Acordo de não persecução penal: breves ponderações para o alicerce de um novo modelo de justiça consensual no Brasil

06/11/2020 às 09:32
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Propõe uma análise crítica acerca do acordo de não persecução penal (art. 28-A, CPP), expondo os principais pontos controvertidos da doutrina e da jurisprudência.

 

RESUMO: Instituído pelas Resoluções nº 181/2017 e nº 183/2018 do Conselho Nacional do Ministério Público, o acordo de não persecução penal segue as diretrizes e normativas da chamada “justiça consensual”, abandonando, pois, o velho e obsoleto dueto pena-prisão. Em que pese seu louvável escopo descriminalizador, mormente no que tange a diversificação da pena criminal e o aprimoramento da Justiça Penal, a arquitetura legislativa adotada, quando da elaboração do art. 28-A, do CPP, padece de críticas, sendo salutar a análise pormenorizada deste novel dispositivo.

Palavras-chaves: Acordo de não persecução penal. Justiça consensual. Pena.

 

1. INTRODUÇÃO

Instituído pelas Resoluções nº 181/2017 e nº 183/2018 do Conselho Nacional do Ministério Público, o acordo de não persecução penal segue as diretrizes e normativas da chamada “justiça consensual”, abandonando, pois, o velho e obsoleto dueto pena-prisão.

A necessidade de se fortificar uma justiça de índole consensual foi muito bem retratada por Rosimeire Ventura Leite (2009), para quem: “a morosidade do processo penal, a sobrecarga do aparato judiciário e os desencantos com a abordagem meramente repressiva foram alguns dos fatores que concorreram para o fortalecimento de novos caminhos, representados, principalmente, pelos modos alternativos de resolução de conflitos e pela justiça restaurativa”[1]

Em que pese seu louvável escopo descriminalizador, mormente no que tange a diversificação da pena criminal e o aprimoramento da Justiça Penal, era notório que nos moldes como fora concebido, o acordo de não persecução penal ultrajava o dogma central do Direito Penal hodierno, qual seja a legalidade.

Fato é, que com o advento da Lei 13.964/2019, intitulada “Lei Anticrime”, referido mecanismo ganha enfim, previsão legal, ex vi do art. 28-A, do Código de Processo Penal.

É sobre o novel instituto que passamos a tratar.

2. DA MITIGAÇÃO DO PRINCÍPIO DA OBRIGATORIDADE DA AÇÃO PENAL

Gizado pelo artigo 24 do Código de Processo Penal, o princípio da obrigatoriedade da ação penal, consubstancia-se no dever (imposição) ao membro do Parquet, no sentindo de que preenchidos os requisitos legais, este proceda com a propositura da ação penal, através da denúncia.

Grande parcela da doutrina, notadamente após o advento da Lei 9.099/95 (e seus institutos despenalizadores, como por exemplo a transação penal (art. 76, da Lei 9.099/95), vem sustentando o que se convencionou chamar de “mitigação ao princípio da obrigatoriedade da ação penal”.

Tal modelo, todavia padece de críticas de parcela respeitável da doutrina pátria.

Dentre outros, Afrânio Silva Jardim (2001), entende que o Ministério Público não possuiu discricionariedade no que tangencia a seleção de casos penais à serem apreciados pelo Poder Judiciário[2]. Vale dizer, presentes as condições da ação (interesse de agir, legitimidade e justa causa), deve o órgão acusatório impreterivelmente dar início a persecutio criminis.

Com efeito, tanto o artigo 24 do Código de Processo Penal, quanto o artigo 129, I, da CRFB/88, não dão margem ao alvedrio acusatório. Pensar o inverso, seria crer na bondade dos bons (Agostinho Ramalho).

Parece-nos que a implementação de uma justiça de cunho consensual - aqui inserida os institutos previstos nas Leis 9.099/95 (transação penal), 12.850/2012 (acordo de colaboração premiada), Lei 12.846/2013 (acordo de leniência) e novo artigo 28-A, do Código de Processo Penal (acordo de não persecução penal), não sejam uma “mitigação” ao princípio da obrigatoriedade da ação penal, senão uma espécie de ação penal sui generis ou uma ação penal pública não convencional, nos dizeres de Nestor Távora e Rosmar Alencar (2009)[3].

3. (IN) CONSTITUCIONALIDADE DO ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL. PLEA BARGAIN?

De antemão, é oportuno ratificar que o acordo de não persecução penal, não é sinônimo de plea bargain, apesar de algumas similitudes entre ambos.

Tais institutos, são deveras meios negociais (alternativos) de resolução de conflitos penais, que pressupõem à sua aplicabilidade a confissão do acusado. Todavia, as semelhanças se findam aí.

O plea bargain, tem espaço em sede processual. Ou seja, já há um processo instaurado, com todos os seus ônus e consectários. Ademais, o acordo norte-americano é dotado de coercibilidade. Vale dizer, descumpridas as cláusulas entabuladas no acordo, pode o Estado dar efetividade à avença, através de mecanismos de coerção.

Já o acordo de não persecução penal, é despido de qualquer meio de coerção, sendo certo que o seu descumprimento, gerará ao acusado a mera rescisão do pacto, com o posterior oferecimento da denúncia.

Em termos formais, não se discute a constitucionalidade do acordo de não persecução penal, vez que agora encontra-se positivado em Lei, tudo nos estritos termos do art. 22, I, da CRFB/88.

Entretanto, materialmente é forçoso concluir que o acordo de não persecução penal, nos moldes como arquitetado é inconstitucional.

Como se sabe, vigora no processo penal a máxima nulla poena sine judicio, de molde que em nosso sistema, inexiste a possibilidade de imposição de penas (sejam elas privativas de liberdades, restritivas de direitos ou multa), sem à precedência de um processo (devido e legal).

O mesmo entendimento é perfilhado por Pierre Souto Maior (quando da análise da Resolução 181 do CNMP). Segundo o autor:

Tal resolução, especialmente no seu art. 18, além de ser inconstitucional formalmente, pois trata de direito processual, pretendendo revogar o art. 24 do Código de Processo Penal, que positiva o princípio da obrigatoriedade do exercício da ação penal pública incondicionada, no processo penal comum, violando o art. 22, inc. I, da CF de 1988, também é inconstitucional materialmente, pois autoriza o membro do Ministério Público a aplicar pena restritiva de direitos sem o devido processo legal, violando o art. 5º, inc. LIV, da CF. (grifo do autor).[4]

 

Enfatize-se, nesse contexto, que as cláusulas albergadas pelo acordo de não persecução penal, são indubitavelmente espécies de penas, em notável compasso com o Código Penal, destacando-se a disposição contida no inciso III, do art. 28-A, que prevê que o imputado deverá: “prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo juízo da execução, na forma do art. 46 do Código Penal”.

Dessarte, o §6º, do supracitado artigo, reforça o que sustentamos, quando anuncia em alto e bom tom que: “homologado judicialmente o acordo de não persecução penal, o juiz devolverá os autos ao Ministério Público para que inicie sua execução perante o juízo de execução penal”. (destacamos).

Assinale-se, ainda, que o modelo circunscrito pelo legislador quando da elaboração do novel dispositivo, ofende o sistema acusatório (art. 129, I, da CRFB/88 e art. 3º-A, do CPP), pois aglutina em um mesmo órgão as funções de acusar (denúncia), e julgar (juízo de discricionariedade acerca das cláusulas a serem entabuladas em sede de acordo).

É preciso que se compreenda que as penas restritivas de direitos (não privativas de liberdade), nada obstante serem menos gravosas, ainda são penas. Afetam e restringem direitos e garantias fundamentais, estando nesta senda, sujeitas à clausula de reserva de jurisdição.

Não há que se confundir a titularidade da ação penal pública (art. 129, I, da CRFB/88), com o poder de punir, vez que este último é restritivo ao Poder Judiciário.

Ao cabo e ao fim, oportuno é a lição de Afrânio Silva Jardim e Pierre Solto Maior, quando verberam que: “o que se tem no novo art. 28-A do CPP, na realidade, é uma ampliação do uso do instituto da transação penal, que é semelhante ao acordo penal anterior à denúncia em praticamente tudo, sendo certo que a Constituição Federal não permitiu tal modalidade de julgamento sumário para além da competência dos Juizados Especiais Criminais, conforme podemos perceber no art. 98, inc. I, da CF. Noutras palavras, por via indireta, escamoteada, o art. 28-A realizou, na verdade, uma ampliação da transação penal, para que seja utilizada por juízos criminais com competência diversa do que a Constituição Federal permite. (detacamos).[5]

4. CABIMENTO DO ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL. PROCEDIMENTO E POSSIBILIDADE RECURSAL

Não sendo o caso de arquivamento do processo criminal (tem-se como pressuposto para a propositura do ANPP, o fumus comissi delicti) e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime.

As condições que podem ser impostas em sede de acordo de não persecução penal, encontram-se descritas abaixo:

 

Art. 28-A. Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições ajustadas cumulativa e alternativamente:

I - reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, exceto na impossibilidade de fazê-lo;

II - renunciar voluntariamente a bens e direitos indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime;

III - prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo juízo da execução, na forma do art. 46 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal);

IV - pagar prestação pecuniária, a ser estipulada nos termos do art. 45 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), a entidade pública ou de interesse social, a ser indicada pelo juízo da execução, que tenha, preferencialmente, como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito; ou 

V - cumprir, por prazo determinado, outra condição indicada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada. 

 

Dentre as condições acima elencadas, merece críticas a abertura semântica do inciso V, do art. 28-A, do CPP: “outra condição indicada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada”.

Novamente o legislador cai no ledo engano de acreditar na bondade dos bons e abre uma margem incomensurável para abusos por parte do órgão acusatório.

Neste ponto, cremos que razão assiste a Guilherme de Souza Nucci (2020), quando da análise do dispositivo em tela, faz o seguinte alerta: “quanto à cláusula prevista no inciso V do art. 28-A, deve-se frisar que a abertura nunca deu certo a uma condição para se fixar qualquer coisa. Note-se o disposto no art. 79 do Código Penal: “a sentença poderá especificar outras condições a que fica subordinada a suspensão, desde que adequadas ao fato e à situação pessoal do condenado”. O referido art. 79 refere-se à suspensão condicional da pena. Em três décadas de magistratura, jamais vi uma condição advinda da mente do juiz que fosse razoável e aceita pelo Tribunal. Portanto, dentro do princípio da legalidade, esperamos que o membro do Ministério Público não cometa os mesmos erros que juízes já realizaram por conta do art. 79 do CP”.[6]

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De se destacar ainda que, a prestação de serviço à comunidade ou a entidades públicas deve se dar por período correspondente à pena mínima cominada ao delito diminuída de um a dois terços.

Note, que a diminuição (que varia de 1/3 a 2/3) é uma imposição legal, devendo o magistrado, quando da homologação do acordo, diligenciar no sentido de plena eficácia da norma.

Insta consignar por necessário, que para a da aferição pena mínima cominada ao delito a que se refere o caput do art. 28-A, do CPP, serão consideradas as causas de aumento e diminuição aplicáveis ao caso concreto (concurso formal, concurso material, concurso de pessoas, arrependimento eficaz, desistência voluntária, arrependimento posterior, etc).

Não é cabível, o ANPP, nas infrações penais de menor potencial ofensivo, tendo em vista que estas, dispõe de um microssistema próprio, dotado também, de importantes institutos despenalizadores (transação penal e suspensão condicional do processo).

Também não terá guarida o acordo nas hipóteses de reincideciência ou habitualidade delitiva, exceto se insignificantes as infrações penais pretéritas, ou se o agente tiver sido beneficiado nos 5 (cinco) anos anteriores ao cometimento da infração, em acordo de não persecução penal, transação penal ou suspensão condicional do processo, além da vedação aos crimes praticados no contexto das relações domesticas ou familiares.

Dessarte, é perfeitamente aplicável o ANPP para as pessoas jurídicas, nos termos do art. 28-A, inciso V, do Código de Processo Penal.  A esse respeito, é categórica a lição de Vladimir Aras (2020) “não sendo o caso de arquivamento do inquérito policial ou do PIC, o Ministério Público pode propor a formalização do ANPP a pessoa jurídica autora de crime ambiental, se houver confissão por parte da empresa”. [7]

Para a formalização do acordo é imprescindível a presença do Ministério Público, do investigado e de seu defensor, de molde que a homologação da avença será realizada em audiência, onde o magistrado observará a voluntariedade e legalidade do acordo. 

Se se considerar inadequadas, insuficientes ou abusivas as condições dispostas no acordo, o juiz devolverá os autos ao Ministério Público para que este reformule as cláusulas estabelecidas.

O descumprimento do acordo ensejará dois gravames ao imputado. O primeiro, e mais lógico é a rescisão e posterior oferecimento da denúncia. O segundo é utilização da “quebra” da confiança como argumento a eventual não oferecimento de suspensão condicional do processo.

O ANPP, não constará da certidão de antecedentes criminais, exceto para verificação do prazo de 5 (cinco) anos para outorga do benefício. 

Sendo cumprido integralmente o acordado, tem-se extinta a punibilidade. 

A lei previu uma hipótese de “recurso” em caso de recusa ao oferecimento do ANPP, nos moldes do art. 28-A, §14º, do CPP. Neste caso, o investigado poderá requerer a remessa dos autos a órgão superior, na forma do art. 28, também do CPP.

4.1 A CONFISSÃO E O DIREITO DE NÃO INCRIMINAÇÃO. A PROBLEMÁTICA ACERCA DA REVOGAÇÃO DO BENEFÍCIO E O ANDAMENTO DA AÇÃO PENAL

Conforme já esposado, o acordo de não persecução penal, terá guarida quando o imputado, dentre outros requisitos, confessar formal e circunstanciadamente a prática do crime.

Vemos com bastante ressalva tal imposição legal.

Não constitui demasia rememorar que dentre os vários axiomas regente do processo penal, encontra-se o direito a não autoincriminação (art. 5°, LXIII, da CFRB/88), albergado pelo brocardo nemo tenetur se detegere.

Segundo Maria Elizabeth Queijo:

 

“O princípio nemo tenetur se detegere tem sido considerado direito fundamental do cidadão e, mais especificamente, do acusado. Nesse sentido, Vassali, Grevi e Zuccala já se manifestaram. Cuida-se do direito à não auto-incriminação, que assegura esfera de liberdade ao indivíduo, oponível ao Estado, que não se resume ao direito ao silêncio. Parece acertado referido entendimento, de acordo com as notas características dos direitos fundamentais. Nelas se dá ênfase à proteção do indivíduo contra excessos e abusos por parte do Estado. Em suma: é resguardada, nos direitos fundamentais, a dignidade humana, sendo que ganha relevo a esfera atinente às ingerências do Estado. Nessa ótica, o princípio nemo tenetur se detegere, como direito fundamental, objetiva proteger o indivíduo contra excessos cometidos pelo Estado, na persecução penal, incluindo-se nele o resguardo contra violências físicas e morais, empregadas para compelir o indivíduo a cooperar na investigação e apuração de delitos, bem como contra métodos proibidos no interrogatório, sugestões e dissimulações. Como direito fundamental, o nemo tenetur se detegere insere-se entre os direitos de primeira geração, ou seja, entre os direitos da liberdade. O titular de tais direitos é o indivíduo diante do Estado.  (grifos do autor).[8]

 

 

Ora, compelir o imputado à confissão de determinado delito, para só depois dar-lhe acesso à um instituto despenalizador é um tanto quanto inusitado.

Inusitado no sentido de que o acordo de não persecução penal, não constará da certidão de antecedentes criminais (§12°, art. 28-A, CPP), restando, pois, intocável a primariedade do acordante.

Em suma, a regra inscrita no caput do art. 28-A, (confissão) é despicienda, vez que não enseja nenhum efeito secundário ao imputado. Até mesmo porque, cumprido o ANPP, tem-se declarada extinta a punibilidade do agente (§13º, art. 28-A, CPP), por conseguinte não haverá efeitos deletérios sobressalentes.

Nos parece que tal imposição (necessidade de confissão), deriva das nuances inquisitórias que ainda permeiam o processo penal brasileiro.

Seria mais uma obrigação moral (confesse a prática de um crime e ganhe um “prêmio”) do que uma questão de índole dogmática.

Há que se refletir ainda, sobre questão das mais dramáticas. As falsas confissões que são comumente encontradas no modelo de negociação norte-americano.

Versando sobre o tema, Juliana Ferreira da Silva, adverte que:

 

“Os estudos das falsas confissões no sistema de justiça criminal são mais abundantes em pesquisas norte-americanas do que brasileiras. Assim, será necessário primeiramente recorrer a dados e teorias relacionados ao sistema estadunidense de justiça criminal, com vistas à demonstração de um panorama do corpus teórico dedicado ao estudo da tipologia e dinâmica psíquica das falsas confissões. Tais estudos partem do questionamento sobre se e em quais condições uma pessoa pode confessar um crime que não cometeu. Por mais contraintuitivo que possa parecer, a falsa confissão de um crime é um fenômeno mais comum do que se imagina. Os dados do Innocence Project – Projeto fundado nos EUA, em 1992, por Peter Neufeld e Barry Scheck na Cardozo School of Law, dedicado à exoneração de condenações injustas e reforma do sistema de justiça criminal – demonstram que as falsas confissões estão presentes em aproximadamente um quarto dos casos de pessoas injustamente condenadas que tiveram suas condenações revogadas (KASSIN, 2008). Pode-se afirmar, portanto, que esse seja um fenômeno cujas proporções são ainda pouco conhecidas, mas que deva ser dado ao que já se sabe, devidamente considerado enquanto importante elemento de risco de erros judiciários”. (grifos do autor).[9]

 

Cumpre ter presente, por necessário, que não raras vezes, acusados em situação de extrema vulnerabilidade, na vã ilusão de se despir de um processo estigmatizante confessarão crimes que não cometeram, em busca do “nirvana” da salvação, em um ato despido de voluntariedade (como requer a lei) e regado de desespero.

Esse mesmo entendimento é também comungado, por Emerson de Paula Betta, em artigo lapidar, publicado no site Conjur, veja-se:

 

“Deve ser afastado o requisito da confissão para formulação do ANPP, tendo em vista sua inconstitucionalidade, por afronta as Garantais Constitucionais da não autoincriminação; do Devido Processo Legal, da Ampla Defesa e do Contraditório, bem como por não ser em nada relevante para o que a lei propõe, já que não é caso de imposição de pena decorrente de sentença penal condenatória”.[10]

 

As problemáticas, entretanto, não acabam aí. Descumprido o acordo de não persecução penal, o Ministério Público comunicará ao juízo da execução a sua rescisão e oferecerá a exordial acusatória.

Neste diapasão, o que fazer com a confissão? Poder-se-ia argumentar que ela não poderá ser utilizada como meio de prova e que será desentranhada dos autos. Mas, quanto aos danos cognitivos?

É inconteste que o magistrado terá grande acepção pela tese acusatória, corroborada num primeiro momento pela confissão do imputado.

O simples afastamento do magistrado responsável pela homologação do acordo também não cessará os efeitos nefastos que estamos a tratar. Se o acordo foi rescindido, pressupõe-se que o imputado confessou o crime.

Logo como minimizar os danos decorrentes da confissão e manter intacta a garantia de um julgamento imparcial?

Vale referir bem por isso, que se rasga o papel, mas não se apaga a memória.

É indubitável que em caso de rescisão do ANPP, a confissão que ora figurava como requisito para o acordo, agora será a “rainha de todas as provas”, (ainda que involuntariamente), causando a ruína do imputado.

Em suma, temos como inconstitucional o requisito da confissão “formal e circunstanciada”, como prelúdio ao acordo de não persecução penal, por todos os fundamentos acima expostos, e principalmente, por ser ato dotado de irreversibilidade.

5. DA (IR) RETROATIVIDADE DO ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL

Elegante questão se coloca à análise dos aspectos intertemporais (direito transitório) no que concerne a aplicação retroativa da norma em apreço, bem como a discricionariedade do órgão acusatório no tocante a propositura do acordo quando preenchidos os requisitos legais estabelecidos e o papel exercido pelo magistrado no controle da legalidade do acordo.

No que versa a primeira indagação, mister se faz a análise detida da natureza jurídica da norma insculpida no art. 28-A do CPP, de molde que reflui como elementar o seguinte questionamento: o acordo de não persecução penal (art. 28-A, CPP) tem natureza processual, material ou mista (híbrida)?

Como se sabe, em se tratando de normas meramente processuais, o Direito Processual Penal Brasileiro adota como regra o princípio do tempus regit actum, nos exatos termos do art. 2° do Código de Processo Penal Brasileiro (a lei processual penal aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior).

Entretanto, não é o que ocorre com o acordo de não persecução penal.

Sem embargo da sua disciplina no Código de Processo Penal, não se pode olvidar que tal instituto também se reveste de caracteres materiais, isto porque é norma que interfere diretamente na pretensão punitiva do Estado, não se limitando a condição de norma reguladora procedimental.[11]

Dessarte, não se pode perder de vista ainda, que o §13°, do supracitado art. 28-A do CPP (cumprido integralmente o acordo de não persecução penal, o juízo competente decretará a extinção de punibilidade), anuncia uma verdadeira causa de extinção da punibilidade, em notável compasso com o art. 107, do CP, daí se afirmar categoricamente que estamos a tratar de uma norma mista (híbrida), com efeitos notadamente penais.

Desta constatação, se infere que o acordo de não persecução, deveria seguir a regra insculpida no art. 5°, XL, da CRBF/88. Logo, de rigor sua retroatividade.

Todavia, a questão é controvertida tanto na doutrina, quanto na jurisprudência.

A doutrina, visando salvaguardar os atos judiciais já praticados, delimitou limites à retroatividade do acordo de não persecução penal.

Rogério Sanches Cunha (2020) sustenta:

 

“Caso já haja processo em curso, com denúncia recebida antes do início da eficácia da Lei 13.964/2019, poderá ser proposto o ANPP, inclusive por ocasião da audiência de instrução e julgamento, devendo-se verificar se os requisitos estão presentes”. (CUNHA; PINTO, 2020, p. 191)[12].

 

Aury Lopes Júnior e Higyna Josita, por seu turno aduzem que:

 

“Ao criar uma causa extintiva da punibilidade (art. 28-A, § 13, CPP), o ANPP adquiriu natureza mista de norma processual e norma penal, devendo retroagir para beneficiar o agente (art. 5º, XL, CF) já que é algo mais benéfico do que uma possível condenação criminal. Deve, pois, aplicar-se a todos os processos em curso, ainda não sentenciados até a entrada em vigor da lei”.[13]

 

O que se nota de ambas as posições é uma limitação temporal (no caso por fase procedimental) da retroatividade do ANPP. Para uma primeira parcela da doutrina, caberia a propositura do acordo aos processos ainda não sentenciados.

Outra corrente, ainda mais restritiva, vislumbra que o oferecimento da denúncia é o marco temporal final para a incidência do ANPP, consoante se colhe do escólio de Douglas Fischer:

 

“O mesmo se dá quanto ao Acordo de Não Persecução Penal: admitir sua incidência para depois da denúncia recebida não tem correspondência lógica ao tempo (não ter denúncia). Se o Ministério Público tinha limitação da suspensão do processo até a sentença (porque não poderia dispor da sentença proferida pelo Juiz), o mesmo se deve reconhecer em relação ao ANPP: se a denúncia foi recebida (pelo juiz competente), o MP não pode dispor desse ato judicial já realizado, querendo fazer, agora, por regra híbrida nova, um acordo que pressupõe não haver processo”.[14]

 

Há ainda quem diga que o acordo de não persecução penal seria viável até mesmo nos casos em que já se houvesse operado o trânsito em julgado.[15]

A mesma celeuma é acompanhada pela jurisprudência.

As turmas do Superior Tribunal de Justiça, divorciam-se por completo sobre o tema em análise.

Para a 5ª Turma do Tribunal da Cidadania:

 

“Da simples leitura do art. 28-A do CPP, se verifica a ausência dos requisitos para a sua aplicação, porquanto o embargante, em momento algum, confessou formal e circunstancialmente a prática de infração penal, pressuposto básico para a possibilidade de oferecimento de acordo de não persecução penal, instituto criado para ser proposto, caso o Ministério Público assim o entender, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, na fase de investigação criminal ou até o recebimento da denúncia e não, como no presente, em que há condenação confirmado por Tribunal de segundo grau)”. (EDcl no AgRg no AREsp 1668298/SP). (grifo do autor).

 

Já para a 6ª Turma:

 

“É reconsiderada a decisão inicial porque o cumprimento integral do acordo de não persecução penal gera a extinção da punibilidade (art. 28-A, § 13, do CPP), de modo que como norma de natureza jurídica mista e mais benéfica ao réu, deve retroagir em seu benefício em processos não transitados em julgado (art. 5º, XL, da CF)”. (AgRg no Habeas Corpus 575.395/RN) (grifo do autor).

 

No ponto, destaca-se o instigante levantamento realizado pelo Ministério Público do Estado do Piauí[16], onde se torna palatável a controvérsia que reside nos Tribunais de todo o país acerca dos contornos intertemporais do acordo de não persecução penal, veja-se:

  1. Para os Tribunais de Justiça dos Estados do Ceará (TJ-CE), Alagoas (TJ-AL), Rio Grande do Norte (TJ-RN), Tocantins (TJ-TO), Amazonas (TJ-AM), Mato Grosso do Sul (TJ-MS), Minas Gerais (TJ-MG), São Paulo (TJ-SP), Paraná (TJ-PR), Pará (TJ-PA), Distrito Federal (TJ-DFT) e Santa Catarina (TJ-SC), o acordo de não persecução penal retroage apenas para os processos em que não haja denúncia formalizada;
  2. Para os Tribunais de Justiça dos Estados do Rio Grande do Sul (TJ-RS), Bahia (TJ-BA), e Sergipe (TJ-SE), a norma benéfica retroage até a sentença penal condenatória.

Ontologicamente, o acordo de não persecução penal tem como primado a evitabilidade, seja de um processo penal, seja de uma sanção penal.

Daí porque vemos como insustentável as teses que reputam como plausível a retroatividade do instituto aos processos já transitados em julgados ou com sentença penal condenatória. Note-se que aqui, há indubitável quebra da evitabilidade, porquanto o agente já se submetera a todas as agruras do processo penal e já possui uma condenação em seu desfavor.

Carece de respaldo também a nosso sentir, o escólio que visualiza na denúncia um óbice à propositura do acordo. Insistimos que o ANPP, rege-se pela evitabilidade, e em que pese não se evitar a deflagração de um procedimento penal, evita-se uma possível condenação e todos os ônus daí decorrentes.

No que tangencia a tese de irretroatividade do acordo de não persecução penal, data máxima vênia, despida de substrato normativo, e perecível frente o art. 5°, XL, da CRFB/88.

Reputamos, portanto, que à luz do art. 5º, XL, da CRFB/88, alinhado ao primado da evitabilidade, deve a norma que estatui o acordo de não persecução penal retroagir aos processos ainda não sentenciados.

6. DIREITO PÚBLICO OU DISCRICIONARIEDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO?

A despeito da discricionariedade do Ministério Público quanto à propositura do ANPP, Francisco Dirceu Barros (2019) vaticina que: “o acordo de não persecução penal (artigo 28-A) não é um direito público subjetivo do réu, mas um poder-dever do Ministério Público”[17].

A posição acima encampada guarda profundas semelhanças com o escólio que vem sendo adotado em relação a suspensão condicional do processo, notadamente por nossas Cortes Superiores.²

Neste particular, ousamos discordar. 

Isto porque, a mera expressão “poderá”, constante no caput do art. 28-A, do CPP, não cria uma faculdade ao Ministério Público, do revés, abrir-se-ia margem para desmedidas injustiças, o que por via de consequência ultrajaria o princípio da isonomia (art. 5°, caput, CF/88).

Ademais, cumpridos os requisitos elencados por Lei, não há como assentir que o Parquet, lance mão do ANNP ao seu bel prazer, vez que as únicas vedações constantes são aquelas previstas no §2°, do art. 28-A (cabimento de transação penal, reincidência ou habitualidade delitiva, exceto se insignificantes as infrações penais pretéritas, ter sido o agente beneficiado nos cinco anos anteriores por qualquer dos institutos despenalizadores e nos crimes praticados no âmbito de violência doméstica ou familiar, ou praticados contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, em favor do agressor).

Mas então, o que fazer nos casos em que o imputado faça jus ao acordo e o Ministério Público se recuse a oferecê-lo?

Neste caso, o investigado poderá requerer a remessa dos autos a órgão superior, na forma do art. 28, também do CPP.

Em sendo mantida a negativa, cremos que a solução mais coesa e racional, seria a rejeição da denúncia pelo magistrado, com fundamento no art. 395, II, do Código de Processo Penal (ausência de pressuposto processual ou condição da ação).

 

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não se nega a necessidade de diversificação da pena criminal e da implementação de meios alternativos para a solução de conflitos penais, notadamente aqueles que não envolvem violência ou grave ameaça.

Mister se faz um aprimoramento da justiça criminal, que se transfora ao longo dos anos em uma verdadeira “máquina” de enclausuramento, cominando com a saturação dos presídios de todo o país em um verdadeiro estado de coisas inconstitucional.

Conforme esmiuçado, o escopo do acordo de não persecução penal é louvável. Todavia, padece de graves vícios, que se não corrigidos em tempo e em hora, serão meio de tergiversação de um já combalido sistema.

O empoderamento demasiado dos órgãos de persecução criminal (acusando e aplicando penas) as cláusulas abertas (verdadeiros cheques em branco) e a necessidade de expressa confissão (requisito puramente moral e despiciendo) acabam por macular um instituto que se bem explorado, fatalmente “desafogaria” os órgãos jurisdicionais.

É tempo de evoluir, abandonar o arcaico, obsoleto e falido dueto pena-prisão, mas nunca se desvencilhando dos princípios que fundam a dignidade da pessoa humana.

Entender que os mecanismos despenalizadores são direitos e não favores é salutar para o desenvolvimento de uma nova era no já vergastado processo penal brasileiro.

A chama já foi acessa, resta-nos cultivá-la, apontar seus equívocos e lutar intransigentemente pelo aprimoramento do sistema de justiça criminal.

 

 


[1] LEITE, Rosimeire Ventura. A justiça consensual como instrumento de efetividade do processo penal no ordenamento jurídico brasileiro.

[2] JARDIM, Afrânio. Ação Penal Pública: Princípio da Obrigatoriedade. 4º ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001.

[3] TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de direito processual penal. – Salvador: Editora Podivm, 2009.

[4] AMORIM, Pierre Souto Maior Coutinho do. Observações sobre a Resolução nº 181/2017 do CNMP. Empório do direito

[5] JARDIM, Afrânio Silva; MAIOR, Pierre Souto. Primeiras impressões sobre a lei 13.964/19, aspectos processuais.

[6] NUCCI, Guilherme de Souza. Pacote anticrime comentado: Lei 13.964, de 24.12.2019. Rio de Janeiro: Forense, 2020.

[7] ARAS, Vladimir, et al. Lei anticrime comentada. São Paulo: Editora JH Mizuno, 2020.

[8] QUEIJO, Maria Elizabeth. O direito de não produzir prova contra si mesmo (o princípio nemo tenetur se detegere e suas decorrências no processo penal). São Paulo: Saraiva, 2003.

[9] SILVA, Juliana Ferreira da. O plea bargain e as falsas confissões: uma discussão necessária no sistema de justiça criminal.

[10] BETTA, Emerson de Paula. Da inconstitucionalidade e irrelevância do requisito da confissão no ANPP.

[11] MARTINELLI, João Paulo; DE BEM, Leonardo Schmitt. O limite temporal da retroatividade do acordo de não persecução penal.

[12] CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Código de Processo Penal e Lei de Execução Penal comentados por artigos. 4. ed. Salvador: JusPodivm, 2020, p. 191.

[13] JÚNIOR, Aury Lopes; JOSITA, Hisyna. Questões polêmicas do acordo de não persecução penal.

[14] FISCHER, Douglas. Não cabe acordo de não persecução penal em ações penais em curso.

[15] MARTINELLI, João Paulo; DE BEM, Leonardo Schmitt. Acordo de não persecução penal. Belo Horizonte: D’Plácido, 2020

[16] Disponível em: https://www.mppi.mp.br/internet/wp-content/uploads/2020/10/Tabela-Posic%CC%A7a%CC%83o-dos-Tribunais-de-Justic%CC%A7a-do-Brasil-def.pdf. Acesso em 29 de outubro de 2020.

[17] BARROS, Francisco Dirceu. O Acordo de Não Persecução Penal e o Acordo de Não Continuidade da Persecução Penal: Entenda de Forma Didática o Futuro do Processo Penal.

Sobre o autor
Leandro de Deus Filho

Sobre o autor: Bacharel em Direito pela Faculdade de Ciências e Tecnologia de Unaí (FACTU). Especialista em Direito Processual Penal pelo Complexo de Ensino Renato Saraiva (CERS). Especialista em Direito Penal e Processo Penal Aplicados pela Escola Brasileira de Direito (EBRADI). Pós-graduando em Direito Penal e Criminologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC/RS). Pós-graduando em Direito Processual Civil e Direito Processual Penal pelo Instituto Damásio de Direito (IBMEC). Advogado associado no escritório Luciano e Oliveira Sociedade de Advogados. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Penal, Processo Penal e Direito Ambiental.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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