Aplicação de medida socioeducativa de privação de liberdade a adolescente do sexo feminino no Estado do Tocantins

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O presente artigo tem como foco a aplicação de medida socioeducativa de privação de liberdade a adolescente do sexo feminino no estado do Tocantins, analisando a violência sofrida e praticada pelas adolescentes em conflito com a lei e sua invisibilidade.

RESUMO: O presente artigo tem como foco a aplicação de medida socioeducativa de privação de liberdade a adolescente do sexo feminino no estado do Tocantins, analisando a violência sofrida e praticada pelas adolescentes em conflito com a lei e a sua invisibilidade no sistema socioeducativo, verificando quais são os atos infracionais de maior incidência praticados pelas adolescentes submetidas a medida socioeducativa de privação de liberdade, a fim de compreender os fatores que impulsionam as adolescentes a praticarem ato infracional e os reflexos gerados em suas vidas. A pesquisa quantitativa foi desenvolvida por meio de revisão bibliográfica embasada num conjunto básico de informações sobre adolescentes do sexo feminino que cumprem medidas socioeducativas de privação de liberdade, delimitando-se o espaço geográfico do estado do Tocantins, com dados referentes aos anos de 2017 a 2019. Os resultados sugerem que a aplicação da medida socioeducativa não deve ter como fim prioritário o caráter punitivo e aflitivo pautado na defesa social, isto é, na segurança dos cidadãos, mas que atenda, sobretudo, ao escopo pedagógico, e que o tempo de internação seja estímulo ao projeto de vida, oportunizando ao adolescente conhecer formas de existir, trabalhar e conviver, sem que tenham de experienciar mais situações de violência.

Palavras-chave: Medida socioeducativa; privação de liberdade; adolescente do sexo feminino.

 

ABSTRACT: This article focuses on the application of a socio-educational measure of deprivation of liberty to female adolescents in the State of Tocantins, analyzing the violence suffered and practiced by adolescents in conflict with the law and its invisibility in the socio-educational system, verifying which are the highest incidence of infraction acts practiced by adolescents submitted to a socio-educational measure of deprivation of liberty, in order to understand the factors that drive the adolescents to practice an infraction act and the reflexes generated in their lives. The quantitative research was developed through a bibliographic review based on a basic set of information on female adolescents who comply with socio-educational measures of deprivation of liberty, delimiting the geographic space of the State of Tocantins, with data referring to the years 2017 to 2019. The results suggest that the application of the socio-educational measure should not have as a priority aim the punitive and afflictive character based on social defense, i.e., the safety of citizens, but that it should meet, above all, the pedagogical scope, and that the time spent in detention should be a stimulus to the project of life, giving the adolescent the opportunity to know ways to exist, work and live together, without having to experience more situations of violence.

Keywords: Socio-educational measure; deprivation of liberty; female adolescent.

1. INTRODUÇÃO

         O presente artigo tem como finalidade analisar a aplicação de medida socioeducativa de privação de liberdade a adolescente do sexo feminino no estado do Tocantins. As medidas socioeducativas são medidas repressivas previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente, aplicáveis aos adolescentes entre doze e dezoito anos que cometam ato infracional.

              A definição de ato infracional está prevista no artigo 103 do referido Estatuto: “considera-se ato infracional a conduta descrita como crime ou contravenção penal”. A medida de restrição de liberdade imposta aos adolescentes deve ser aplicada excepcionalmente, posto que restringe sua liberdade numa instituição educacional, esta, por vezes, equiparada a unidade prisional, normalmente superlotada e oferecendo tratamento degradante, pouca estrutura e práticas repressivas. As medidas devem ser aplicadas com a finalidade de realizar a proteção integral do adolescente, segundo a capacidade de seu cumprimento.

            No decorrer deste trabalho será analisada a violência sofrida e praticada pelas adolescentes em conflito com a lei e a sua invisibilidade no sistema socioeducativo, verificando quais são os atos infracionais de maior incidência praticados pelas adolescentes no estado do Tocantins submetidas a medida socioeducativa de privação de liberdade, a fim de compreender os fatores que impulsionam as adolescentes a praticarem ato infracional e os reflexos que a aplicação da medida socioeducativa gera em suas vidas.

             No percurso metodológico utilizou-se a pesquisa descritiva e quantitativa sobre adolescentes do sexo feminino que cumprem medidas socieducativas de privação de liberdade, por meio de levantamento bibliográfico e coleta de dados das unidades socioeducativas de restrição de liberdade, delimitando-se o espaço geográfico do estado do Tocantins, com dados referentes aos anos de 2017 a 2019.

             A baixa participação de adolescentes do sexo feminino no cometimento de ato infracional não deve ser um fator para a desconsideração deste fenômeno. Todavia, é necessário averiguar as suas especificidades, incidências e elementos constituidores, em um campo pouco explorado, o que ocasiona a invisibilidade das adolescentes em conflito com a lei no sistema socioeducativo, especificamente no sistema socioeducativo do estado do Tocantins.

         Há pouca discussão sobre os fatores que impulsionam as adolescentes a praticarem ato infracional, o que leva à necessidade de compreensão da organização da sociedade, trazendo questões de gênero, históricas e contemporâneas nas relações entre homens e mulheres e seus reflexos na prática do ato infracional.

              Desse modo, é essencial compreender as relações sociais e suas diferenças que implicam na organização da sociedade, posto que, quando uma adolescente do sexo feminino incide na prática de ato infracional, ela rompe com padrões femininos esperados, passando a ser julgada não somente pelo ato que cometeu, mas também sendo julgada socialmente pelo rompimento do papel social a ela designado.

            Não obstante a incidência da prática do ato infracional pelas adolescentes do sexo feminino ser inferior ao masculino, a complexidade e ausência de políticas públicas específicas tornam as adolescentes em conflito com a lei, por vezes, invisíveis, evidenciando-se descaso e negligência estatal e social.

          Portanto, é de suma relevância analisar o contexto social em que essas adolescentes estão inseridas e o reflexo da aplicação da medida socioeducativa de privação de liberdade em suas vidas.

2. APLICAÇÃO DE MEDIDA SOCIOEDUCATIVA A ADOLESCENTE DO SEXO FEMININO NO ESTADO DO TOCANTINS

 

        A adolescência é um momento marcado por transformações físicas, psicológicas e cognitivas, iniciadas com a puberdade e desencadeadas por fatores hormonais. Tal período se estabelece conforme cada indivíduo; todavia, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) utiliza o critério etário, sendo este compreendido entre doze e dezoito anos. É principalmente na adolescência que ocorrem confusões, impulsões, instabilidade emocional, busca de identidade, independência, autoafirmação e aceitação.

(...) na visão do adulto o adolescente é um ser em desenvolvimento e em conflito. Atravessa uma crise que se origina basicamente em mudanças corporais, outros fatores pessoais e conflitos familiares. E finalmente é considerado adulto quando mais adaptado a estrutura da sociedade. (BECKER, 1997, p. 8 - 9).

          Desse modo, a adolescência é uma fase de desenvolvimento em que o indivíduo está passando por transformações, sendo próprio deste período de mudanças que surjam conflitos, posto que este é o momento em que o indivíduo está se apropriando das escolhas, decisões e rumos em sua vida. 

         Costa transcreve as lições da educadora argentina Cláudia Jacinto, aduzindo que é na adolescência que o ser humano nasce pela segunda vez:

No primeiro nascimento no momento do parto ele nasce para sua família e para o mundo, porque é o novo integrante do convívio familiar (...) o segundo nascimento, que deve acontecer ao longo da adolescência, ocorre quando o educando se mostra capaz de plasmar sua identidade, ou seja, quando ele toma consciência das suas potencialidades e limitações e é capaz de compreender-se e aceitar-se, do jeito que é. Ele nasce, na verdade, para si mesmo. É ainda nessa fase peculiar de desenvolvimento que ele nasce também para a sociedade, porque, buscando ocupar um espaço do dinamismo comunitário e social mais amplo no qual está inserido, o jovem tem como tarefa a construção do seu projeto de vida: um sonho com degraus, um trajeto com passos que devem ser dados para atingir o objetivo almejado. Trata-se, de certa forma, de uma visão de futuro, uma espécie de memórias de coisas que ainda não aconteceram, mas que, se assumidas com esforço e dedicação, têm condições de se viabilizarem e de revestir sua vida de sentido e direção (...).  Ele deve assumir e cumprir duas tarefas centrais nessa fase de sua vida: plasmar sua identidade e construir seu projeto de vida. (COSTA, 2006, p. 59).

         Com efeito, na adolescência ampliam-se as relações, projeções futuras e os vínculos, emergindo com mais intensidade o mundo social.

A possibilidade de estabelecer vínculos significativos com um ou mais adultos favorece a construção da identidade e os processos de recorte e significação do mundo da vida cotidiana. (PETRINI E CAVALCANTI, 2013, p. 189).

      Assim, é no outro e através do outro que o ser individual, bem ou mal, se constitui, sendo a sobrevivência vinculada à capacidade de integração do indivíduo na rede social. Não obstante, Petrini e Cavalcanti (2013, p. 190) entendem que o vínculo pode ser “carregado de afeto positivo ou negativo, pode envolver sofrimento, abuso e violência, mas continua sendo, mesmo em condições extremas, mecanismo de identidade e lugar no mundo”. É nesse sentido que se compreende a fase da adolescência, considerando os vínculos interpessoais e redes sociais como processos de construção na vida social.

        É nesse contexto, individual e coletivo, que o adolescente é tido como sujeito de direito, sujeito com direito especial na condição peculiar de pessoa em desenvolvimento pessoal e social, condição que o faz merecedor de cuidado e atenção, tendo em vista que não conhece de modo pleno seus direitos, não tem condições de fazê-los valer e defendê-los, e, ainda, não tem condições de suprir, por si mesmo, as suas necessidades básicas.

         Desta forma, o adolescente está inserido num contexto de transformações: física, mental, afetiva e espiritual, o que lhe coloca, por vezes, em situações de vulnerabilidade. O adolescente está suscetível a práticas e comportamentos negativos, desencadeados por problemas nas relações familiares, rupturas de vínculos, insegurança, necessidade de inserção em grupos, consumismo exacerbado, uso problemático de álcool e outras drogas, dificuldades escolares, entre outros fatores que facilitam ou induzem o cometimento de atos infracionais.

       Ademais, o artigo 227 da Constituição Federativa do Brasil preceitua que incumbe à família, Estado e sociedade assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, entre outros, o direito à vida, à liberdade, à alimentação, à profissionalização, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária, além de protegê-los de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

       A caminhada em favor dos direitos da criança e do adolescente se iniciou em 1923. A União Internacional Savethechildren editou e aprovou um documento denominado Declaração de Genebra, contendo os princípios básicos de proteção à infância. Em 1924, a Quinta Assembleia da Sociedade das Nações aprovou a Declaração de Genebra e propôs aos países membros que pautassem sua conduta em relação à infância observando os princípios nela contidos.

         Encerrada a II Guerra Mundial, a Organização das Nações Unidas (ONU) aprova uma Declaração que ampliou os Direitos constantes no Texto de 1924.

       Em 1959, a Assembleia-Geral, órgão máximo da ONU, aprova a Declaração Universal dos Direitos da Criança, um texto com dez princípios. Em 1978, o governo da Polônia apresenta à comunidade internacional proposta de Convenção Internacional sobre os direitos da criança. A Convenção é uma ferramenta mais forte que a Declaração. A Declaração propõe princípios nos quais os povos devem se pautar no tocante aos direitos da criança. Consoante Costa, (2006, p. 24), a “Convenção vai mais além, ela estabelece normas, isto é, deveres e obrigações aos países que a ela formalizem sua adesão. Ela confere a esses direitos a força de lei internacional”. Em 1989, a Assembleia-Geral aprovou o texto da Convenção Internacional dos Direitos da Criança, e, após ter sido ratificada por 20 países, entrou em vigor em 02 de setembro de 1990.

         Com o advento da Convenção das Nações Unidas de Direitos da Criança, ocorreu uma mudança de paradigma na condição jurídica da infância, inaugurando um novo processo de responsabilidade juvenil ancorado na doutrina de proteção integral, elevando a criança e o adolescente à condição de cidadão, tornando-os sujeitos de direitos, rompendo com o modelo tutelar utilizado no antigo Código de Menores, amparado na doutrina da situação irregular. Consoante reporta Campos Junior (2009, p. 13): “(...) os menores de 18 anos, independente da prática do ato definido em lei como crime, eram alvo da intervenção estatal por sua situação econômica-social, numa relação ‘abandono-pobreza-marginalidade’’’. Assim, muda-se a concepção do Estado e da sociedade do modo de proteger a infância e adolescência em situação de vulnerabilidade.

       Consoante Costa, (2006, p. 26) “(...) as crianças têm, ainda, um valor projetivo, ou seja, são portadoras do futuro, da continuidade de sua família, do seu povo e da espécie humana”.  Por conseguinte, a Convenção confere amplo e consistente conjunto de direitos individuais, como vida, liberdade, dignidade, etc., bem como direitos coletivos, sendo eles econômicos, sociais, culturais, dentre outros.

         Os destinatários da cobertura da Convenção são todas as crianças e adolescentes menores de 18 anos, salvo se, antes dessa idade, sejam consideradas maiores. A Convenção se ampara nas necessidades das crianças e dos adolescentes, como no atendimento às suas necessidades básicas, a proteção contra crueldade e exploração, o direito à convivência familiar e comunitária, e, ainda, a proteção especial aos que se encontram em circunstâncias particularmente difíceis.

        No Brasil, o avanço na luta pelos direitos da criança e do adolescente se concretizou com a previsão na Constituição Federal de 1988 do artigo 227, redigido com base no texto do Projeto de Convenção Internacional dos Direitos da Criança de 1989 (embora a Constituição seja anterior à Convenção, essa já vinha sendo discutida desde 1979), por meio de emenda popular criança-prioridade nacional. Consoante discorre Konzen (2005, p. 15):

(...) com a Constituição Federal de 1988, o Brasil adotou uma nova doutrina para regulamentar as relações da família, da sociedade e do Estado com as suas crianças e adolescentes. Fruto dos pactos entre as Nações, como, dentre outros, a Declaração dos Direitos do Homem de 1948, a Declaração dos Direitos da Criança de 1959 e a Convenção dos Direitos da Criança, proclamada em 1989, mas cujos princípios já vinham sendo discutidos e consolidados muito antes nos foros internacionais.

         A Lei Federal nº 8.069, de 13 de julho de 1990, Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), criou as condições de exigibilidade para as conquistas em favor das crianças e adolescentes expressas no artigo 227. Trata-se de marco no ordenamento jurídico brasileiro direcionado para garantias e direitos de crianças e adolescentes, fortalecendo o rompimento da doutrina da situação irregular e preconizando todas as crianças e adolescentes como sujeitos especiais de direito, pessoas em desenvolvimento, detentoras de todos os direitos fundamentais e sociais, devendo ser tratadas como prioridade absoluta pela família, sociedade e Estado.

         A população juvenil brasileira representa a parte mais prejudicada de toda a população, sendo intitulada por Konzen como jovens-resultados. Jovens-resultados de um “(...) somatório de fracassos, de suas famílias, de suas comunidades, das políticas sociais públicas. Jovens-resultados em sua grande maioria, do insucesso do projeto de desenvolvimento do País”. (KONZEN, 2005, p. 20).

        Assim, quando o adolescente comete um ato infracional torna-se visível. “Eles atravessam uma porta de vidro; feridos, eles chegam até nós, à nossa ordem simbólica”, talvez seja esse o primeiro momento que seja assistido pelos equipamentos públicos, conforme analisou o Fórum permanente do sistema de atendimento socioeducativo de Belo Horizonte, (2015, p. 19).

      No estado do Tocantins há duas unidades socioeducativas que atendem as adolescentes em cumprimento de medida de restrição de liberdade do sexo feminino. A unidade de Semiliberdade Feminina está localizada no Setor Sul, Taquaralto, Palmas/ TO. Tem uma capacidade física para internação de 20 adolescentes na faixa etária de 12 a 18 anos, excepcionalmente até 21 anos, conforme Projeto Político-Pedagógico de 2014. É uma unidade do Poder Executivo Estadual, vinculada à Secretaria de Cidadania e Justiça, criada em 2014 para atendimento ao cumprimento de medida das adolescentes em conflito com a lei, na modalidade de semiliberdade.

         Consoante o artigo 120 do ECA, a semiliberdade é uma medida que pode ser determinada desde o início, ou como forma de transição para o meio aberto, em que é possibilitada a realização de atividades externas, independentemente de autorização judicial.

         O Centro de Internação Provisória (CEIP Central) é uma unidade do Poder Executivo Estadual, vinculado à Secretaria de Cidadania e Justiça, e está em funcionamento desde o ano de 2006. A unidade está localizada no Jardim Taquari, Palmas/ TO, com capacidade de 18 vagas para adolescentes na faixa etária de 12 a 18 anos, excepcionalmente até os 21 anos, atendendo nas modalidades de internação e internação provisória.

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         Conforme o artigo 121 do ECA, constitui a internação medida privativa de liberdade, sujeita aos princípios da brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, sendo permitida a realização de atividades externas, a critério da equipe técnica da entidade, salvo expressa determinação judicial em contrário.

3. PRINCIPAIS ATOS INFRACIONAIS COMETIDOS PELAS ADOLESCENTES

 

      A aplicação de medida socioeducativa restritiva ou privativa de liberdade pressupõe provas suficientes de autoria e materialidade da prática de ato infracional, como condição para imposição judicial, unilateral e obrigatória ao adolescente autor de ato infracional numa relação de poder. A unilateralidade reside na subordinação em relação ao autor, “(...) cumpre ao Estado-Juiz a função da determinação dos instrumentos de cogência para vê-la cumprida” (KONZEN, 2005, p. 52). Assim, a determinação da medida socioeducativa prescinde da consulta à vontade do destinatário, vez que tem como fim a aplicação da função de manutenção da paz social.

        A obrigatoriedade consiste no exercício do poder de coerção sobre o indivíduo, sujeito a uma determinação contra si em consequência de um acontecimento antecedente, sendo a providência vinculada a um anterior comportamento inadequado. A incidência do ato infracional é sinônimo de prática de conduta expressamente vedada; por conseguinte, conduta sujeita a consequências. A imposição da medida socioeducativa está atrelada à reprovação de conduta ilícita.

          Não obstante, a medida socioeducativa atende a dois fins; a segurança dos cidadãos e a criação de oportunidades e condições favoráveis à viabilização do adolescente que cometeu ato infracional, isto é, “(...) servir à defesa social, produzir a prevenção da delinquência e a reinserção social do infrator” (KONZEN, 2005, p. 76). Consoante Costa (2006, p. 53), tem como fim:“ (...) assegurar aos educandos oportunidades reais de educação para o convívio social e elevar os níveis de segurança da população”, estando em foco o destinatário atingido pela medida,“(...) as consequências podem ser situadas no âmbito da dor física, moral ou emocional, pela restrição ou perda de um bem fundamental para a vida em sociedade”. (KONZEN, 2005, p. 43).

        Desse modo, somente o destinatário da medida será capaz de ponderar as consequências da resposta à infração. Outrossim, as medidas socioeducativas têm por finalidade a segurança e educação, a segurança do próprio adolescente, preservando sua incolumidade física e psicológica.

        Assim, para a aplicação da medida socioeducativa deve-se considerar a finalidade da necessidade pedagógica do adolescente. Conforme dispõe o artigo 100 do ECA, a autoridade judicial deve observar as necessidades pedagógicas, preferindo aquelas que visem ao fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários. Para Konzen (2005, p. 79-81), ao aplicar a medida deve o juiz:

(...) conformar o autor do ato infracional com aquela conseqüência capaz de responder adequadamente as necessidades pedagógicas reveladas pela infração e pelo estudo das condições pessoais do infrator. (...). pedagogia é a arte de educar, um conjunto de métodos e técnicas em busca do desenvolvimento do conhecimento, habilidades, valores e atitudes do educando (...) a criação e desenvolvimento de programas de atendimento centradas em metodologia educacional adequada à inserção social e familiar do autor de ato infracional constitui-se na pretensão mais desafiadora para o executores das medidas socioeducativas. Como educar para o viver em liberdade em ambientes de restrição ou privação da liberdade?

         Portanto, a aplicação da medida é amparada na crença de que a criança e adolescente são suscetíveis a modelos de aprendizagem com oportunidade de desenvolver as suas competências. Consoante Gomes (2006, p 24), “(...) aprender a ser - competências pessoais, aprender a conviver - competências relacionais, aprender a fazer - competências produtivas, e aprender a conhecer competências cognitivas”.

              Deste modo, a execução da medida socioeducativa deve possibilitar a incidência de práticas  pedagógicas como principal função a ser perseguida:

(...) não só para minimizar os efeitos da perda da liberdade, mas também para alcançar ao adolescente os espaços de reflexão crítica para a percepção das causas da infração, uma representação de si mesmo e do mundo o qual faz parte (KONZEN, 2005, p. 84).

           Neste passo, estão previstos os pressupostos legais para a aplicação da medida socioeducativa pautada nos princípios e critérios judiciais definidos nos artigos 112, § 1º, 113 e 121 do ECA, cabendo ao juiz proceder à individualização da medida por meio dos critérios previstos nos artigos 100 e 122, § 1º do referido Estatuto. Conforme Campos Junior (2009, p. 42), este princípio:

Revela como sendo uma verdadeira garantia humana fundamental, uma vez que todo adolescente possui o direito de obter uma medida justa, proporcional ao ato ilícito praticado e em sintonia com a sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento.

          A aplicação do princípio da individualização da medida permite que seja eleita e aplicada a justa medida a determinado adolescente. Assim sendo, em cada caso concreto a autoridade judiciária terá a imperiosa tarefa de estabelecer as consequências jurídicas adequadas para determinada infração, em consonância com o fato praticado e com as necessidades do adolescente. No processo socioeducativo deve-se buscar não somente a verdade do fato, mais também a descoberta da resposta mais pertinente.

        Ademais, deve ser observado o princípio da excepcionalidade da aplicação de medida de internação, insculpido no artigo 122 do ECA, que prevê que a medida de internação seja aplicada quando não houver uma alternativa mais adequada. Sobre o tema, discorre Costa Saraiva:

O princípio da excepcionalidade se sustenta na idéia de que a privação de liberdade não se constitui na melhor opção para a construção de uma efetiva ação socioeducativa em face do adolescente, somente acionável,se, enquanto mecanismo de defesa social, outra alternativa não se apresentar. (COSTA SARAIVA, 2006, p. 171).

            Dessa forma, não somente a gravidade da conduta do ato infracional autoriza, por si, a opção por determinada medida. Devem-se observar as circunstâncias do fato e as condições subjetivas do adolescente no seu cumprimento.

            A medida deve ser aplicada observando o princípio da brevidade, em razão da condição peculiar de desenvolvimento do adolescente, num tempo de especial transformação. Por conseguinte, para melhor recepcionar e responder às intervenções dirigidas, a “(...) medida deverá ser breve porque a sua condição suficiente será a identificação de referências cognitivas e subjetivas de o adolescente ter se tornado capaz de viver socialmente”. (CAMPOS JUNIOR, 2009, p. 59). Este princípio pode ser entendido como composição dos princípios da proporcionalidade e eficiência, compreendendo ainda o fato de o adolescente ser pessoa em fase especial de desenvolvimento, preservando a dignidade e os efeitos nocivos de longos períodos de restrição de liberdade.

        Tais princípios têm como fim limitar e impedir a imposição de medidas abusivas e evitar efeitos negativos advindos da aplicação da medida, em especial a privativa de liberdade.

        Desta forma, o ECA define os critérios para aplicação da medida socioeducativa, sendo o primeiro a necessidade pedagógica do adolescente, a fim de que haja o fortalecimento de vínculos familiares e comunitários e o seu desenvolvimento social e pessoal, sendo fundamental a realização de estudo psicossocial para a verificação dessa necessidade. O segundo critério é a capacidade do adolescente para o cumprimento da medida, devendo ser determinada em compatibilidade com as condições de saúde ou em conformidade com os aspectos físicos, mentais ou emocionais de cada adolescente. O terceiro critério é o da proporcionalidade para fixar a melhor medida, devendo guardar a mínima correspondência entre a gravidade da infração e suas consequências, a necessidade pedagógica e a capacidade de cumprimento.

         Conforme ensina Konzen, a medida socioeducativa tem configuração instrumental:

(...) é umbilicalmente dependente da realização de dois objetivos constitutivos: um, o da capacidade em responder à necessidade da defesa social;outro, o da interferência no desenvolvimento do jovem através da prática pedagógica, para devolvê-lo ao convívio social sem os riscos da voltar à delinqüência. (...) a realização do ideal pedagógico da medida é dependente da adesão voluntária do adolescente (KONZEN, 2005, p. 90).

         A natureza jurídica da medida socioeducativa tem a substância penal e a finalidade pedagógica, devendo ser respeitados todos os procedimentos e garantias pessoais e individuais, processuais, rito procedimental da apuração e aplicação da medida. Igualmente devem ser observados os princípios da legalidade, jurisdicionalidade, contraditório, inviolabilidade da defesa, dentre outros, inclusive o Estado-Juiz deve se relacionar com o adolescente com respeito e dignidade, devendo assegurar sua condição especial de sujeito-adolescente, ao qual está amparado por um conjunto de normas específicas denominadas Direito Penal Especial, Direito Penal Juvenil, Direito Socioeducativo, dentre outros termos, com princípios, regras normatizadoras de prerrogativas e possibilidades de contraposição à imputação da conduta ilícita.

      As medidas de restrição e privação de liberdade são de semiliberdade e de internação, representando para o adolescente:

(...) institucionalização, com a ruptura da vida familiar e dos laços com o ambiente da comunidade e com todos os agrupamentos sociais. Cessa a liberdade de ir e vir. Cessa a possibilidade da livre satisfação das necessidades (KONZEN, 2005, p. 50).

         Por decisão judicial ocorre a vinculação obrigatória da vida, que passa a ser ditada, direcionada para a disciplina e para a manutenção da ordem em detrimento da satisfação da vontade pessoal. O modo de vida institucional consiste na perda da individualidade, uma vez que as crenças e valores de cada um são substituídos pela ética da instituição. Konzen (2005, p. 50), afirma que “(...) constitui-se a institucionalização em fenômeno oficial e proposital de exclusão, tudo em nome da paz social e da segurança da sociedade”.

         A perda da liberdade é um dos bens mais valiosos da individualidade, pactuada socialmente por códigos de proteção, elevando a prerrogativa de defesa pessoal à categoria de direito fundamental, consagrado, reconhecido e tutelado constitucionalmente.

       A garantia do direito à liberdade é missão fundamental do estado democrático de direito e preocupação prioritária da ordem jurídica; por conseguinte, a subtração desse bem valioso configura para o destinatário a consequência mais grave que pode advir da norma. Por isso, as medidas de semiliberdade e internação devem ser medidas excepcionais e breves.

           A supressão da liberdade tem forte conteúdo de reprovação à reação ao delito. O Estado se mune de ferramentas de força e coerção física para retirar do convívio social aqueles indesejados em razão de suas práticas.

          Assim, as medidas de privação de liberdade, conforme Konzen (2005, p. 51) “(...) adquirem para o destinatário facetas indesmentíveis de padecimento, quando mais não seja pela ruptura unilateral dos vínculos pessoais, familiares e comunitários, e a indisposição coercitiva do fazer cotidiano”, que passa a ser substituído pelo fazer da convivência institucional.

        De outra banda, no tocante à prática do ato infracional cometido por adolescente do sexo feminino, deve-se considerar as relações de gênero resultantes de representações simbólicas presentes no imaginário social acerca de homens e mulheres a partir de distinções biológicas existentes entre os sexos, que vão agregando valores, carregados de comportamentos que ditam o que é apropriado para mulheres e homens, influenciando na formação de identidade de gênero.

      A partir dessas construções é que se analisa a prática do ato infracional por adolescente do sexo feminino, que rompe com uma construção social esperada, de um sexo frágil, invisível e possuidor de privilégios, ornamentativo e objetivizado como instrumento de satisfação masculina, responsável pelos cuidados da casa, família e filhos e com pouca participação nos espaços públicos, havendo uma hierarquia do homem como dominador da mulher.

       Durante muito tempo a mulher foi vista com reservas e um tanto de vigilância, mas apesar de ser tida como fraca, frágil e incapaz de governar a si mesma, algumas conseguiram mudar o curso do seu destino, buscando o direito de aprender e poder decidir sobre sua própria vida. Para cerceá-las, muitos artifícios foram criados, dentre eles o da loucura. Várias mulheres sofreram, pois não se enquadravam ao que era tido à época como normal, aceito, ou o caminho natural, aprendendo somente o necessário para casar, cuidar dos filhos e contribuir para a formação da sociedade. Consoante Santana:

O mais adequado às meninas seria educá-las, ou seja, dar a elas as condições necessárias para desempenharem um papel social a contento, isto é, boas mães e donas de casa exemplares. Ao contrário, instruí-las estaria ligado ao conhecimento e à intelectualidade, dons dispensáveis as mulheres, uma vez que, como pensavam os positivistas, o mais propício seria educá-las. (SANTANA, 2016, p. 53).

        Desse modo, percebe-se o processo histórico de inferiorização e objetificação da mulher como instrumento de submissão e poder do homem, no contexto da institucionalização da adolescente em cumprimento de medida socioeducativa de internação. Poucas são as previsões jurídico-legais e as políticas públicas nacionais que retratam a discussão sobre gênero, sendo o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE) a única possibilidade de discutir a proteção integral das adolescentes institucionalizadas na perspectiva de gênero.

        Há um projeto de Lei, sob nº 1.627-B/2007 em trâmite no Congresso Nacional, que inclui a pautada necessidade de respeito à diversidade de gênero, a partir da própria prática pedagógica da instituição, por meio de fundamentos teórico-metodológicos. 

         A prática do ato infracional cometido pela adolescente está atrelada ao seu contexto específico feminino, por vezes consubstanciado por busca de amparo e subsistência na proteção masculina, permeado por diversos tipos de abusos e violências, destacando-se a prostituição e a violência sexual, que muitas vezes culminam na sua inserção ao mundo do crime.

         Entre os atos infracionais praticados pelas adolescentes em cumprimento de medida de internação no estado do Tocantins, na unidade de semiliberdade, no ano de 2017, foram registrados casos como o de uma adolescente pela prática de ato infracional de roubo; no ano de 2018, foram quatro adolescentes responsabilizadas por atos infracionais, como: tráfico de drogas, tentativa de homicídio, homicídio e evasão; no ano de 2019, não houve internação de nenhuma adolescente na referida unidade.

        Na unidade Centro de Internação Provisório de Palmas-TO, no ano de 2017, dezoito adolescentes cumpriram medidas socioeducativas de internação; destas, oito por homicídio, sete por roubo, e uma por sequestro, uma por tráfico de drogas e uma por dano ao patrimônio. No ano de 2018, vinte e quatro adolescentes cumpriram internação, sendo nove por roubo, oito por homicídio, quatro por tráfico de drogas, uma por associação criminosa, uma por lesão corporal e uma por invasão domiciliar. No ano de 2019 (até a data de 6 de dezembro), foram onze adolescentes: quatro cumprindo medida socioeducativa por tráfico de drogas, três por homicídio, duas por roubo, uma por ameaça e uma por violação de correspondência.

                       

4. FATORES QUE IMPULSIONAM AS ADOLESCENTES À PRÁTICA DE ATOS INFRACIONAIS

 

          É cediço que é dever do Estado, bem como da sociedade e principalmente da família, o cuidado do adolescente, sendo estes os responsáveis pela sua formação integral, preparação para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho.

          Há uma relação de dependência do adolescente, uma vez que este não tem autonomia para responder pelos seus próprios atos civis e penalmente, e prover a sua subsistência. Embora o adolescente seja inimputável penalmente, a medida socioeducativa é um modo de responsabilização pela conduta infracional, que não o isenta da responsabilização, mas imputa de forma diferenciada.

            A família, sociedade e o Estado são manifestamente reconhecidos como as três instâncias reais e formais de garantia dos direitos da criança e do adolescente, vinculados a sua sobrevivência e desenvolvimento, sendo a família referência inicial por sua condição de esfera primeira, natural e básica de atenção.

      A criança e o adolescente deixaram de ser portadoras de necessidades, carências e vulnerabilidades para serem reconhecidas como sujeitos de direitos exigíveis, quais sejam: à vida, saúde, alimentação, educação, cultura, lazer, profissionalização, dignidade, respeito, liberdade, convivência familiar e comunitária, serem protegidas das formas de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

          Portanto, família, Estado e sociedade têm o dever de cuidado no desenvolvimento do adolescente. Neste turno, o Estado deverá prover proteção e cuidado adequados quando os pais ou responsáveis não o fizerem. Conforme ensina Costa:

Aquilo que uma pessoa se torna ao longo da vida depende fundamentalmente de duas coisas: das oportunidades que teve e das escolhas que fez. Esse é um dos princípios do Paradigma do Desenvolvimento Humano do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). (...) as pessoas são fruto das oportunidades que tiveram e das escolhas que foram fazendo ao longo da vida. Às vezes, a pessoa tem oportunidade e faz a escolha errada. Outras vezes, porém, ela faz a escolha certa, mas não tem oportunidade. (COSTA, 2006, p. 73).

                       

           As decisões e ações nos fazem ser quem somos, a autoaceitação e compreensão representam um desafio pessoal; a identidade é a continuação da personalidade no tempo, que é construída ao longo da história, por meio das vivências experimentadas.

       No entanto, observa-se que a adolescência é uma construção sócio-histórica imersa em interesses sociais e políticos. A invenção da adolescência data do início do século XX com a expansão do sistema capitalista. Há uma construção naturalista e universal de que o adolescente detém um comportamento inato permeado de desequilíbrios e instabilidades.

A adolescência se refere, assim, a esse período de latência social constituída a partir da sociedade capitalista gerada por questões de ingresso no mercado de trabalho e extensão do período escolar, da necessidade de preparo técnico. (AGUIAR, BOCK E OZELLA, 2001, p. 170).

            Assim, a adolescência no século XX é marcada como um período na vida em que o indivíduo se torna improdutivo, criando a necessidade de que se transforme em mais um trabalhador reivindicando o seu posto, atendendo à necessidade do sistema econômico vigente. Se assim não proceder será impulsionado a buscar outras possibilidades e oportunidades, sendo socialmente tido como sujeito indesejável, devendo ser segregado, aniquilado e destruído. Referido sujeito é visto com desvio, isto é, como anormal, sendo rotulado como louco e delinquente.

          Desse modo, o adolescente configura-se, para Battini (1997, p. 49), como “(...) depósito da culpa social, gestada na miséria, na corrupção e na impunidade, marcada pela indiferença e omissão do Estado e da sociedade”. Criam-se estereótipos e gera-se a estigmatização do adolescente infrator, levando-o a acreditar e assimilar a incapacidade e o etiquetamento social. Conforme Maior:

(...) para determinadas pessoas, as condições reais de vida se apresentam tão adversas (e insuperáveis pelos meios considerados legais e legítimos) que acabam impulsionando (especialmente tratando-se de adolescentes) à prática de atos anti-sociais. (MAIOR, 2002, p. 364).

                   Portanto, o adolescente infrator é, em grande medida, uma construção social de somas de insucessos e ausências; da família, da comunidade, de políticas sociais públicas e de um projeto de desenvolvimento de um país que ainda não efetivou seus direitos conquistados e não toma medidas positivas para promovê-los.

5. DESAFIOS E PERSPECTIVAS DO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO DO ESTADO DO TOCANTINS

 

       A compreensão acerca do dinamismo sociofamiliar e comunitário que facilita ou induz o adolescente a envolver-se no cometimento de ato infracional causa desconforto: “(...) não estamos diante de um infrator, que, por acaso, é um adolescente, mas de um adolescente que, por circunstâncias, cometeu ato infracional” (COSTA, 2006, p. 56).

      É preciso entender a forma como os atos infracionais cometidos por adolescentes são internalizados na consciência coletiva pelos meios de comunicação e outros atores sociais que levam a população a se posicionar contrariamente aos direitos humanos e favoravelmente à redução da imputabilidade penal e ao aumento no rigor das penas. Essas manifestações não levam em consideração que ao longo da história houve um acúmulo de equívocos de regulamentação e execução de políticas públicas em relação ao adolescente em conflito com a lei.

           Deve-se perceber a socio educação como componente da educação nacional, sendo um direito do adolescente em conflito com a lei de receber da sociedade e Estado oportunidades educativas que lhe possibilitem desenvolver seu potencial e capacidade de relacionarem-se consigo e com os demais, sem incorrerem na quebra das normas de convívio social. A socioeducação tem amparo nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade, para a formação integral, para o exercício da cidadania e sua qualificação.

        Ainda, a medida de internação deve restringir o adolescente do direito de ir e vir, mas não a liberdade de opinião, expressão, crença, de sua individualidade, integridade física, psicológica e moral. 

        O adolescente em conflito com a lei deve ser incluído nas políticas públicas de juventude em programas e ações, não ficando à sorte de atividades isoladas e descontínuas de voluntários, possibilitando a criação de espaços e oportunidades referentes a esporte, cultura e educação profissional, devendo ser ainda permitida aos jovens a educação para a vida familiar, em especial às adolescentes na condição de mães.

        Deve-se reconhecer a proteção especial, que ultrapassa o marco das políticas sociais, abarcando a defesa da integridade física, psicológica e moral, independentemente da condição econômica e social, entendendo que os adolescentes em conflito com a lei estão em situação difícil de risco pessoal e social, sendo responsabilidade da família, da sociedade e do Estado possibilitar medidas de proteção. Neste sentido, Costa estabelece que:

Pelas práticas e vivências, mediante a passagem por acontecimentos estruturantes, o jovem incorpora valores, adquire habilidades e vai assumindo uma nova atitude básica diante da vida. Sem a presença educativa, isto é, sem o estabelecimento de vínculos humanos de consideração e afeto com pessoas do mundo adulto que atuam na unidade ou serviço, a docência e as práticas de vivências resultam pouco produtivo o trabalho desenvolvido. (COSTA, 2006, p. 44).

                    Deve haver um trabalho em conjunto pelos responsáveis e envolvidos por decidir o destino do adolescente, não devendo o sistema de administração juvenil se isolar no seu território, relacionando-se somente nos momentos de crises, rupturas e impasses institucionais.

           Cumpre ainda pensar na melhoria da construção de projetos pedagógicos sólidos em consonância com os parâmetros nacionais, equipes capazes de implementar a proposta da socioeducação com preparação continuada e numa unidade em condições adequadas de segurança e educação, com espaços e equipamentos adequados.

                 Nesse sentido, faz-se necessário criar mecanismos estruturantes que viabilizem o adolescente como pessoa, ajudando no seu desenvolvimento, autonomia como cidadão, contribuindo para o seu futuro profissional, potencializando sua capacidade, competências e habilidades, e desenvolvendo a sua solidariedade.

                    O sistema socioeducativo do estado do Tocantins tem grandes desafios para a realização da socio educação, não tendo sido esta priorizada nas políticas de governo, verificando-se a ausência de investimentos necessários para a adequação e manutenção estrutural e humana das unidades. A intervenção estatal de internação não está sendo capaz de romper um ciclo de reiterada reincidência e passagem do adolescente do sistema socioeducativo para o sistema prisional.

                 Embora o estado do Tocantins tenha apenas trinta e um anos, o que se percebe é que o esforço em relação às políticas públicas para a juventude, em específico da juventude privada de liberdade, é quase inexistente e com cunho mais repressivo, voltado para a segurança.

                    Não obstante esteja o Estado caminhando lentamente nessa direção, ressalta-se a realização do primeiro concurso para o sistema socioeducativo no final do ano de 2014, tendo os servidores tomado posse em 2017, o que representa importante avanço.

                Deve o sistema socioeducativo do estado do Tocantins atender às suas funções, tanto de segurança social quanto pedagógica, a fim de oportunizar aos adolescentes caminhos que não os coloquem em conflito com a lei. Não obstante, esta missão encontra óbices pela falta de interesse do Estado na execução de políticas públicas que promovam a efetividade do sistema.  

       

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

         A medida de restrição de liberdade em detrimento de outras medidas deve necessariamente ser regida pelos princípios da excepcionalidade e brevidade, de modo que a prática do encarceramento não seja a primeira rede de assistência da adolescente em conflito com a lei.

      Com efeito, o que se observa é que as medidas são aplicadas com caráter punitivo, sem o acolhimento e assistência adequada para que a adolescente reveja seu comportamento, sendo executada em ambiente físico em condições inadequadas, com profissionais sem capacitações específicas para o trabalho com adolescentes.

        As adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de restrição de liberdade são por vezes submetidas a uma rotina de violações, advindo, em sua maioria, de situações de vulnerabilidade, não tendo acesso a serviços básicos e sofrendo represálias dentro do sistema educacional.

          A adolescente é um sujeito de direitos num estado democrático de direito; por conseguinte, possui como prerrogativa conhecer e exercer seus direitos como cidadã, dispondo a Constituição, no artigo 205, que a educação é direito de todos e dever do Estado e da família, em colaboração com a sociedade, com vista ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e a sua qualificação para o trabalho. Ademais, a Magna Carta, no artigo 229, estabelece que cabe aos pais o dever de assistir, criar e educar os filhos menores.

            Dessa forma, as adolescentes devem ser tratadas como cidadãs, sujeitos de direitos, devendo ser oportunizadas condições para que elas os exerçam. Na aplicação de medidas de restrição de liberdade, as adolescentes devem ser tratadas a partir de uma visão mais ampla, que contemple a sua realidade, considerando questões como acesso a direitos e oportunidades para o seu desenvolvimento pleno.

        Num campo ideal de um sistema de Direito, formam-se relações de reciprocidade entre os diversos sujeitos, ou seja, a construção de um mundo amparado na pretendida igualdade entre todos os seres humanos. Assim, as pessoas devem ter proteção que assegure determinados interesses e valores fundamentais, não devendo a adolescente atingida pela medida de internação ser desumanizada em razão da privação de liberdade, num processo de exclusão, segregação, invisibilização e maus tratos.

       A medida de restrição de liberdade deve ser executada como uma medida de exceção, uma vez que a liberdade é a regra e, dentre as medidas socioeducativas, é a mais gravosa, devendo ser aplicada em condições de respeito e dignidade, resguardando o direito da adolescente e tratando-a sempre como cidadã.

        A dignidade da pessoa humana é o eixo central de todo direito. Deve-se levar em consideração, quanto à adolescente, a sua condição peculiar de desenvolvimento, cuja personalidade está sendo formada, internalizando mais facilmente os estereótipos e estigmas a ela imputados, potencializando as consequências da objetivação humana, fazendo com que ela perca sua identidade e autoestima. Uma vez que todo seu cotidiano é controlado pela unidade educacional, a restrição de liberdade se situa num futuro incerto e num passado maculado, reforçando, por vezes, os vínculos com o ato infracional.  

       É necessário que as unidades socioeducativas funcionem de maneira adequada, como instituições que não apenas promovam e garantam níveis adequados de segurança, mas que atuem como escola de educação para a vida, capaz de preparar as adolescentes para o retorno ao convívio social.

 

REFERÊNCIAS

AGUIAR, Wanda M. Junqueira; BOCK, Ana M. Bahia; OZELLA, Sérgio. A orientação profissional com adolescentes: um exemplo de prática na abordagem sócio-histórica. In: BOCK, Ana M. Bahia; GONÇALVES, M. G. M.; FURTADO, Odair. (Orgs.) Psicologia sócio-histórica: uma perspectiva crítica em psicologia (pp. 163-178). São Paulo: Cortez, 2001.

BATTINI, O. Redução da idade penal. Revista Inscrita. CFSS, ano I, nº I, p.49, nov.1997.

BECKER, D. O que é adolescência. 13. ed. São Paulo: Editora Brasiliense, Coleção Primeiro Passos, 1997.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 05 de outubro de 1988. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 05 out. 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em: 05 de dez. 2019.

______. Estatuto da criança e do adolescente de 13 de julho de 1990. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 16 jul. 1990. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm> Acesso em: 05 de dez. 2019.

CAMPOS Jr. Maurício. Seminário estadual de medidas socioeducativas de Minas Gerais. Belo Horizonte/ MG. 2009.

COSTA, Antônio Carlos Gomes. (Coord.) As bases éticas da ação socioeducativa: referenciais normativos e princípios norteadores. Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2006.

______. Parâmetros para a formação do socioeducador. Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2006.

Fórum Permanente do Sistema de Atendimento Socioeducativo de Belo Horizonte. Desafios da socioeducação: responsabilização e integração social de adolescentes autores de atos infracionais/ Organizador: Fórum Permanente do Sistema de Atendimento Socioeducativo de Belo Horizonte. Belo Horizonte: CEAF, 2015.

KONZEN, Afonso Armando. Pertinência socioeducativa: reflexões sobre a natureza jurídica das medidas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.

MAIOR, O.S. Capítulo IV. Das medidas socioeducativas. In: Estatuto da criança e do adolescente comentado. Comentários jurídicos e sociais. Organizadores, Munir Cury, Antônio Fernando do Amaral e Silva e Emílio Garcia Mendes. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2002.

PETRINI, João Carlos. CAVALCANTI, Vanessa Ribeiro Simon. Família, sociedade e subjetividades: uma perspectiva multidisciplinar. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.

SANTANA, Josineide Siqueira. Casa de meninas: práticas educativas no Orfanato de São Cristovão e na Escola Imaculada Conceição. Aracaju: Edise, 2016.

SARAIVA, João Batista Costa. Compêndio de direito penal juvenil. Adolescente e ato infracional. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.

ANEXO

INFORMAÇÕES SOBRE ADOLESCENTES EM CUMPRIMENTO DE MEDIDA DE RESTRIÇÃO DE LIBERDADE - SEXO FEMININO - SECRETARIA DA CIDADANIA E JUSTIÇA DO ESTADO DO TOCANTINS.

 

Palmas, 06 de dezembro de 2019.

As informações referem-se ao histórico das unidades e quantitativo de adolescentes e atos infracionais cometidos no período de 2017 a 2019 nas unidades Centro de Internação Provisória CEIP – Fem e Unidade de Semiliberdade – USL Fem, conforme solicitação no Ofício 001/2019.

Unidades Femininas de Palmas – USL Fem:

A unidade de Semiliberdade Feminina é uma unidade do Poder Executivo Estadual, vinculado à Secretaria de Cidadania e Justiça, criada em 2014 para atendimento ao cumprimento de medida das adolescentes em conflito com a lei. Está localizada no Setor Sul/Taquaralto, Palmas/ TO. Tem uma capacidade física para internação de 20 adolescentes na faixa etária de 12 a 18 anos, excepcionalmente até 21 anos, conforme Projeto Político-Pedagógico de 2014.

 QUANTITATIVO DE ADOLESCENTES E TIPOS DE ATOS:

ANO DE REFERÊNCIA

QUANTIDADE DE ADOLESCENTES NA UNIDADE

TIPO DE ATO INFRACIONAL

2017

1

Roubo

2018

1

Tráfico de drogas

1

Tentativa de homicídio

1

Homicídio

1

Evasão – a mesma adolescente não cumpriu a medida em 2017

TOTAL: 4

2019

0

-

Centro de Internação Provisória - CEIP – Fem

O Centro de Internação Provisória (CEIP Central) está vinculado à Secretaria de Cidadania e Justiça (SECIJU), em funcionamento desde o ano de 2006. Está localizado no Jardim Taquari, município de Palmas, Estado do Tocantins. A sua capacidade é de 18 (dezoito) vagas para adolescentes do sexo feminino entre 12 (doze) e 18 (dezoito) anos, excepcionalmente até os 21 anos.

QUANTITATIVO DE ADOLESCENTES E TIPOS DE ATOS:

ANO DE REFERÊNCIA

QUANTIDADE DE ADOLESCENTES NA UNIDADE

TIPO DE ATO INFRACIONAL

2017

7

Roubo

1

Dano ao patrimônio

8

Homicídio

1

Tráfico de drogas

1

Sequestro

Total: 18

2018

9

Roubo

4

Tráfico de drogas

8

Homicídio

1

Invasão de domicílio

1

Associação criminosa

1

Lesão corporal

TOTAL: 24

2019

3

Homicídio

2

Roubo

1

Ameaça

4

Tráfico de drogas

1

Violação de correspondência

Total: 11

Responsável pelas informações: Rute Andrade dos Santos – Gerente da Escola Superior de Formação e Qualificação Profissional. 


Sobre os autores
Tarsis Barreto Oliveira

Doutor e Mestre em Direito pela UFBA. Professor Associado de Direito da UFT. Professor Adjunto de Direito da UNITINS. Professor do Mestrado em Prestação Jurisdicional e Direitos Humanos da UFT/ESMAT. Membro do Comitê Internacional de Penalistas Francófonos e da Associação Internacional de Direito Penal.

Letícia Alencar Lima

Pós-graduada em Educação, Sociedade e Violência pela Universidade Estadual do Tocantins (UNITINS).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Trata-se de publicação acadêmica em coautoria entre docente doutor (orientador - Tarsis Barreto Oliveira) e discente (Letícia Alencar Lima - pós-graduada do curso de Especialização em Educação, Sociedade e Violência da Universidade Estadual do Tocantins).

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