A desproporcionalidade (extrema) das penas do artigo 273 do Código Penal Brasileiro

Leia nesta página:

O presente artigo busca lançar um olhar com lupa sobre os motivos que culminaram na atual redação desse artigo e a pena culminada a ele

Não é novidade que o legislador brasileiro atue de forma muito mais política do que técnica na atividade legislativa, haja vista a quantidade de leis inócuas na legislação pátria, mas no artigo aqui em estudo essa “qualidade” foi gritante. 

Antes de tecermos mais observações e comentários devemos transcrever a antiga e a nova redação do artigo em questão.

A redação anterior era a seguinte:

Art. 273 - Alterar substância alimentícia ou medicinal:
I - modificando-lhe a qualidade ou reduzindo-lhe o valor nutritivo ou terapêutico;
II - suprimindo, total ou parcialmente, qualquer elemento de sua composição normal, ou substituindo-o por outro de qualidade inferior:
Pena - reclusão, de um a três anos, e multa, de um a cinco contos de réis.
§ 1º Na mesma pena incorre quem vende, expõe à venda, tem em depósito para vender ou, de qualquer forma, entrega a consumo a substância alterada nos termos deste artigo.
Modalidade culposa
§ 2º Se o crime é culposo:
Pena - detenção, de dois a seis meses, e multa, de duzentos mil réis a um conto de réis.

Com a alteração promovida pela lei nº 9.677, de 2 de julho de 1998, o artigo passou a ter a seguinte redação:

Art. 273 - Falsificar, corromper, adulterar ou alterar produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais:
Pena - reclusão, de 10 (dez) a 15 (quinze) anos, e multa.
§ 1º - Nas mesmas penas incorre quem importa, vende, expõe à venda, tem em depósito para vender ou, de qualquer forma, distribui ou entrega a consumo o produto falsificado, corrompido, adulterado ou alterado. 
§ 1º-A - Incluem-se entre os produtos a que se refere este artigo os medicamentos, as matérias-primas, os insumos farmacêuticos, os cosméticos, os saneantes e os de uso em diagnóstico.
§ 1º-B - Está sujeito às penas deste artigo quem pratica as ações previstas no § 1º em relação a produtos em qualquer das seguintes condições:
I - sem registro, quando exigível, no órgão de vigilância sanitária competente; 
II - em desacordo com a fórmula constante do registro previsto no inciso anterior;
III - sem as características de identidade e qualidade admitidas para a sua comercialização; 
IV - com redução de seu valor terapêutico ou de sua atividade; 
V - de procedência ignorada;
VI - adquiridos de estabelecimento sem licença da autoridade sanitária competente. 
Modalidade culposa
§ 2º - Se o crime é culposo: 
Pena - detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa. 

Em que pese as alterações realizadas no preceito primário (descrição abstrata ou típica do crime) do artigo, o que salta aos olhos é a alteração brusca do preceito secundário (que traz a sanção abstrata) na modalidade dolosa: De uma pena mínima de reclusão de 1 (um) e máxima de 3 (três) anos houve um salto para uma pena de reclusão mínima de 10 (dez) e máxima de 15 (quinze) anos!

Em um cálculo aritmético, rápido e simples, verificamos que a pena mínima foi decuplicada e a máxima foi quintuplicada!

Mas o que houve para o legislador promover essa alteração, podemos afirmar no mínimo “significativa”, nesse artigo?

Para isso precisamos voltar ao tempo, mais precisamente ao ano de 1998. Enquanto a maioria dos brasileiros estava entorpecido pela campanha da seleção brasileira na copa do mundo da França (E o ápice da fatídica partida final entre o Brasil e a seleção do país sede em 12/07 e a inesquecível goleada francesa de 3 a 0 sobre nós, com direito ao “apagão” de Ronaldo Fenômeno!) um escândalo público rondava o pouco espaço que sobrava do noticiário diante das notícias da copa: Os remédios B.O.(bom para otário).

O escândalo em questão, que culminou inclusive com a instalação de uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) era de uma máfia responsável por adulteração e falsificação de remédios. Estavam envolvidos nesse escândalo desde pequenas farmácias até grandes laboratórios.

O legislativo pátrio, sempre atento as demandas do povo (especialmente em ano de eleições gerais, como era em 1998) não tardou em dar uma resposta a essa nefasta conduta e, em 2 de julho de 1998, era sancionada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso a lei número 9.677, que ficou conhecida pela alcunha de “lei dos remédios”. Essa lei, entre outras alterações, trouxe a atual redação do artigo 273 do CP, conforme já transcrevemos anteriormente.

Não há dúvidas que o crime de falsificação e adulteração de medicamentos seja horrendo e mereça dura repreenda da lei. Ocorre que, em nosso ordenamento jurídico, existe o chamado “princípio da proporcionalidade”, o qual parece ter sido absolutamente ignorado pelo legislador no caso em tela.

O princípio da proporcionalidade está previsto, de forma implícita, no artigo , inciso LIV, da Constituição Federal. Nessa esteira, podemos concluir que todas as normas jurídicas brasileiras devem respeito ao citado princípio, sob pena de estarem eivadas do vício de inconstitucionalidade.

O princípio da proporcionalidade se integra ao Estado Democrático de Direito enquanto tal, impondo a proteção do indivíduo contra intervenções estatais desnecessárias ou excessivas, que venham a causar danos mais graves que os necessários para a proteção dos interesses públicos.

No caso em comento, se verifica uma punição excessiva imposta pelo legislador na nova redação dada ao artigo. Para fins de comparação, o crime de tráfico de drogas, previsto no artigo 33 da lei 11.343/2006, comina uma pena mínima de 5 e máxima de 15 anos. Já o crime de roubo, previsto no artigo 157, caput, do Código Penal Brasileiro, define uma pena mínima de 4 e máxima de 10 anos. O repugnante, e infelizmente comum, crime de estupro, elencado no artigo 213 do CPB, traz uma pena mínima de 6 e máxima de 10 anos para o praticante da conduta típica.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Diante da falha do legislador, o Poder Judiciário vem tentando uma correção na aplicação da lei ao caso concreto. São diversas as decisões suscitando a inconstitucionalidade do artigo em relação ao seu preceito secundário 

Podemos destacar o caso de um homem que foi condenado a 11 anos de reclusão por ter em depósito para venda pequena quantidade de substâncias anabolizantes – nove frascos e 25 comprimidos, conduta que se amolda ao artigo 273, parágrafo 1º-B, inciso V.

O caso em questão, durante análise no STJ, teve a pena imposta ao réu redimensionada pela Sexta Turma, considerando a sanção prevista para o delito de tráfico de drogas (artigo 33 da Lei 11.343/06). A Corte Especial entendeu que é possível fazer a analogia por semelhança de condutas para beneficiar o acusado.

O STF, em análise recente de um caso semelhante, no RE 979962 (Tema 1003), por unanimidade, reputou constitucional a questão, bem como reconheceu a existência de repercussão geral da questão constitucional suscitada. O julgamento do recurso está marcado para o dia 4 de novembro de 2020, conforme publicação no DJe edição extra, nº 227/2020, divulgado em 11/09/2020.

Aguardamos ansiosamente por esse julgamento, a fim de ver sanada todas essas questões que giram em torno desse polêmico artigo, fruto de mais uma demonstração de atecnia por parte do Poder Legislativo.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm Acesso em 05/09/2020.

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9677.htm Acesso em 05/09/2020.

https://www.advogadocriminalemsp.com.br/qualocrime-de-remedios-importados-proibidos-no-brasil/ Acesso em 05/09/2020.

https://www.conjur.com.br/2018-set-03/venda-nota-produto-estrangeiro-permitido-cabe-justiça-federal Acesso em 18/09/2020.

https://www.conjur.com.br/2016-fev-17/crime-venda-ilegal-remedio-substancia-for-proibida Acesso em 18/09/2020.

https://www.folhadelondrina.com.br/geral/camargo-admtiu-na-cpi-que-ha-remedios-bons-para-otarios-257701.htmlAcesso em 05/10/2020.

https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1998/7/11/opiniao/8.html#:~:text=Paulo%20%2D%20M%C3%A1fia%20dos%20rem%C3%A9dios%20%2D%2011%2F7%2F1998&text=A%20indigna%C3%A7%C3%A3o%20suscitada%20pela%20curva,boa%2Df%C3%A9%20do%20cidad%C3%A3o%20brasileiro. Acesso em 05/10/2020.

https://stj.jusbrasil.com.br/noticias/171780138/stj-considera-inconstitucional-pena-para-venda-de-medicamento-de-procedencia-ignorada#:~:text=A%20Corte%20Especial%20do%20Superior,ou%20medicinais%20de%20proced%C3%AAncia%20ignorada.Acesso em 05/10/2020.

Martha Rabelo, Graziele. O princípio da proporcionalidade no Direito Penal. https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-penal/o-principio-da-proporcionalidade-no-direito-penal/Acesso em 05/10/2020.

http://www.mpgo.mp.br/portal/noticia/paraostfoafastamento-do-artigo-273-1bdo-cp-com-aplicacao-do-artigo-33-4-da-lein11-343-06-depende-de-declaracao-de-inconstitucionalidade-pelo-orgao-especial-nao-caracterizando-mera-interpretacao-de-norma-infraconstitucional#.X4NFLShKjMwAcesso em 07/10/2020.

http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=5006518&numeroProcesso=979962&classeProcesso=RE&numeroTema=1003 Acesso em 07/10/2020.

Sobre os autores
Leonardo Moreira Dias

Bacharel em Direito pela Universidade Gama Filho (2010). Aprovado no Exame de Ordem da OAB 2010/2. Título de Especialista em Direito Público com capacitação para ensino no Magistério Superior pela Faculdade de Direito Professor Damásio de Jesus (2013). Bacharel em Sistemas de Informação pela Universidade Estácio de Sá - Rio de Janeiro (2019). Pós-graduado em Business Intelligence, Big Data e Analytics na Universidade Norte do Paraná (2021). Pós-graduado em Direito Constitucional Aplicado, pela Faculdade Legale (2022 - 2023). Funcionário público no Estado do Rio de Janeiro desde 2001. Tem experiência na área de Direito Público, com ênfase em Direito Penal.

Marcelo Couto Fernandes

Inspetor de Polícia da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro (PCERJ-SEPOL). Graduado em Sistemas de Informação. Especialista em desenvolvimento mobile.

Custódio Rubens Barbosa Junior

Inspetor de Polícia da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro (PCERJ-SEPOL). Bacharel em Sistemas de Informação. Especialista em banco de dados.

Elaine Bilate

Funcionária Pública do Estado do Rio de Janeiro (SEPOL). Especialista em Gestão de Qualidade.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos