O direito à identidade genética é considerado um direito fundamental, mas não é absoluto, estando sujeito a limitações e ponderações diante de outros direitos fundamentais em situações de conflito ou colisão de interesses.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Tendo em vista a tamanha importância de se resguardar e normatizar o direito à Identidade Genética, pesquisa-se sobre a Identidade Genética como garantia ao dignidade humana e o direito à saúde, a fim de analisar o direito de identidade do indivíduo.

INTRODUÇÃO
 

Os avanços tecnológicos se tornaram cada vez mais expressivos no decorrer dos anos, tendo-se chegado ao patamar de desenvolvimento em que se é possível decodificar o genoma humano, o que até pouco tempo atrás tinha- se como impossível. É inquestionável que tais avanços trouxeram inúmeros benefícios para a humanidade, mas vale ressaltar que tudo tem um preço. Esses avanços nas pesquisas científicas podem acabar por objetificar a pessoa, podendo violar sua própria dignidade.

Na atualidade, em consequência dos avanços científicos, da ameaça e da violação da vida, da dignidade da pessoa e dos direito fundamentais, houve o surgimento de novas gerações de direito fundamentais, como exemplo os direitos fundamentais da 4ª geração, englobando os aspectos genéticos agora inerentes ao mundo humano.

Assim, em razão da problemática acerca do desenvolvimento das tecnologias versus a dignidade humana prevista, bem como os limites e até mesmo o conceito do que é a dignidade humana, a discussão acerca do assunto é de extrema importância.

Trata-se de um direito emergente, o direito à identidade genética, que rapidamente se elevou a garantia fundamental protegida pela Constituição Federal de 1988, além de diversas Declarações Internacionais, como a Declaração Internacional sobre Dados Genéticos Humanos, a Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos e a Declaração das Nações Unidas sobre a Clonagem Humana, que envolvem o tema, tamanha sua relevância para a sociedade como um todo.

Dessa forma, frente aos dilemas originados pelas pesquisas científicas, viu-se necessário definir normas que estejam consoantes com o respeito aos direitos fundamentais, em especial ao direito à Dignidade Humana.

Quanto à concepção acerca da individualidade da identidade genética, pode-se defini-la como um bem jurídico fundamental, sendo uma das manifestações essenciais da personalidade humana, visto que cada genoma é único, com suas particularidades e especificidades, sendo um bem resguardado pela Constituição Federal, e objeto de ostensiva fiscalização quando se trata da manipulação do genoma humano para fins de pesquisas científicas.

Além da tênue linha onde finda o limite para a manipulação do genoma humano, até mesmo para estudos voltados à clonagem de pessoas, que ensejam discussões acerca da bioética, temos, por outro lado, o direito à saúde, o direito à família, além de diversos benefícios e possibilidades que o ser humano só foi capaz de experimentar através do avanço nas pesquisas.

O mapeamento do genoma humano possibilitou o diagnósticos de doenças graves e agressivas nos seus estágios iniciais, que tratadas a tempo, concederam aos pacientes qualidade e tempo de vida, havendo casos em que foi possível inclusive prevenir a aparição de cânceres, e até mesmo a indicação de tratamentos mais efetivos capazes de salvar o indivíduo da morte.

Sendo assim, o presente trabalho visa demonstrar tamanha a importância de se resguardar e normatizar o direito à Identidade Genética, direito esse elevado a direito fundamental e de grande impacto na vida social do indivíduo, seja na saúde, na família, no trabalho, quanto em outras esferas sociais e científicas.

O direito à identidade genética é relativamente recente, se pensarmos na história da humanidade. Com o advento da Segunda Guerra Mundial, o mundo vivenciou uma era de terror e medo, sendo também nesse período em que, encabeçado pelo Ditador Adolf Hitler, ocorreram diversos experimentos com seres humanos, sem escrúpulos e sujeitando indivíduos a situação extremamente desumanas. Diante de tais acontecimento, inúmeras nações se uniram e iniciaram uma discussão relacionada ao genoma humano, até onde é possível utilizá-lo em pesquisas, quem é detentor do direito a identidade genética, dentre diversos outros pontos levantados.

Consequentemente, surgiram no decorrer do tempo declarações e legislações que visam tentar organizar o e normatizar a manipulação do genoma humano, protegendo o direito à identidade genética, direito este fundamental e essencial para a expressão do indivíduo na sociedade e a preservação da dignidade humana.

No primeiro capítulo serão abordas as noticias referentes a genética manipulada, bem como os tratados e declarações internacionais que regulam o tema, como também a noções preliminares do genoma humano.

Ainda no primeiro capítulo será analisado mais a fundo as concepções filosóficas, bem como os conceitos e definições em diversos países, de pensadores como Kant, Hegel, Habermas e Alexys.

Tais autores servirão de base para traçar uma linha de pensamento acerca do conceito contemporâneo de dignidade humana, sua relação com a bioética e com a identidade genética, nessa senda importante destacar o imperativo categórico de Kant, que submete ao racionalismo, enunciando a ideia de pessoa.

Na atualidade e no âmbito nacional, a Constituição Brasileira, prevê em seu artigo 1º, inciso III, o direito à dignidade humana como fundamento do Estado Democrático de Direito:

 

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui- se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

III - a dignidade da pessoa humana;

(BRASIL, 1988, art. 1º)

 

No segundo capítulo será abordado acerca de dimensão internacional do assunto, bem como demonstrar a evolução da guarda de direito fundamental. Oportunidade em que deve-se citar a Declaração Internacional sobre Dados Genéticos Humanos, a Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos e a Declaração das Nações Unidas sobre a Clonagem Humana.

Já no terceiro capítulo, a análise será voltada a legislação pátria, em especial a Constituição Federal, demonstrando os fundamentos utilizados para a proteção da identidade genética e as discussões acerca de sua titularidade, bem como seus limites.

Faz-se imperioso trazer a discussão a questão da dignidade humana novamente, bem como a cláusula geral implícita de tutela de todas as manifestações essenciais da pessoa humana. Ora, não há manifestação mais genuína e única de cada indivíduo que seu próprio material genético.

Ainda neste capítulo, será debatido o conceito de identidade genética, abordando também suas limitações, quando ocorre seu confronto com outros direito fundamentais, avaliando-se qual deles prevalecerá.

O presente trabalho irá analisar o direito de identidade do indivíduo, no âmbito genético, em especial sua consagração na Constituição Federal de 1988, traçando o seu conteúdo e alcance, além demonstrar a manifestação e a exigência do princípio da dignidade humana e do direito fundamental à vida.

 
1 NOÇÕES INICIAIS ACERCA DO GENOMA HUMANO, CONSIDERAÇÕES SOBRE O PROJETO GENOMA HUMANO E CONCEPÇÕES FILOSÓFICAS E JURÍDICAS ACERCA DA DIGNIDADE HUMANA

 

1.1 Noções Iniciais: Genoma Humano, Identidade Genética E Identidade Pessoal

 

Antes de se iniciar discussões mais aprofundadas acerca da identidade genética e sua forma de garantia à dignidade humana no avanço das pesquisas científicas, é importante esclarecer pontos básicos para melhor compreensão do assunto.

Há mais de 60 anos foi publicado o modelo da dupla hélice, referente a estrutura do DNA, pelos cientistas Watson e Crick, desde então desenvolveram-se aos montes estudos envolvendo o genoma humano, trazendo uma nova perspectiva acerca da visão que se tinha sobre o ser humano.

 

1.1.1  A definição de genoma humano

 

Inicialmente, vale definir o que é genoma humano. Cada ser vivo possui características mensuráveis, geralmente visíveis a olho nu ou que poderão requerer testes específicos para  sua constatação, sendo tais características denominadas de fenótipo. Tais características resultam da constituição genética do indivíduo, denominada de genótipo.

Em relação ao genótipo, tem-se que o gene é a unidade de informação hereditária do organismo, sendo o ácido desoxirribonucleico (ADN) a substância constituinte dos referidos genes. Cada molécula de ADN contém toda a informação genética de um ser vivo, sendo distribuída ao longo dos cromossomos.

Cada espécie de ser vivo possui um montante específico de cromossomos, estruturas estas situadas no núcleo de uma célula.

A variação que se percebe na espécie humana, que conta com 23 pares cromossômicos, de um organismo para outro, é em razão da maleabilidade do genoma humano, permitindo que novas combinações de genes sejam formadas.

Dessa forma, chega-se à conclusão de que o genoma humano é o conjunto formado por todos os diferentes genes que se encontram em cada núcleo das células de uma determinada espécie.

 

1.1.2 Das identidades: genética e pessoal

 

Ainda no intuito de estabelecer as bases para melhor compreensão posteriormente, cumpre aqui definir o conceito de Identidade Genética.

Em relação ao significado do termo “Identidade Genética”, tem-se que seu conceito passou a se consolidar com o anteprojeto da Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos (DUGHDH), sendo certo que a identidade genética de cada organismo é representada pelo próprio genoma humano de cada indivíduo.

No âmbito do direito português, o termo que aqui se discute foi acolhido, sendo que alguns estudiosos, como João Carlos Gonçalves Loureiro, sustentem que “a reivindicação de um direito à identidade genética aponta para que o genoma não seja só inviolável como também irrepetível, seja basicamente fruto do acaso e não da heterodeterminação.” (BARACHO, acesso 25/11/2019)

Ainda acerca da Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos, vale ressaltar que a redação do anteprojeto foi modificada, em virtude do receio de uma leitura reducionista do conceito.

Dessa forma, pode-se dizer que a identidade genética coincide com o genoma de cada indivíduo, de forma isolada. No entanto, quando aos riscos que ensejaram o receio de uma leitura reducionista, vale ressaltar que a identidade genética não resume a identidade pessoal, sendo este um conceito mais amplo, se pautando em dois quesitos, sendo o primeiro o referencial biológico e o segundo o referencial social.

A doutrina coaduna no mesmo sentido, referindo-se às duas dimensões do direito à identidade pessoal. Em uma delas, tem-se a dimensão individual, individualizando e unificando o indivíduo, tratando-o como original e irrepetível, já a outra dimensão se trata daquela relativa à identidade pessoal, compreendendo a concepção de relações interpessoais e a construção da história individual.

Dessa forma, cumpre frisar que o direito fundamental à identidade genética da pessoa humana tem como objeto resguardar a constituição genética do indivíduo, enquanto pilar fundamental de sua identidade pessoal, considerando-a assim como bem jurídico fundamental, sendo tal concepção de extrema importância para impedir uma interpretação limitadora e superficial no que tange às novas descobertas científicas concernentes ao projeto Genoma Humano, que será tratado a seguir.

 

1.2 Perspectivas Relativas ao Projeto Genoma Humano

 

O Projeto Genoma Humano teve início no ano de 1990, nos Estados Unidos, sendo determinado um prazo de 15 (quinze) anos para a sua duração, com o objetivo de mapear todo o código genético humano, assim, com tais informações obtidas, seria possível prevenir, tratar, antecipar e impedir o desenvolvimento de diversas enfermidades, de forma mais efetiva que nunca. Com o auxílio da iniciativa privada e o avanço da tecnologia, os resultados obtidos se deram em prazo inferior ao estipulado inicialmente.

O objetivo do referido projeto é desvendar os mistérios do corpo humano, buscando o avanço da medicina, o aumento da qualidade e expectativa de vida, diminuindo-se assim o sofrimento humano, mas não se pode negar que a humanidade todavia busca pelo seu desejo maior, o elixir da imortalidade.

No entanto, os resultados e as descobertas da ciência, são uma faca de dois gumes, pois tanto quanto possibilita o bem estar do indivíduo, também desperta um debate ético e moral de grande impacto no plano individual, político e social.

Dessa forma, na constante batalha contra as enfermidades, as técnicas disponíveis para se conseguir a cura para doenças, acabaram por se tornar instrumentos  de poder inéditos. Há um enorme risco de se objetificar o indivíduo, ao se tratar dos avanços de pesquisa na âmbito genético, reduzindo o humano a um mero mapa. Assim, para exemplificar situações que podem ocorrer no campo prático, cumpre trazer algumas das tecnologias disponíveis na atualidade.

 

 

 

 

1.3 Breve Resumo Acerca das Tecnologias Disponíveis na Atualidade

 

De início vale citar os testes genéticos para análise do DNA, uma vez que tais testes possibilitam o conhecimento da constituição genética de cada indivíduo, sendo uma das mais importantes ferramentas para conhecimento do genoma humano.

No entanto, ao passo que tais conhecimentos abrem perspectivas, antes consideradas impossíveis, para a prevenção e tratamento de enfermidades, eles também ensejam uma reflexão profunda acerca dos impactos negativos inerentes às descobertas.

Cabe exemplificar com situações práticas o que se pode ter que enfrentar quando dos testes genéticos em seres humanos. Como aspecto positivo vale citar a possibilidade de constatar mutações assintomáticas que desencadeiam enfermidades em casais de risco, e assim, prevenir o nascimento de indivíduos afetados por tais e que possivelmente poderiam desenvolver sintomas negativos. No entanto, planejar filhos e evitar a concepção de determinados indivíduos abre discussões relativas aos limites da interferência no ser humano no curso natural da vida.

Ainda acerca das atuais tecnologias disponíveis, tem-se as terapias gênicas como forma de intervenção no genoma humano. Diversos estudos avançam neste campo, e pode-se prever que em um futuro próximo, será possível a prevenção e a cura de doenças através de terapias gênicas para adormecer ou adicionar genes.

A referida terapia pode ser realizada em células somáticas ou células germinais, sendo que esta última tem a capacidade de passar a informação genética modificada aos descendentes. No entanto, tendo em vista que ocorre tal transmissão, é que a terapia em células germinais não é muito bem aceita, o contrário da terapia em células somáticas, visto que não ocorre a transmissão das informações genéticas.

Tal reprovação pela terapia em células germinais, resulta de uma falta de limitação clara entre terapia gênica de fato e o melhoramento genético.

Por fim, vale ressaltar também questões acerca da clonagem humana, sendo que experimentos relacionados à clonagem, como o marco mais expressivo o nascimento da ovelha Dolly, alavancaram a esperança em se realizar por completo a clonagem de um ser humano.

Tal tema acerca da clonagem humana tem levantado fortes controversas, sendo que filósofos e juristas têm se posicionado contrários à clonagem humana reprodutiva, visto que tal duplicação poderia reduzir o homem a um objeto, uma coisa fabricada em laboratório, podendo-se dizer que objetifica a própria vida.

Quanto à clonagem não reprodutiva do ser humano, embora tenha-se como perspectiva a cura de doenças que não possuem tratamento, salvar vidas humanas, entra-se na reflexão acerca do status jurídico dos embriões, sendo este importante pilar e “matéria base” das pesquisas envolvendo tal tema.

Cumpre salientar que tais discussões podem ensejar reflexões acerca da dignidade humana, indagando-se os limites morais, éticos e jurídicos das pesquisas e manipulações genéticas, sem que ocorra ofensa a um princípio pilar da humanidade.

 

1.4 Concepções Filosóficas Acerca da Dignidade Humana

 

1.4.1 Dignidade em Kant

 

Para o pensador Immanuel Kant, a dignidade humana se pauta na autonomia do indivíduo, como ser racional, sendo imprescindível citar o imperativo categórico da ética kantiana:

“Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal” (KANT, 1986, p.79)

Dessa forma, a partir deste preceito conclui-se que que todo ser racional tem sua existência baseada no objetivo do fim em si mesmo, e não como um meio. Para Weber isso significa o seguinte:

 

Tratar a humanidade na sua pessoa como fim implica tratar o ser humano ou seres racionais como fins. Humanidade implica distinta capacidades, como a de agir por meio de princípios incondicionais; a de exercer a liberdade; e de agir de modo não- imediato; a de entender o mundo. (WEBER, p. 39, 1999)

 

No entanto, o conceito de dignidade humana kantiano parte de um pressuposto ontológico, ou seja, presume a dignidade como algo inerente ao humano, sendo este considerado como fim e não como meio, repudiando-se toda e qualquer coisificação e instrumentalização da pessoa humana.

Por fim, com o intuito de abordar visões distintas, cumpre trazer a perspectiva de Hegel, que parte da premissa do reconhecimento, através do intermédio das instituições sociais, estabelecendo-se um equilíbrio entre o individual e o social.

 

1.4.2 Dignidade em Hegel

 

No que se refere a Hegel, a dignidade se embasa principalmente em três instituições sociais, quais sejam, a sociedade civil, a família e o Estado. Vale ressaltar que para Hegel existem diversas esferas da dignidade, sendo a primeira a ser exemplificada, a esfera da ética, sendo esta um plano em que ocorre o equilíbrio de vontades livres para com cada indivíduo, sendo que Hegel direciona um caminho para que se concretize tal equilíbrio, cite-se:

 

Com efeito, a natureza da humanidade consiste em esforçar-se por alcançar um acordo com os outros, e sua existência reside somente na instituição da comunidade das consciências. O anti-humano, o animal, consiste em permanecer no sentimento e em não poder comunicar-se senão por meio de sentimento. (HEGEL, p. 38, 1980)

 

Tal esfera é também conhecida como esfera da moralidade objetiva, tendo em contrapartida a esfera da moralidade subjetiva, em que se reconhece o humano como ser concreto, diferente dos demais.

Para Hegel, o processo de mediação das vontades livres, se inicia no âmbito familiar, sendo aí onde se inicia o convívio do indivíduo com outros indivíduos, onde se internaliza modelos uniformes, que é levado para o resto da vida, sendo que os elos de amor da família, bem como um contexto marcado pela diversidade, a pessoa como indivíduo percebe não poder se realizar sozinha.

O indivíduo passa a reconhecer o outro como necessário em sua diversidade e complexidade, é imperioso que exista um reconhecimento recíproco para que exista a dignidade.

 

1.4.3 Dignidade em Habermas

 

Para Habermas, a dignidade humana está atrelada a uma paridade das relações entre seres morais, sendo que, conforme entendimento do filósofo, a pessoa humana apenas se forma quando esta se comunica ativamente entre os demais indivíduos da sociedade, dessa forma, antes do nascimento, existiria somente um organismo humano, tendo em vista que nessa fase o próprio ser não se reconhece como pessoa.

 

1.5 Breves Concepções Jurídicas Acerca da Dignidade Humana

 

A Segunda Grande Guerra Mundial impactou a humanidade de tal forma que se fez necessário reconhecer e proteger o ser humano enquanto indivíduo e detentor do direito à dignidade.

Consequentemente, logo depois do fim da Segunda Guerra Mundial, foi publicada, em 1948, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, influenciando na organização estatal e social dos países ao redor do globo.

No âmbito nacional, a Constituição Brasileira de1998, foi pioneira ao destinar uma secção própria aos princípios fundamentais, bem como em constar expressamente na Carta Magna o princípio fundamental da dignidade humana como base do Estado Democrático de Direito.

Tem-se que o Estado existe em função da pessoa, não o contrário, visto que o indivíduo racional é fim e não meio. Por tal razão, cada ser humano tem inerente a sua existência direito à dignidade, que lhe é assegurado por norma constitucional, sendo que o princípio da dignidade humana constitui máxima do Estado Democrático de Direito.

 
2 DA PROTEÇÃO JURÍDICA DO GENOMA HUMANO NO ÂMBITO INTERNACIONAL E COMPARADO

 

2.1 Das Declarações Internacionais: A Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos, a Declaração Internacional sobre os Dados Genéticos Humanos, a Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos, a Declaração das Nações Unidas sobre a Clonagem Humana

 

Inicialmente, importa citar a Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos, de 1997, que, adotada pela 29ª Conferência Geral da UNESCO, determinou os princípios básicos relativos à pesquisa em genética e a aplicação dos resultados obtidos de tais pesquisas.

Em seu artigo 1º, restou determinado nos seguintes termos:

“O genoma humano constitui a base da unidade fundamental de todos os membros   da   família   humana   bem   como   de   sua   inerente   dignidade   e   diversidade. Num sentido simbólico, é o patrimônio da humanidade.” (UNESCO, 1997)

Cumpre ressaltar que o texto da referida Declaração é de fato extremamente claro e autoexplicativo, sendo certo que assim como o artigo 1º supramencionado, os artigos seguintes trazem pontos cernes do que se procura proteger juridicamente acerca do que se trata o genoma humano e sua relação com a dignidade humana.

No artigo 2º é assegurado a toda pessoa o devido respeito da sua dignidade e dos seus direitos, desprezando-se suas características genéticas, não reduzindo os indivíduos às referidas identidades genéticas, sendo certo que cada pessoa é singular.

O artigo 4º é extremamente objetivo e claro quando veda que o genoma humana se torne objeto de operações financeiras. Em sequência, o artigo 5º versa dos seguintes pontos:

 

Artigo 5

a)  A  pesquisa,  o  tratamento  ou  o  diagnóstico  que  afetem  o  genoma  humano,  devem  ser  realizados  apenas  após  avaliação  rigorosa  e  prévia  dos  riscos e benefícios neles implicados  e em conformidade com quaisquer outras exigências da legislação nacional.

b)  Em  qualquer  caso,  deve  ser  obtido  o  consentimento  prévio,  livre  e  esclarecido do indivíduo envolvido. Se este não estiver em condição de fornecer tal  consentimento,  esse  mesmo  consentimento  ou  autorização  deve  ser  obtido  na  forma  determinada  pela  legislação,  orientada  pelo  maior  interesse  do  indivíduo.

c)  Deve  ser  respeitado  o  direito  de  cada  indivíduo  de  decidir  se  será  ou  não  informado  sobre  os  resultados  da  análise  genética  e  das  consequências  dela decorrentes.

d)  No  caso  de  pesquisa,  os  protocolos  devem  ser  submetidos  a  uma  análise adicional prévia, em conformidade com padrões e diretrizes nacionais e internacionais relevantes.

e)  Se,  conforme  a  legislação,  um  indivíduo  não  for  capaz  de  manifestar  seu  consentimento,  a  pesquisa  envolvendo  seu  genoma  apenas  poderá  ser  realizada  para  benefício  direto  à  sua  saúde,  sujeita  à  autorização  e  às condições  de  proteção  estabelecidas  pela  legislação.  Pesquisa  sem  perspectiva  de benefício direto à saúde apenas poderá ser efetuada em caráter excepcional, com  máxima  restrição,  expondo-se  o  indivíduo  a  risco  e  incômodo  mínimos  e  quando  essa  pesquisa  vise  contribuir  para  o  benefício  à  saúde  de  outros  indivíduos  na  mesma  faixa  de  idade  ou  com  a  mesma  condição  genética,  sujeita às determinações da legislação e desde que tal pesquisa seja compatível com a proteção dos direitos humanos do indivíduo. (UNESCO, 1997)

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Vale dizer que o artigo 6º trata de uma questão importante, qual seja a discriminação em razão das características genéticas, corroborado pelo artigo 2º, vedando a submissão do indivíduo a tal discriminação, que tenha como objetivo violar os direitos humanos, de liberdades fundamentais e da dignidade humana.

Prosseguindo, o artigo 7º assegura a confidencialidade dos dados genéticos relacionados a indivíduo identificável, além de que o artigo 8º assegura ao todos os indivíduo o direito a justa indenização, em conformidade com a legislação de cada país ou até mesmo legislação internacional, no caso de dano sofrido como resultado de intervenção sobre seu genoma, podendo ser direta ou indireta.

O artigo 10º diz acerca da prevalência dos direitos humanos, das liberdades fundamentais e da dignidade humana dos indivíduos  sobre pesquisas ou suas aplicações relacionadas ao genoma do ser humano. No artigo 11, tem-se a proibição de práticas contrárias à dignidade humana.

Em seguida, vale comentar acerca da Declaração Internacional sobre os Dados Genéticos Humanos, que aprovada por unanimidade, na 32ª sessão da Conferência Geral da UNESCO, no dia 16 de Outubro de 2003, buscou reafirmar os princípios já consagrados pela referida Declaração Universal sobre o Genoma Humano

Conforme pode-se observar desta declaração, há uma preocupação acerca da identidade genética do indivíduo, bem como dos dados genéticos, buscando sempre coibir a utilização de tais dados como forma de discriminação e de estigmatização,  respeitando-se sempre os direitos humanos, as liberdades fundamentais e a dignidade da pessoa humana, da família, de grupo ou de comunidades,

Ademais, é importante destacar a Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos, que foi adotada na 33ª sessão da Conferência Geral da UNESCO, em 24 de Junho de 2005, que por óbvio, trata de questões concernentes à ética na medicina, nas ciências da vida e nas tecnologias aplicadas aos seres humanos, considerando as dimensões sociais, ambientais e legais.

Pode-se observar oito objetivos pilares da referida declaração, previstos no artigo 2º da presente Declaração:

 

(i) prover uma estrutura universal de princípios e procedimentos para orientar os Estados na formulação de sua legislação, políticas ou outros instrumentos no campo da bioética; 

(ii) orientar as ações de indivíduos, grupos, comunidades, instituições e empresas públicas e privadas;

(iii) promover o respeito pela dignidade humana e proteger os direitos humanos, assegurando o respeito pela vida dos seres humanos e pelas liberdades fundamentais, de forma consistente com a legislação internacional de direitos humanos;

(iv) reconhecer a importância da liberdade da pesquisa científica e os benefícios resultantes dos desenvolvimentos científicos e tecnológicos, evidenciando, ao mesmo tempo,  a necessidade de que tais pesquisas e desenvolvimentos ocorram conforme os princípios éticos dispostos nesta Declaração e respeitem a dignidade humana, os direitos humanos e as liberdades fundamentais;

(v) promover o diálogo multidisciplinar e pluralístico sobre questões bioéticas entre todos os interessados e na sociedade como um todo;

(vi)  promover o acesso eqüitativo aos desenvolvimentos médicos, científicos e tecnológicos, assim como a maior difusão possível e o rápido compartilhamento de conhecimento relativo a tais desenvolvimentos e a participação nos benefícios, com particular atenção às necessidades de países em desenvolvimento; 

(vii) salvaguardar e promover os interesses das gerações presentes e futuras; e

(viii) ressaltar a importância da biodiversidade e sua conservação como uma preocupação comum da humanidade. (UNESCO, 2003)

 

A Declaração especifica também as diretrizes do princípios que devem nortear os Estados, conforme exemplifica Petterle:

 

Quanto aos princípios que devem nortear os Estados, estas são as diretrizes: respeitar a dignidade humana, os direitos humanos e as liberdades fundamentais, maximizar os benefícios diretos e indiretos e minimizar os possíveis danos aos paciente envolvidos em pesquisas, respeitar a autonomia dos indivíduos para tomar decisões, precedida de consentimento prévio, livre e esclarecido, com especial proteção às pessoas sem capacidade para consentir, respeitar a vulnerabilidade humana, protegendo a integridade pessoal, respeitar a privacidade dos indivíduos e a confidencialidade das informações pessoais, respeitar a igualdade fundamental entre todos os seres humanos em termos de dignidade e de direitos, não discriminar e não estigmatizar o indivíduo ou grupos, eis que constitui violação à dignidade humana, aos direitos humanos e liberdades fundamentais, estimular a solidariedade entre os seres humanos e a cooperação internacional, ter a promoção da saúde, e o desenvolvimento social como objetivo central dos governos e demais setores da sociedade, já que usufruir do mais alto padrão de saúde atingível é um dos direitos fundamentais de todo ser humano, sem distinção de raça, religião, convicção política, condição econômica ou social, compartilhar os benefícios resultantes de qualquer pesquisa científica e suas aplicações com a sociedade como um todo e especialmente com países em desenvolvimento, sob o alerta de que benefícios não devem constituir indução inadequada para estimular a participação em pesquisa, considerar o impacto das ciências da vida nas gerações futuras, inclusive sobre sua constituição genética, protegendo-as, e, por fim, proteger o meio ambiente, a biosfera e a biodiversidade. (PETTERLE, 2007, p. 48-49)

 

Em relação à aplicação dos princípios, principalmente ao discurso e tomada de decisão, deve-se incentivar uma discussão pública pluralista, até mesmo em comitês de ética independentes e multidisciplinares, sendo de igual relevância promover a avaliação e administração adequada dos perigos advindos de novas tecnologias aplicadas às ciências da vida.

No que tange às atividades desenvolvidas, financiadas e conduzidas em diversos Estados, restou a recomendação de que as instituições, tanto públicas quanto privadas, assim como os profissionais a ela associados, devam despender forças a fim de garantir a observância da Declaração Universal da Bioética e Direitos Humanos.

Em seus artigos 22 e 23 foi destacado a necessidade de que os Estados tomem medidas de cunho legislativo e administrativo adequadas à implementação dos princípios proclamados, até mesmo com ações educacionais, de formação de informação ao público, colocando em prática estudos sobre a bioética em todos os níveis.

Por fim, mas sem minorar sua importância, vale trazer à discussão a Declaração das Nações Unidas sobre a Clonagem Humana, que foi aprovada no dia 08 de março de 2005, pela Assembleia Geral, mas que o Brasil manifestou voto contrário a tal Declaração.

Foi declarado, no intuito de garantir a dignidade humana dos perigos provenientes da clonagem humana, diversas diretrizes nesse sentido, determinando que os Estados Membros adotem todas as medidas necessárias para resguardar de forma adequada a vida humana, quando da aplicação das ciências biológicas, bem como devem também os Estados Membros proibir veementemente toda e qualquer forma de clonagem humana incompatíveis com a dignidade e proteção humana.

Ademais, foi determinado que há de se adotar as medidas essenciais com o fim de coibir a aplicação das técnicas de engenharia genética que vão de encontro à dignidade humana, devendo-se também adotar medidas para impedir a exploração da mulher nesta seara, bem como promulgar e aplicar, rapidamente, a legislação nacional para que se coloque em prática todo o explanado anteriormente.

Além disso, foi levado em conta as questões prementes de alcance mundial, determinando que os Estados Membro levem isso em conta nos seus financiamentos às investigações médicas.

 

2.2 A Convenção Sobre os Direitos do Homem e da Biomedicina (Cdhb)

 

Neste momento, será debatido acerca da Convenção sobre os Direitos do Homem e da Biomedicina, que buscou não limitar a matéria contida à mera declaração de alguns princípios gerais, mas sim abrangendo em especial matéria de importância capital, mas foram afastadas matéria controversas, como por exemplo, os experimentos com embriões humanos.

Foi convencionado entre as partes que serão protegidos a dignidade e a identidade de todos os seres humanos, garantindo a todos, sem distinção, o respeitos à integridade, bem como todos os outros direitos e liberdades fundamentais em oposição às aplicações da biologia e da medicina, devendo-se tomar as ações necessárias, no direito interno, a fim de concretizar o disposto na referida Convenção, conforme se observa no artigo 1º da CDHB, veja-se:

 

Artigo 1.º Objecto e finalidade

As Partes na presente Convenção protegem o ser humano na sua dignidade e na sua identidade e garantem a toda a pessoa, sem discriminação, o respeito pela sua integridade e pelos seus outros direitos e liberdades fundamentais face às aplicações da biologia e da medicina.

Cada uma Partes deve adoptar, no seu direito interno, as medidas necessárias para tornar efectiva a aplicação das disposições da presente Convenção.(CDHB, 1997)

 

Neste contexto houve a reafirmação da primazia do humano em detrimento dos interesses exclusivos da sociedade ou da ciência, estabelecendo vetores relacionados à igualdade de acesso aos cuidados da saúde, consagrando também o princípio do consentimento, determinando diversas medidas protecionistas a aqueles que não tenham capacidade para tanto, conforme o próprio texto da Convenção:

 

Artigo 2.º Primado do ser humano

O interesse e o bem-estar do ser humano devem prevalecer sobre o interesse único da sociedade ou da ciência.”

Artigo 3.º Acesso equitativo aos cuidados de saúde

As Partes tomam, tendo em conta as necessidades de saúde e os recursos disponíveis, as medidas adequadas com vista a assegurar, sob a sua jurisdição, um acesso equitativo aos cuidados de saúde de qualidade apropriada.

[...]

Artigo 5.º Regra geral

Qualquer intervenção no domínio da saúde só pode ser efectuada após ter sido prestado pela pessoa em causa o seu consentimento livre e esclarecido. Esta pessoa deve receber previamente a informação adequada quanto ao objectivo e à natureza da intervenção, bem como às suas consequências e riscos.A pessoa em questão pode, em qualquer momento, revogar livremente o seu consentimento.

[...]

Artigo 7.º Protecção das pessoas que sofram de perturbação mental

Sem prejuízo das condições de protecção previstas na lei, incluindo os procedimentos de vigilância e de controlo, bem como as vias de recurso, toda a pessoa que sofra de perturbação mental grave não poderá ser submetida, sem o seu consentimento, a uma intervenção que tenha por objectivo o tratamento dessa mesma perturbação, salvo se a ausência de tal tratamento puser seriamente em risco a sua saúde.

Artigo 8.º Situações de urgência

Sempre que, em virtude de uma situação de urgência, o consentimento apropriado não puder ser obtido, poder-se-á proceder imediatamente à intervenção medicamente indispensável em benefício da saúde da pessoa em causa.

Artigo 9.º Vontade anteriormente manifestada

A vontade anteriormente manifestada no tocante a uma intervenção médica por um paciente que, no momento da intervenção, não se encontre em condições de expressar a sua vontade, será tomada em conta. .(CDHB, 1997)

 

Além disso, em relação às informações concernentes à saúde, declarou-se que todo indivíduo é detentor do direito de que seja respeitada sua vida privada, e consequentemente possui o direito de ter conhecimento de toda a informação recolhida sobre sua saúde, tanto quanto o direito de vontade à não informação.

 

Artigo 10.º Vida privada e direito à informação

1 - Qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada no que toca a informações relacionadas com a sua saúde.

2 - Qualquer pessoa tem o direito de conhecer toda a informação recolhida sobre a sua saúde. Todavia, a vontade expressa por uma pessoa de não ser informada deve ser respeitada.

3 - A título excepcional, a lei pode prever, no interesse do paciente, restrições ao exercício dos direitos mencionados no n.º 2. .(CDHB, 1997)

 

Novamente é possível verificar, a preocupação em coibir todo e qualquer tipo de discriminação baseada no patrimônio genético do indivíduo, bem como limitou os testes de doenças genéticas, que possam servir para identificar indivíduo portador de gene responsável por uma determinada doença, somente para fins médicos e sob reserva de aconselhamento genético adequado.

 

Artigo 11.º Não discriminação

É proibida toda a forma de discriminação contra uma pessoa em virtude do seu património genético.

Artigo 12.º Testes genéticos predictivos

Não se poderá proceder a testes predictivos de doenças genéticas ou que permitam querer a identificação do indivíduo como portador de um gene responsável por uma doença quer a detecção de uma predisposição ou de uma susceptibilidade genética a uma doença, salvo para fins médicos ou de investigação médica e sem prejuízo de um aconselhamento genético apropriado. (CDHB, 1997)

Em contra partida, admitiu-se as intervenções no genoma humano, mas observando-se a restrição às finalidades terapêuticas, preventivas ou de diagnóstico, bem como não introduzindo modificações no genoma de qualquer descendente. Ademais, foi condenada a seleção do sexo quando do auxílio médico referente à procriação, exceto a fim de evitar enfermidade ligada ao sexo.

 

Artigo 13.º Intervenções sobre o genoma humano

Uma intervenção que tenha por objecto modificar o genoma humano não pode ser levada a efeito senão por razões preventivas, de diagnóstico ou terapêuticas e somente se não tiver por finalidade introduzir uma modificação no genoma da descendência. .(CDHB, 1997)

 

Já em relação a investigação científica, é interessante destacar que foi estabelecida sua realização de forma livre, mas novamente, observando-se o disposto na Convenção de Biomedicina e outros dispositivos legais que assegurem a proteção do ser humano.

“Artigo 15.º Regra geral: A investigação científica nos domínios da biologia e da medicina é livremente exercida sem prejuízo das disposições da presente Convenção e das outras disposições jurídicas que asseguram a protecção do ser humano.” (CDHB, 1997)

Ainda relativo às pesquisas científicas, vale destacar que foi proibida expressamente a criação de embriões com o intuito de investigação, mas quando tal criação seja permitida por força de lei, deverá haver uma proteção legal adequada ao embrião.  Ademais, a coleta de órgãos e tecidos pos mortem e de doadores vivos para fins de transplante foi abrangida pela Convenção, mas há uma evidente condenação na utilização desta coleta para fins lucrativos, conforme texto da Convenção, em seu artigo 21:

“Artigo 21.º Proibição de obtenção de lucros: O corpo humano e as suas partes não devem ser, enquanto tal, fonte de quaisquer lucros.” (CDHB, 19997)

Dessa forma, verifica-se uma preocupação constante e imperiosa com a dignidade humana, demonstrando a razoabilidade e o cuidado ao se tratar de matéria relacionada ao material genético do indivíduo, visto que é uma discussão sensível e envolve aspectos todavia desconhecidos para o homem, e portanto consequências ainda obscuras, mas que caminham para uma elucidação e evolução da matéria.

           

2.3 Direito Comparado: A Constituição Suíça e Constituição Portuguesa

 

Neste  capítulo será tratado o direito comparado no âmbito internacional, relativo a duas Constituições importantes para a evolução jurídica da proteção à genética humana. Conforme todo o exposto até aqui verifica-se uma tendência mundial em tutelar contra as ameaças ao material genético.

Inicialmente cumpre debater acerca da Constituição da Suíça, que se mostrou pioneira na defesa da matéria genética, em específico, a humana. No seu artigo 24, tem-se expressamente a defesa do humano contra os abusos da tecnologia genética e da reprodução, assegurando a criação de normas para a regulação da forma como se utilizará o patrimônio germinal e genéticos humanos, conforme a letra da lei:

 

Art. 24: 1. O Homem e o seu ambiente estão protegidos contra os abusos da tecnologia genética e da reprodução.

2. A Federação adoptará normas sobre a utilização do patrimônio germinal e genético humanos. Ela assegurará normas sobre a utilização do patrimônio germinal e genético humanos. Ela assegurará a proteção da dignidade humana, da personalidade e da família e guiar-se-á em especial pelos seguintes princípios:

a) as intervenções no patrimônio genético dos gametas e dos embriões humanos são inadmissíveis;

b) O patrimônio germinal e genético não humano não deve ser transferido para o patrimônio genético humano ou fundido com ele;

c) As técnicas de reprodução assistida só podem ser empregados, quando a infertilidade ou o perigo de transmissão de uma doença grave não puderem ser afastados de outro modo, mas não para produzir na criança determinadas características ou fazer investigação. A fecundação de óvulos humanos fora do corpo da mulher só é permitida nas condições a estabelecer por lei. Só podem ser desenvolvidos fora do corpo da mulher tantos óvulos quantos os que lhe poderem ser imediatamente implantados.

d) A dádiva de embriões e todas as formas de maternidade de substituição são inadmissíveis.

e) Não deve ser feito qualquer comércio com o patrimônio germinal humano e com produtos de embriões.

f) O patrimônio genético de uma pessoa só deve ser investigado, registrado ou revelado com o seu acordo ou com fundamento numa disposição legal.

g) O acesso da pessoa aos dados sobre a sua ascendência deve ser garantido. (SUIÇA, 1999)

 

É explícito a proteção da genética humana, quando em confronto com as novas tecnologias, inclusive traçando princípios norteadores para a defesa da identidade genética e a reprodução humana. Tal novidade jurídica é extremamente importante e se mostra contemporânea e até mesmo a frente de seu tempo, evoluindo juntamente com a sociedade.

Após o ano de 1992, ocorreram mudanças na referida Constituição, mas vale destacar a proteção à saúde, da medicina de reprodução humana e engenharia genética nos seres humanos, da medicina de transplantação e da engenharia genética no âmbito não humano, previstas nos artigos 118, 119 e 120, da Constituição Suíça, veja-se:

 

Art. 118º Protecção da saúde

 

1 No âmbito de suas competências, a Confederação toma medidas para a proteção da saúde.

2 Prescreve disposições sobre: a. a manipulação de alimentos, bem como de medicamentos, narcóticos, organismos, produtos químicos e objectos que possam prejudicar a saúde; b. o combate de doenças contagiosas, amplamente disseminadas ou malignas, de origem humana ou animal; c. a protecção contra os raios ionizantes.

 

Art. 119º Medicina de reprodução humana e engenharia genética nos seres humanos

 

1 O ser humano está protegido contra os abusos da medicina de reprodução e da engenharia genética.

 

2 A Confederação prescreve disposições sobre a manipulação do património genético e embrionário. Para isto, assegura a protecção da dignidade do homem, da personalidade e da família e atenta-se particularmente aos seguintes princípios:

a. todas as formas de clonagem e intervenções no património genético das células embrionárias e embriões humanos são inadmissíveis.            

b. Nenhum material embrionário ou genético não humano pode ser inserido em material embrionários humano nem fusionado com o mesmo.

c. Os processos da procriação medicamente assistida somente devem ser aplicados se a infertilidade ou o risco de contágio de uma doença grave não podem ser solucionados de forma diferente, mas não para obterdeterminadas características na criança, nem para realizar pesquisas; a fecundação de óvulos humanos, fora do corpo da mulher, admite-se somente nas condições determinadas por lei; admite-se desenvolver, fora do corpo da mulher, até o estado de embrião          somente o número de óvulos humanos que puder ser imediatamente implantado.

d. A doação de embriões e todos os tipos de maternidade emprestada são inadmissíveis.

e. Não se admite comercializar células embrionárias humanas nem produtos de embriões.

f. O património genético de uma pessoa somente pode ser examinado, registrado ou revelado se a referida pessoa concordar ou se a lei assim o determinar.

g. Todos têm acesso aos dados de sua ascendência.

 

Art. 119ºa Medicina de transplantação

 

1 A Confederação prescreve disposições no sector da transplantação de órgãos, tecidos e células. Para isto, defende a protecção da dignidade humana, da personalidade e da saúde.

 

2 Define, em particular, os critérios para a distribuição justa de órgãos.

 

3 A doação de órgãos, tecidos e células humanos é gratuita. O comércio de órgãos humanos é proibido.

 

Art. 120º Engenharia genética no âmbito não-humano

 

1 O homem e seu ambiente são protegidos dos abusos da engenharia genética.

 

2 A Confederação prescreve disposições sobre a manipulação com material embrionário e genético de animais, plantas e outros organismos. Para isto, leva em conta a dignidade da criatura, assim como a segurança do homem, dos animais e do meio-ambiente e protege a variedade genética das espécies de animais e vegetais. (Suíça, 1999)

 

Interessante destacar também a preocupação na proteção não só do humano, mas de organismos vivos não humanos, como animais e plantas, a fim de estabelecer limites para as pesquisas genéticas em relação a esses seres.

É de fato surpreendente a preocupação à frente de seu tempo da Constituição suíça para proteger a questão genética do ser humano e no âmbito não humano, acompanhando a evolução da sociedade que tem buscado cada vez mais o domínio sobre as questões genéticas.

Pode-se também citar a Constituição Portuguesa, que acolheu a identidade genética, determinando a inviolabilidade do genoma humano, bem como permaneça fruto do acaso e não da heterodeterminação.

No ano de 1997, a Constituição De Portugal inovou no âmbito internacional, por meio de uma revisão constitucional nesse ano, com o seu artigo 26, onde ocorreu a garantia da dignidade pessoal e da identidade genética do indivíduo humano. Para José Carlos Vieira de Andrade (2001, p. 8, apud PETTERLE, 2007, P. 58):

 

Trouxe sobretudo a afirmação expressa do direito ao desenvolvimento da personalidade, a garantia da dignidade pessoal e da identidade genética do ser humano, bem como os direitos processuais a uma tutela judicial efectiva e célere – uma reafirmação de aspectos fundamentais do estatuo jurídico da humanidade nos tempos de hoje.

 

As duas Constituições aqui debatidas foram as pioneiras a tratar do direito à identidade genética, podendo-se falar em um núcleo de um direito constitucional da biomedicina, o que ofereceu um impulso para demais diplomas legais assegurarem o mesmo direito em seus respectivos países.

No entanto, existe ainda uma questão em evidente discussão já há muito tempo, qual seja a titularidade dos direitos fundamentais e qual o momento ela surge. No campo da ciência, que possibilitaria a obtenção de respostas ao problema citado, ainda há o mesmo dilema, sendo de difícil determinação o marco inicial da vida humana, ou seja quando o embrião se torna pessoa.

Pode-se citar duas correntes, uma em que se defende que o embrião todavia não constitui pessoa e portanto, não é sujeito de direitos, tendo apenas interesses a serem protegidos. Por outro lado há uma corrente, que também é sustentada pela Igreja Católica, em que se defende que o embrião é pessoa humana e portanto, sujeito de direitos, valendo-se citar a instrução Dignitas Personae, publicada em 2008 pela Igreja Católica, por meio da Congregação para a Doutrina e Fé.

 

 

 

3 DIREITO FUNDAMENTAL À IDENTIDADE GENÉTICA E SEUS LIMITES NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

 

3.1 A Implicidade da Tutela das Manifestações Imprescindíveis à Personalidade Humana

 

Neste momento, serão tratados os direitos fundamentais no âmbito nacional, ou seja à luz da Constituição Federal de 1988, com base no §2º, do artigo 5º da referida carta política, que se mostra um rol não exaustivo, ou seja, aberto para a recepção de novos direitos fundamentais, mesmo porque a sociedade evolui, o ser humano evolui, e as normas devem evoluir para abarcar novas situações e questões que passam a surgir, afinal o que não seria considerado como direito fundamental há 2 décadas, hoje já se vislumbra a necessidade de tutelar tal direito à nível fundamental.

A exemplo do acima exposto, bem como do tema aqui tratado, há 2 décadas não havia a mesma expressividade o direito à identidade genética do ser humano no âmbito internacional, menos expressivamente ainda no âmbito nacional. Somente com a evolução das tecnologias relacionadas à pesquisa genética, o advento de risco, bem como de questões polêmicas que se relacionam de forma muito próxima ao direito à dignidade humano, à intimidade, dentre outros direitos fundamentais.

Dessa forma, pode-se dizer que além daqueles direito fundamentais escritos, positivados, há outros que todavia não se encontram positivados na lei, mas que em razão e seu conteúdo materialmente significativo, merecem proteção de nível constitucional.

É possível verificar dois tipos de direitos constitucionais, primeiramente aqueles formalmente constitucionais, ou seja, possuem a forma constitucional, e aqueles materialmente constitucionais, podendo-se traduzir em direitos que não tomam a forma constitucional, mas versam de matéria de objeto e importância equiparadas aos direitos formalmente constitucionais/fundamentais. Vejamos o §2º, do artigo 5º, da Constituição Federal:

 

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[...]

§ 2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. (BRASIL, 1988)

 

Assim, vale citar trecho dos ensinamentos de Petterle:

 

[...] o §2º do art. 5º da CF 88 consubstancia “autêntica norma geral inclusiva”. Em decorrência desta cláusula, o catálogo dos direitos fundamentais não é exaustivo, estando integrados, implicitamente, outros direitos fundamentais. (PETTERLE, 2007, P. 90)

 

No entanto, se faz necessário verificar quais critérios identificam direitos não positivados e os elevam ao patamar de direitos fundamentais. Primeiramente, afirma Petterle que “é preciso identificar qual o ponto de contato existente entre a dignidade da pessoa humana, o direito fundamental à vida e [...] o impacto das novas tecnologias sobre as pessoas.”.

Após a análise destas questões, verificando tais pontos de contato, entende-se pela existência de bens fundamentais que necessitam ser tutelados. Assim, analisando a presente temática, não há dúvidas que o direito à identidade genética mostra-se um direito fundamental implícito na Constituição Brasileira, até mesmo porque a base biológica da identidade pessoal, é a identidade genética da pessoa humana, sendo também uma das manifestações intrínsecas da complexa personalidade humana.

 

3.2 A Identidade Genética como Direito Fundamental sob o Prisma Constitucional

 

Inicialmente vale recordar uma questão já tratada anteriormente, mas de forma bastante superficial, qual seja, o status jurídico do embrião humano, que levanta uma questão importante, a do momento em que se inicia a vida humana.

Conforme explicitado anteriormente a Igreja Católica sustenta  que o embrião é pessoa humana e portanto, sujeito de direitos, conforme a instrução Dignitas Personae, publicada em 2008 pela Igreja Católica, por meio da Congregação para a Doutrina e Fé. Para tanto, considera o momento da concepção como marco de início de um sujeito de direitos, repudiando qualquer manipulação genética com embriões humanos.

Por outro lado, sobre o âmbito biológico, de forma sucinta e objetiva, vale expor 3 teorias diferentes em relação ao início da vida humana, quais sejam, a teoria da concepção, a teoria da implantação e a teoria da formação dos rudimentos do sistema nervoso central.

A teoria da concepção defende que o início da vida humana se dá no momento em que há a fertilização do óvulo pelo espermatozoide, ou seja, no momento da concepção, conforme os ensinamentos de Loureiro:

 

[…] a personalidade começa na concepção e não do nascimento com vida. Com isso, muitos dos direitos do status de nascituro não dependem do nascimento com vida, como os direitos de personalidade, o direito de ser adotado, de ser reconhecido, à representação. (LOUREIRO, 2009, p. 118)

Já a teoria da implantação, ou da nidação, defende que a vida se iniciaria com a nidação (implantação) do óvulo fecundado na parede do útero, valendo-se citar as palavras de Cristiane Beuren Vasconcelos:

 

Esta teoria apregoa que somente a partir da nidação (fixação) do ovo no útero materno é que começa, de fato, a vida. Tendo em vista que esta fase começa em torno do sexto dia – quando começam a ocorrer as primeiras trocas materno-fetais – e termina entre o sétimo e o décimo segundo dia após a fecundação, pela doutrina da nidação do ovo, enquanto este estágio evolutivo não for atingido, existe tão somente um amontoado de células, que constituiriam o alicerce do embrião. (VASCONCELOS, 2006, p. 35)

 

Dessa forma, conforme Vasconcelos, o período aproximadamente anterior ao décimo segundo dia após a fecundação, não haveria que se falar em ser humano, ainda, vez que não passaria apenas de um amontoado de células.

Por fim, tem-se a teoria da formação dos rudimentos do sistema nervoso central, a qual, sustenta que o início da vida humana se dá a partir do surgimento dos primeiros sinais de formação do córtex central, verificando-se impulsos cerebrais, o que ocorreria aproximadamente após o quarto mês de gestação. Nas palavras de Martínez:

 

Na atualidade surgiu uma nova hipótese, tem em conta basicamente o momento em que se inicia a translação de informação genética correspondente ao sistema nervoso central, já que considera que este é o ponto determinante na ontogênese do ser humano, a verdadeira instância diferenciadora. Neste momento, a partir do quarto mês de vida intra-uterina é que aparecem os rudimentos do que será o córtex cerebral pelo que somente com a apresentação da chamada linha primitiva ou sulco neural estaríamos frente a um ser vivo. Esta tese reconhece no biólogo Jacques Monod seu principal defensor. (MARTINEZ, 1998, p. 77)

 

Assim, assume-se que, somente a partir do 4º mês de gestação pode-se falar em ser vivo, vez que apenas nessa fase verifica-se a presença da linha primitiva ou sulco neural do embrião. Vale dizer que tal teoria é altamente criticada, considerando que o 4º mês de gestação equivale a quase metade da gestação completa, tendo o embrião já atingido um estado avançado de desenvolvimento, mesmo que não se verifique a aparição do suco neural.

Todavia surge mais uma problemática, e quanto ao embrião in vitro, ou seja, aqueles produzido em laboratório?  

O acórdão do STF que julgou a ADI 3.510/DF, esclareceu acerca de alguns pontos concernentes às aplicações de pesquisas relacionadas a embriões produzidos em laboratório e a violação do direito à vida dos mesmos, em razão de uma discussão acerca de Lei n. 11.105/2005 (Lei da Biossegurança), veja-se:

 

34. Acontece - insistimos na anotação - que o emprego de tais células-tronco embrionárias para os fins da Lei de Biossegurança tem entre os seus requisitos a expressa autorização do casal produtor do espermatozóide e do óvulo afinal fecundado. Fecundado em laboratório ou por um modo artificial - também já foi ressaltado -, mas sem que os respectivos doadores se disponham a assumi-los como experimento de procriação própria, ou alheia.

[...]

35. Nesse ritmo argumentativo, diga-se bem mais : não se trata sequer de interromper uma producente trajetória extra-uterina do material constituído e acondicionado em tubo de ensaio, simplesmente porque esse modo de irromper em laboratório e permanecer confinado in vitro é, para o embrião, insuscetível de progressão reprodutiva. Impossível de um reprodutivo "desenvolvimento contínuo", ao contrário, data venia, da afirmação textualmente feita na petição inicial da presente ação. Equivale a dizer, o zigoto assim extra-corporalmente produzido e também extracorporalmente cultivado e armazenado é entidade embrionária que, em termos de uma hipotética gestação humana, corresponde ao ditado popular de que "uma andorinha só não faz verão". Pois o certo é que, à falta do húmus ou da constitutiva ambiência orgânica do corpo feminino, o óvulo já fecundado, mas em estado de congelamento, estaca na sua própria linha de partida genética. Não tem como alcançar a fase que, na mulher grávida , corresponde àquela "nidação" que já é a ante-sala do feto . Mas é embrião que conserva, pelo menos durante algum tempo, a totipotência para se diferenciar em outro tecido (inclusive neurônios) que nenhuma célula-tronco adulta parece deter. (ADI 3.510/DF, 2008)

 

Dessa forma, restou definido, no acórdão que julgou improcedente a ADI, que os embriões produzidos in vitro, que se encontram congelados, sem qualquer perspectiva de adentrar o corpo da mulher a fim de iniciar-se a gestação, e autorizados a serem objeto de pesquisa genética, não tem como alcançar a fase da nidação, e portanto não deveria prosperar o argumento de que o art. 5º da Lei Federal n. 11.105/2005 seria inconstitucional.

No entanto, importante destacar que no tocante aos embriões concebidos com o intuito de se gerar uma nova vida humana, mesmo que produzidos em laboratório para a realização de fertilização artificial, estes tem protegido o bem jurídico supremo, qual seja a vida humana, independente da discussão para determinar a partir de qual momento se pode dizer que o embrião humano é pessoa.

É indubitável a proteção constitucional autônoma do direito à vida do ser humano, e portanto do direito à identidade genética, conforme o previsto no artigo 5º, caput, da CRFB/88, mencionando-se também o Pacto de São José da Costa Rica e até mesmo o Estatuto da Criança e Adolescente, que assegura o direito ao tratamento pré-natal e também o direito ao nascimento.

Dessa forma, pode-se concluir que a proteção ao direito à vida se dá desde a sua concepção, independendo da resposta afirmativa ou negativa se o embrião humano é pessoa humana, mas é imperioso destacar que tal direito não é absoluto, encontrando limites diversos no ordenamento jurídico pátrio.

 

 

3.3 Os Limites dos Direitos Fundamentais

 

3.3.1 Noções gerais

 

Discute-se acerca da existência de direitos absolutos, ou seja, que em momento algum poderiam ser afastados. No entanto para Alexy:

 

Si existen princípios absolutos, hay que modificar la definición del concepto de principio, pues el hecho de que exista um principio que, em caso de colisión, tiene que preceder a todos los otros princípios, es decir, tambíen a aquél que dice que las reglas estatuídas tienen que ser obedecidas, significa que su realización no conoce limites jurídicos. Sólo siguen existiendo limites fácticos. El teorema de la colisión no es aplicable. (ALEXY, 1997, p. 106)

 

Dessa forma, conclui-se que nem mesmo o princípio da dignidade humana é de fato absoluto. Cumpre citar a excludente de ilicitude do aborto nos casos de estupro, que por si só demonstra uma relativização de um direito fundamental.

Faz-se necessário, quando do caso concreto, uma avaliação da situação, cuidando-se para traçar limites proporcionais sem ultrapassar o necessário, visando produzir a concordância dos bens jurídicos. Para Petterle:

 

Quanto a tipologia das restrições aos direitos fundamentais, podem ser “restrições constitucionais imediatas” (diretamente estabelecidas pelas normas constitucionais), “limites ou restrições estabelecidos por lei” (quando a norma constitucional autoriza a restrição por lei, então sob “reserva da lei restritiva”) e “limites constitucionais não escritos ou restrições não expressamente autorizadas pela Constituição. (PETTERLE, 2007, p. 137)

 

Assim, ao se admitir que os direitos fundamentais são passíveis de restrições, conforme a necessidade de solucionar colisões entre tais direitos, vale ainda indagar acerca do alcance destas restrições, que também são passíveis de limites, vez que também se faz necessário proteger o núcleo essencial de cada direito fundamental, bem como a observância do princípio da proporcionalidade.

O principio da proporcionalidade se divide em três subprincípios, quais sejam o da idoneidade, que tem o objetivo de verificar se o meio escolhido pelo legislador está relacionado com o fim almejado, o subprincípio da necessidade, que exige que quando o Estado restrinja direitos, se escolha o meio menos oneroso, caso existam outros meios igualmente eficazes a tal objetivo, e por fim o subprincípio da proporcionalidade, o qual cumpre verificar se a restrição de um princípio é proporcional à realização do princípio oposto.

3.3.2 Os conflitos e tensões entre direitos fundamentais no caso concreto

 

Em primeiro caso, pode-se avaliar a colisão do direito fundamental à saúde e o direito fundamental à identidade.

De início, pode-se citar o artigo 196, da Constituição Federal:

 

Art. 196 – A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantindo mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doenças e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.  (BRASIL, 1988)

 

Dessa forma, em se tratando de pesquisas genéticas, e até mesmo tecnologias de clonagem não reprodutiva, ou seja, terapêuticas, além de terapias genéticas, caso o direito à identidade fosse absoluta, criar-se-iam barreiras intransponíveis aos novos tratamentos terapêuticos relacionados à genética, uma vez que não encontram respaldo no ordenamento jurídico constitucional.

Outra problemática no caso concreto que poderia ser citada, envolve o âmbito do direito trabalhista, Vale citar aqui, para fins de ilustração o filme “Gattaca – a Experiência Genética”, de 1997, em que se pode ver um mundo onde aqueles que possuem uma genética “perfeita”, teria os melhores empregos, em contrapartida, aqueles que não tem acesso a tal carga genética considerada perfeita, lhe caberiam os piores empregos.

Isso remete a uma questão interessante acerca do acesso ao patrimônio genético de um indivíduo e a possibilidade de se fazer uso de tais informações, referentes à identidade genética da pessoa.

A Lei n. 13.709/18 (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais), versa sobre a possibilidade do acesso aos dados genéticos do indivíduo, desde que os fins o autorizem. No entanto, tal acesso não é indiscriminado, o intuito desta permissividade seria apenas para fins de preservação da saúde do empregado.

Neste caso, acima do direito à não informação e o direito à identidade genética, se sobreporia o direito à vida e à saúde. A situação ideal seria aquela em que o empregador poderia exigir o mapeamento genético do empregado, mas somente o médico teria acesso aos resultados obtidos, sendo que o informado ao empregador seria apenas respostas relativas ao potencial extraordinário de o empregado desenvolver determinada doença caso exposto a um agente etiológico presente em grande quantidade no seu ambiente de trabalho.

Veja que aqui não se fala de interesse econômico, muito menos em discriminação do empregado, o que se visa neste contexto é a proteção da saúde e da vida do empregado a fim de evitar sua exposição a agente etiológico com o qual tem grande chance de  desenvolver doença.

Diante todo o exposto no presente trabalho , discutindo-se acerca da dignidade humana, como direito fundamental, a forma como se verifica a existência de um direito fundamental, mesmo que não previsto expressamente na Constituição Federal, verifica-se que a identidade genética é direito fundamental do indivíduo humano, mas apesar de se elevar a tal patamar, restou provado também que nenhum direito, mesmo que fundamental está sujeito a uma condição de absoluto, fazendo imperiosa a análise de cada caso, a fim de ponderar a proporcionalidade de cada direito a ser preservado em detrimento de direito oposto,  quando estes entram em conflito.

 
CONCLUSÃO

 

O genoma humano pode ser definido como o grupo de material genético localizado no interior dos cromossomos de uma célula, sendo que o conjunto de cromossomos identifica cada indivíduo, de forma irrepetível e única. Em relação ao termo identidade genética, há um foco no indivíduo, sendo que tal identidade configura uma base biológica da sua identidade pessoal.

Assim, tendo em vista a evolução das ciências genéticas e das tecnologias que impactam direta e indiretamente na identidade genética da pessoa humana, busca-se proteger tal identidade, a fim de se evitar uma leitura reducionista do ser humano, limitando sua identidade apenas ao seu material genético.

No que se refere à proteção jurídica de tal direito, verifica-se uma convergência, mesmo no âmbito internacional de uma definição de normas que estejam de acordo e em observância ao respeito aos direitos humanos fundamentais e à dignidade humana.

A fim de esclarecer a definição de dignidade humana no campo jurídico, analisou-se a dignidade no âmbito filosófico, fazendo-se menção a filósofo de renome a fim de respaldar o presente estudo. Levantou-se ainda a questão da aplicação de dignidade nos casos de embriões humanos, debatida também a problemática da busca pela resposta se o embrião é sujeito de direito ou não, bem como quando se dá o início da vida humana.

Além disso, foi demonstrado o direito à identidade genética e sua elevação ao patamar de garantia fundamental protegida pela Constituição Federal de 1988, além de diversas Declarações Internacionais, como a Declaração Internacional sobre Dados Genéticos Humanos, a Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos e a Declaração das Nações Unidas sobre a Clonagem Humana, que envolvem o tema, tamanha sua relevância para a sociedade como um todo.

Ademais, foi discorrido acerca da Constituição Suíça e da Constituição Portuguesa, pioneiras quanto ao protecionismo constitucional da genética humana, bem como da genética não humana, tutelando tais direitos em sua carta magna, elevando-os também ao patamar de garantias constitucionais.

Quanto à concepção acerca da individualidade da identidade genética, pode-se defini-la como um bem jurídico fundamental, sendo uma das manifestações essenciais da personalidade humana, visto que cada genoma é único, com suas particularidades e especificidades, sendo um bem resguardado pela Constituição Federal, e objeto de ostensiva fiscalização quando se trata da manipulação do genoma humano para fins de pesquisas científicas.

Foi constatado que todavia restam questões ainda obscuras e que carecem de estudos mais aprofundados, tanto no âmbito das ciências biológicas, quanto das ciências jurídicos, valendo-se ainda de estudos no campo da moral e da ética.

A descoberta de tratamentos genéticos veio acompanhada de diversas questões relacionadas aos direitos fundamentais, em especial ao direito à identidade genética. Com a evolução do manuseio do material genético, abriu-se as portas da possibilidade de clonagem humana, mas que esta é de fato uma violação ao direito fundamental de identidade genética de uma indivíduo.

Sendo assim, o presente trabalho visa demonstrar tamanha a importância de se resguardar e normatizar o direito à Identidade Genética, direito esse elevado a direito fundamental e de grande impacto na vida social do indivíduo, seja na saúde, na família, no trabalho, quanto em outras esferas sociais e científicas.

Ademais, considerando-se que não existem direitos absolutos, mesmo que protegidos sempre, destacou-se a imposição de limites a tais direitos, visto que em detrimento à identidade genética, há outros direitos que devem ser tutelados, não sendo interessante a fixação de barreiras intransponíveis aos estudos científicos e à novos tratamentos de saúde.

Dessa forma, as questões relacionadas à proteção ao direito fundamental da identidade genética, todavia merecem um estudo mais aprofundado, vez que neste trabalho foram abordados apenas alguns tópicos relativos a tal problemática. Ademais, vale ressaltar que a todo momento as pesquisas científicas evoluem e fazem novas descobertas, acarretando em novos bens a serem tutelados e novas discussões a serem realizadas.

Por fim, pode-se concluir que com o reconhecimento de um direito à identidade genética pelo ordenamento jurídico, delimitando-se suas funções e seu objeto, torna-se viável a procura de soluções no âmbito jurídico relativos a promoção e proteção do referido bem fundamental, ademais de que enseja o aumento de estudos e produções científicas acerca desse tema. Além disso, mostra-se totalmente justificável a consagração do identidade genética humana como direito fundamental, vislumbrando-se a possibilidade de inclusão do mesmo na carta política brasileira.

 
REFERÊNCIAS

 

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ASSEMBLEIA CONSTITUINTE (1976), Constituição da República Portuguesa – V Revisão Constitucional. Versão online no site: http://www.parlamento.pt/const_leg/crp_port/index.html.

 

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BARACHO, José Alfredo de Oliveira. A identidade genética do ser humano. Bioconstituição: Bioética e Direito. Disponível em: http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/8938-8937-1-PB.pdf. Acesso em 25/11/2019.

 

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HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do Espirito; Estética: a ideia e o ideal; Estética : o Belo artístico e o ideal. São Paulo: Abril Cultural, 1980.

 

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UNESCO. Declaração Universal sobre o genoma humana e dos  Direitos Humanos (DUGHDH – 2001). Disponível em: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000122990_por. Acesso em 02/12/220.

 

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VASCONCELOS, Cristiane Beuren. A proteção do ser humano in vitro na era da biotecnologia. São Paulo: Atlas, 2006. p. 35.

 

WEBER, Thadeu. Ética e Filosofia Política: Hegel e o Formalismo Kantiano. Porto Alegre EDIPUCRS, 1999.

 

Sobre os autores
Gil César Costa de Paula

Sociólogo, doutor em educação, pós doutorado em direito, professor do curso de direito da Escola de Direito e Relações Internacionais da Luc Goiás, Analista Judiciário do TRT 18 Região, bacharel em direito, mestre em direito. Professor do Programa de Mestrado em Serviço Social da PUC GOIÁS.

Alejandro Javier Niño de Guzmán Izarra

Graduando em Direito na PUC GOIÁS. ESCOLA DE DIREITO E RELAÇÕES INTERNACIONAIS.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Trabalho de Conclusão do curso de direito defendido pelo acadêmico Alejandro Javier Niño de Guzmán Izarra, sob orientação do professor Dr Gil César Costa de Paula, do curso de direito da PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE GOIÁS, ESCOLA DE DIREITO E RELAÇÕES INTERNACIONAIS, 2020/2.

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