Estupro culposo uma figura jurídica criada pela mídia.

04/11/2020 às 21:32
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Um caso chamou atenção nesta terça-feira (3/11/2020) e agitou as redes sociais e imprensa. O caso Mariana Ferrer trouxe um termo que levantou perguntas e confusão: estupro culposo. Um crime culposo é cometido por negligência, imprudência ou imperícia.

Em 03 de novembro de 2020, um ano fadado ao caos e as tragédias o caso de Mariana Ferrer ganha os holofotes de uma mídia que transforma notícia em fatos, em roteiros de reality show, de forma a induzir a massa popular a dilapidar conceitos inexistentes no contexto do Código Penal.

 De acordo com uma reportagem do The Intercept Brasil, Aranha fora absolvido da acusação de estupro de vulnerável, seguindo a tese de “estupro culposo”, um “crime” não previsto por lei. Como ninguém pode ser condenado por um crime que não existe, Aranha foi absolvido".

Fato este negado pelo Ministério Público de Santa Catarina (MPSC) que sustenta que nas alegações finais do processo, a promotoria não usou o termo “estupro culposo”. O pedido para que Aranha fosse inocentado foi fundamentado na falta de provas sobre eventual dolo em sua conduta. Sem isso, não há o crime de estupro de vulnerável (artigo 217-A, parágrafo 1º, do Código Penal).

A 3ª Vara Criminal de Florianópolis absolveu Aranha, com base no princípio in dúbio pro reo, por entender que a acusação de estupro só foi baseada nos relatos de Mariana e sua mãe. O juiz Rudson Marcos afirmou que não ficou provado que a influencer estava alcoolizada ou mediante efeito de droga a ponto de ser considerada vulnerável de forma a não consentir com o ato sexual por não ter capacidade de oferecer resistência.

E diante desse entendimento, para a surpresa tanto dos operadores do Direito quanto da sociedade, o parquet comete provavelmente a maior e mais absurda compreenção jurídica ao afirmar que o empresário era por deveras inocente, visto que em fase de apelação criminal foi reconhecida a materialidade e a autoria do delito, deixando dúvidas somente, a cerca da condição de vulnerabilidade da vítima (discernimento mental).

É notório que o termo “estupro culposo” não aparece na sentença de primeiro grau, que absolve o acusado por falta de provas e em virtude do princípio in dúbio pro reo.

De forma que se reconhece o poder e a força dos meios de comunicação e dos ditos jornalistas investigativos que provável escolheram o referido tipo inexistente propositalmente de maneira a angariar atenção ao caso. Neste sentido, é fundamental que a sociedade esteja atenta ao viés midiático inerente à divulgação de crimes, especialmente aqueles que podem gerar grande comoção.

A mídia vai muito além de um quarto poder, absolve, condena, investiga, se torna juiz, advogado, promotor.

Tal fato ocorre devido à espetacularização que os meios de comunicação pro­movem a respeito de crimes de repercussão, em busca de audiência e consequentemente lucro.

Os meios de comu­nicação, como rádio, televisão, jornais e matérias na internet, não apenas trans­mitem aos telespectadores as informações sobre o crime, eles influenciam de forma direta na formação de opinião da sociedade, transformam essa informação em notícia sensacionalista.

É fato que no processo penal, forma é garantia e garantia é indispensável. Porém, não se pode com isso criar malabarismos jurídicos para justificar o injustificável, na forma como a qual está ocorrendo. Independentemente do termo propriamente dito ter ou não figurado na sentença condenatória, a figura do estupro culposo inaugurado pelo caso em comento que certamente dará origem a precedentes perigosíssimos para crimes semelhantes, é uma afronta à legislação e a teoria do delito. Simplesmente não existe “estupro culposo” no ordenamento jurídico brasileiro.

A influência negativa que a mídia promove nesses casos vai muito além de noticiar, mas acaba por atingir vítimas, réu, uma sociedade, emite juízo de valor, cria tipos penais, influencia direta­mente no resultado do processo.

Uma mídia sensa­cionalista, a qual distorce e influencia a opinião de inúmeros brasileiros, movimenta opiniões, cria conceitos e ganha o reconhecimento da comunidade que cofia muito mais no sensacionalismo do que na própria justiça.

Entretanto, é necessário que se reconheça o direito à liberdade de expressão, os quais muitas vezes são usados de forma exagerada, ferindo a dignidade da pessoa humana.

Dito isso, nada muda o fato de que o cerne da questão deve ser compreendido, a análise processual do fato deve ser rigorosa, sua metodologia e pedagogia devem ser levadas em conta para que não ocorram distorções, fundamentados por teses de jornalistas videntes a fim de que ocorra uma sentença justa, de acordo com os preceitos legais.

 O papel da defesa do acusado é propor uma defesa digna, sem desrespeitar a lei, as instituições e principalmente a pessoa vitimada, mas nada impede que se utilize de artimanhas para convencer o pleito. Tal efeito é cediço nos crimes contra a vida, julgados pelo tribunal do júri que muitas  vezes se assemelham a teatros para a efetivação do convencimento da massa popular e dos jurados leigos.

A mídia é vista pela população como um meio idôneo e confiável para a vinculação de informações em massa, é por meio dela que os jornalistas desem­penham seu ofício, coletando, redigindo, editando e publicando informações, pelo menos a grande maioria.

Os meios de comunicação possuem grande importância para a sociedade, pois é por meio deles que a população toma conhecimento dos acontecimentos políticos, econômicos, so­ciais, entre tantos outros assuntos que são tratados.

Porém, a mídia deveria se conter a divulgar, informar nada além da realidade dos fatos, sendo sempre totalmente imparcial na divulgação dos acontecimentos.

Afinal, muitas vezes, o que esses profissionais noticiam acaba se tornando verdades abso­lutas e geram uma comoção nacional sem fundamentos.

Segundo ABRAMO (2006, p. 8) o sensacionalismo, é a exploração desse fascínio pelo extraordinário, pelo desvio, pela aberração, pela aventura, que é suposto existir penas na classe baixa. E é no distanciamento entre leitura e realidade que a informação sensacional se instala como cômica ou trágica; chocante ou atraente.

Cabe salientar, que no caso Ferrer, a atitude tomada pelo corpo julgador é, no mínimo, digna de curiosidade, pois realmente não existe nada como um “estupro sem dolo”, ou a artimanha jurídica utilizada é algo que independe do termo técnico escolhido, mas em nada pode se assemelhar a um “estupro culposo”, delito atípico no sentido figurado da questão, nos termos noticiados.

Existem requisitos legais para que se configure um fato típico culposo: conduta voluntáriaresultado involuntário e nexo causal entre ambos. Além disso, é imprescindível que a hipótese esteja prevista em lei como crime. Portanto,  se não há previsão legal, não há tipicidade – a figura típica culposa é inexistente e a conduta só é punível na forma dolosa.

Com efeito, em nenhum dos crimes contra a dignidade sexual há a previsão da modalidade culposa para as condutas elencadas. O instituto do estupro culposo foi inventado como guinada retórico-processual para absolver o réu nesta situação específica, na qual existem indícios de autoria e materialidade presentes e pior culminaram com os indícios de parcialidade dos membros do judiciário, além do problema eventual das informações começarem a formar opiniões a revelia, distorcendo os fatos para que a notícia, que deveria ser informação pudesse gerar audiência, formando-se o tão conhecido senso comum.

Na tarde do dia 03 de novembro de 2020, logo após a notícia da absolvição do empresário viralizar no país, até mesmo o Ministro do STF Gilmar Mendes se manifestou mostrando preocupação com o caso: “As cenas da audiência de Mariana Ferrer são estarrecedoras. O sistema de Justiça deve ser instrumento de acolhimento, jamais de tortura e humilhação. Os órgãos de correição devem apurar a responsabilidade dos agentes envolvidos, inclusive daqueles que se omitiram” se pronunciou.

Com o intuito de gerar audiência, atrair a população com a notícia, se aca­ba criando o sensacionalismo, o qual na maioria das vezes relata outra versão dos fatos, coloca mentiras em seu texto, manipulando as pessoas.

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Os meios de comunicação são capazes de formarem opiniões, construir consensos e até mesmo apresentar ao público uma nova realidade dos fatos, colo­cando em suas manchetes mentiras, fatos distorcidos e até mesmo falsos tipos penais.

Entretanto, ainda hoje não é raro encontrar pessoas que afirmam que é um exagero dizer que a mídia manipula o pensamento dos cidadãos, alegando que essas coisas somente ocorrem em grandes fatos mundiais, contudo, essa ma­nipulação está extremamente enraizada no dia-a-dia das pessoas. Neste diapasão, argumenta BRAMO (2006, p. 13)  que  se a “grande mídia” forma, hoje, uma espécie de Ministé­rio da Verdade orwelliano, encarregado de manipular as informações sobre a realidade, produzir amnésia e criar consensos, nós podemos, em contrapartida, confeccionar uma Grande Enciclopédia das Mani­pulações.

Deixando evidente, que não é de hoje  que a mídia exerce um grande poder de manipulação na sociedade, fazendo com que esta forme uma opinião que não é sua, mas é aquela que a mídia impõe.

Os meios de comunicação se impõem de forma com que a população fi­que totalmente chocada com a notícia, para que todos queiram acompanhar estes tipos de caso, gerando assim cada vez mais lucro.

Em que pese a enorme dificuldade no que tange à prova do cometimento dos crimes sexuais, situações extremamente complicadas e que carecem de cautela processual e de procedimentos especiais de análise metodológica, em que a palavra da vítima é um fator chave para a elucidação do ato.

Entretanto, no caso Ferrer, parece que a princípio, a discussão que tange na validação da “mera palavra da ofendida” resta superada, eis que existem substanciais provas documentais e periciais – o sêmen encontrado na calcinha da jovem que comprovadamente era de André Aranha, fato que comprova a conjunção carnal, para tanto existência de autoria, resta saber se consentida ou induzida.

Debate-se que a tese seria calcada na figura do erro de tipo, previsto no art. 20 do CP: “O erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui o dolo, mas permite a punição por crime culposo, se previsto em lei”; ou seja, que o réu não tinha condições de saber sobre o estado de falta de discernimento para o ato sexual (que resta incontestável).

Na decisão, o juiz afirma que “após detida análise do caderno probatório, fora verificado que não existiam elementos suficientes ao amparo de um decreto condenatório”, mencionando inclusive os exames de alcoolemia e toxicológico (fls. 880/882) que apresentaram resultado negativo – muito embora fatores diversos possam alterar os resultados. O magistrado também lembra sobre a impossibilidade de condenar diante de um pleito de absolvição feito pelo órgão acusador, o que violaria o devido processo legal.

A sentença judicial no caso Mariana Ferrer é uma aberração em todos os sentidos, desde a desumanidade no tratamento para com a jovem até a total falta de cabimento jurídico no argumento utilizado para a absolvição do réu, ainda mais quando se está diante de uma mudança na tese pelo próprio Ministério Público em favor do acusado – o que, na prática forense, é algo raríssimo.

De qualquer modo, se está diante de uma situação excepcional e que ganhou a atenção da população brasileira. A esperança é de que as instâncias superiores cumpram com a sua função institucional e corrijam este injustiça grosseira, assim como efetivem a responsabilização daqueles que agiram de forma temerária, com o intuito de motivar precedentes imensuráveis para a sociedade que busca justiça.

Também não se pode esquecer-se da interação da mídia, fonte formadora de opiniões, um instrumento que seleciona minuciosa­mente as matérias que serão passadas aos telespectadores, para que desta forma o senso comum se forme de acordo com sua vontade.

Nesses casos em questão, o que se almeja é formar o sentimento de ódio e sede de justiça, pois desta forma a notícia, transformada em sensacionalista tem seu mercado de venda mais am­plo, tornando um criminoso, condenado ou absolvido conforme os preceitos pré-determinados por esses veículos.

Esse não foi o primeiro, a que se lembrar dos Nardoni, do Goleiro Bruno, do Marcelo Persigne, do jogador Daniel e tantos mais, que tiveram suas vidas investigadas por atores em busca de diversão e comoção nacional.

Os meios de comunicação dilaceram vidas, passam por cima de todo e qualquer direito e garantia fundamental do acusado e da vítima, não dando chance dos juristas demonstrarem a pedagogia necessária para a análise do fato e exposição legal dos métodos, formam pré-julgamentos que motivam a ira da população que clama por justiça.

Dobjenski, Sandra M.

Sobre a autora
Sandra Mara Dobjenski

Advogada, pesquisadora de Direito Penal e Processual Penal e sobre a relação com a mídia nos casos de grande repercussão. Especialista em Direito Penal, Criminologia, Processo Penal e Direito Penal Econômico - UNINTER.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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Análise caso Mariana Ferrer

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