A atual constituição do Chile pode ser considerada sui generis quando comparada
aos seus vizinhos latino-americanos, pois foi criada no período do regime militar, sob o
Governo do General Augusto Pinochet em 1980, sobrevivendo à transição para o governo
democrático ocorrida em 1990 e permanecendo em vigor até os dias de hoje. Pode-se
creditar este fenômeno ao fato de que a carta magna chilena, mesmo tendo sido elaborada
pela junta militar governante, já trazia originalmente o cerne de garantias e direitos
individuais suficientemente robusto para dar suporte a uma democracia plena que viria
surgir posteriormente. É claro que foram necessárias diversas emendas ao texto
inicialmente em vigor para que o Chile passasse a ostentar uma das melhores democracias
da América Latina (atrás apenas do Uruguai, segundo o Democracy Index compilado pela
revista The Economist).
Num período relativamente curto, vários países da América Latina adotaram
novas constituições, a saber, por exemplo:
• Panamá (1972);
• Cuba (1976);
• Chile (1980);
• Honduras (1982);
• El Salvador (1983);
• Guatemala (1985);
• Brasil (1988);
• Paraguai (1992);
• Peru (1993);
• Venezuela (1999).
Quando comparamos o contexto da criação das constituições dos vizinhos
próximos tanto geograficamente quanto pelas semelhanças históricas, as constituições
brasileira e paraguaia foram criadas justamente na transição para a democracia, enquanto
que a chilena foi elaborada e implantada em um regime autoritário. Argentina e Uruguai,
que viveram situações semelhantes, tiveram suas constituições meramente suspensas
durante o período de governo militar. Apesar da coincidência temporal, não é correto
afirmar que houve uma onda constitucional politica e filosoficamente uniforme na
América Latina, e muito menos que o Chile é um exemplo típico desse pretenso
fenômeno.
A constituição chilena é rígida quanto ao procedimento necessário para a
realização de emendas. Só podem ocorrer por iniciativa de um membro da câmara dos
deputados, do senado ou do presidente da república, dependendo da matéria. A aprovação
deve ocorrer em dois turnos em cada casa legislativa e com maioria qualificada. Para o
assunto ora em discussão, porém, é importantíssimo salientar que eventuais emendas
devem respeitar os seguinte princípios: voto direto, secreto, universal e periódico, os
direitos e garantias individuais e a separação dos poderes.
A maioria dos direitos fundamentais estão listados no artigo 19 da constituição
chilena de 1980. Trata-se de um longo rol, à moda do artigo 5o da constituição brasileira
de 1988. Tal lista está protegida constitucionalmente contra a edição de emendas à
constituição que possam reduzir a efetividade de sua aplicação, conforme já foi explicado
acima. Portanto, é impossível reduzir constitucionalmente os direitos individuais, o que é
um aspecto muito positivo para qualquer democracia.
O mesmo ocorre com o princípio da separação dos poderes. Apesar de estar
prevista no texto original da constituição chilena, inclusive com status de cláusula
intocável, apenas em 2005 foi editada uma emenda que deu o sentido necessário para uma
verdadeira democracia. As principais alterações trazidas pela edição da emenda de 2005
foram: a eliminação de senadores nomeados e vitalícios, a redução do prazo do mandato
presidencial e permissão para que o presidente remova e nomeie os comandantes das
forças armadas.
Além do exemplo supracitado, a constituição chilena foi emendada diversas vezes
desde a redemocratização. As alterações ao texto constitucional frequentemente
convergem no sentido de melhorar a qualidade da democracia chilena. Um exemplo foi a
exclusão de um mecanismo do texto original que previa a exclusão de partidos,
movimentos ou até pessoas da vida política chilena que tivessem ideias que colocassem
em risco a política vigente. Tal risco era absolutamente subjetivo e tinha um caráter de
clara ameaça a qualquer oposição ao governo Pinochet. O Chile caminha no sentido de
retirar meios que possibilitam a instalação de um autoritarismo velado, evitando o que
acontece hoje na Hungria de Viktor Orban ou na Polônia (governada de fato por Jaroslaw
Kackzynski). Não deixa de ser paradoxal, dada a origem do texto constitucional chileno.
Porém, apesar dos avanços legislativos já ocorridos, ainda há aspectos da legislação
chilena que poderiam ser melhorados, mesmo quando comparados aos seus vizinhos com
democracias visivelmente mais frágeis. Por exemplo, a liberdade de expressão no Chile
ocorre sob uma legislação que ainda a restringe bastante, e a atuação da Corte
Constitucional chilena é considerada muito conservadora em sua defesa.
Apesar de utilizar o exemplo da Hungria como democracia em risco, é interessante
verificar que uma pesquisa da OCDE feita em 2016 mostra que a população húngara se
interessa por política mais do que a chilena, embora considere-se que esse índice é um
dos marcadores clássicos de qualidade de uma democracia. Porém há outros fatores de
estabilidade da democracia e um no qual a chilena se destaca é o fato de não haver uma
forte polarização política. O país é pluripartidarista, e os vários partidos compõem duas
grandes coalizões, uma de centro-esquerda (Concertación) e uma de centro-direita
(Alianza). Esse arranjo não trás qualquer semelhança com o nível de polarização que
ocorre hoje no Brasil ou nos Estados Unidos, por exemplo.
Em 2018, nos últimos dias de seu mandato, a então presidente do Chile, Michelle
Bachelet, propôs uma nova constituição, argumentando que era necessária uma carta
magna elaborada sob uma democracia e que há ilegitimidade de origem da constituição
atual. Em tese, a nova constituição reduziria a maioria do congresso necessária para
aprovar certas leis, alterando o equilíbrio entre os poderes executivo e legislativo (que se
moveria em direção a um aumento do poder do presidente da república). Caso seja levada
adiante, a discussão de um novo texto constitucional pode colocar em risco a democracia
chilena, que vem demonstrando seu vigor ao longo das últimas décadas, mesmo sob o
comando de uma constituição nascida de uma forma autoritária (houve um plebiscito para
sua aprovação, porém não foi permitida a campanha contrária). Talvez o mérito da
constituição chilena resida justamente no fato de que tenha evoluído no sentido inverso
da maioria das constituições dos países democráticos, que frequentemente emendam para
aumentar a influência de um poder sobre os outros, dificultando a implantação de uma
eventual aventura autoritária.
Referências:
Helmke, G.; Rios-Figueroa, J.: Courts in Latin America
Benvindo, J. Z.; Bernal, C.; Albert, R.: Facts and Fictions in Latin American
Constitutionalism
Reuters/Jorge Cabrera: Bachelet propõe nova Constituição para o Chile em últimos dias
na presidência Globalex/Sergio Endress: Essential issues of the Chilean Legal System