Transexualidade no cárcere.

Uma análise sob a ótica das normas brasileiras

Leia nesta página:

Este trabalho objetiva demonstrar a relação da transexualidade no encarceramento com o ordenamento jurídico brasileiro. A população transexual é vulnerável no sistema carcerário brasileiro, exposta a violência e discriminação. Falta estrutura e legislação específica.

INTRODUÇÃO

A Constituição Federal de 1988 (CF/88) prevê em seu artigo 1º, inciso III a dignidade humana como um princípio fundante da República e no artigo 3º, inciso IV, um dos objetivos fundamentais: “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”(BRASIL,1988). Assim, o texto constitucional nos dá uma segurança de que todos os indivíduos independentemente de sua escolha sexual serão protegidos e abrangidos em seu conceito.  

Entretanto, quando se trata da população transexual temos uma situação de vulnerabilidade, uma vez que são pessoas que lidam com todas as formas de discriminação perante uma sociedade que foi construída dentro dos padrões considerados “normais”, baseando-se em um comportamento arcaico e se intensifica dentro do sistema carcerário brasileiro, pois ficam expostos a todo tipo de violência sendo replicada pelos demais presidiários, ocasionando também a omissão e violação de direitos e garantias fundamentais. O quadro se agrava diante da limitação de diversidade entre o gênero feminino e masculino dentro dos presídios que não abrange os transexuais, além da falta de legislação específica para regulamentar sua situação nas unidades prisionais.

Vale ressaltar que é obrigação do Estado garantir que a ressocialização dos presidiários ocorra da melhor forma possível, assim como é sua responsabilidade garantir a segurança, integridade física e a proteção da vida daqueles que se encontram encarcerados. A população transexual vem lutando durante anos para terem seus direitos humanos reconhecidos perante a sociedade e ao serem colocados em presídios cercados de pessoas intolerantes, sem chance de defesa tornam-se vítimas de um sistema desigual.

Nesse contexto, o Ministério dos Direitos Humanos divulgou em fevereiro do presente ano, o relatório “LGBT nas prisões do Brasil: Diagnóstico dos procedimentos institucionais e experiências de encarceramento”, com o objetivo de avaliar os presídios brasileiros acerca das condições que a população de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBT) é tratada em suas unidades. Segundo os dados, o Brasil possui 1.499 penitenciárias, porém somente 508 unidades responderam aos questionários e apenas 106 destas unidades possuem espaços de vivência específicos voltadas à essa população considerada a mais vulnerável. (BRASIL, 2020)

Dessa forma, é notório a falta de diversos fatores para a contribuição do exercício de direitos da população transexual, dentre elas a falta de estrutura dos ambientes dentro das unidades que não se preocupam com o seu bem estar deixando-os expostos à situações de risco como por exemplo, estupros, espancamentos e outras formas de agressão e humilhação, além disso há relatos de que mesmo nos presídios que possuem celas especiais, estas são utilizadas como uma espécie de solitária sendo uma forma de punição onde o indivíduo é deixado isolado durante dias com pouca comida ou água.

Outro ponto que merece ser destacado são as recorrentes reclamações advindas dos transexuais que expõem em entrevista elaborada para pesquisa de um Mestrado em Serviço Social, as restrições que sofrem ainda que com a criação de celas especializadas pois “embora com o propósito de evitar a violência contra essa população, acabou por dificultar suas demandas de educação e geração de renda”. Uma vez que acabam ficando afastadas do convívio com os demais presidiários e perdem a oportunidade de ofertas de emprego para ajudar na remissão de suas penas. (FERREIRA, AGUINSKY e RODRIGUES, 2013)

O tema dessa pesquisa é de extrema relevância social por ser pouco tratado nos Tribunais e na mídia, ganhando uma crescente visibilidade atualmente, mas que não é o suficiente para que se resolva o problema. O objetivo é retratar o tratamento da população transexual dentro dos presídios brasileiros, além de abordar a discussão sobre a criação de celas especiais de forma que se garanta o pleno exercício dos direitos humanos até então negados à essa parcela da população.

1  PANORAMA HISTÓRICO: LUTA E CONQUISTA LGBT

Não é de hoje que a população transexual vem lutando por seus direitos, principalmente diante do convívio em uma sociedade com costumes e privilégios que não os beneficiam. Ao analisarmos historicamente a evolução ao redor do mundo pode-se destacar iniciativas como as da Organização da Nações Unidas (ONU) que vem trazendo movimentos sociais como por exemplo a campanha Livres & Iguais, com intuito de promover a visibilidade trans, além de discutir sobre a” importância de leis, políticas públicas, programas e outras iniciativas governamentais que promovam a inclusão social de homens trans, mulheres trans, travestis e pessoas não-binárias” (BRASIL, 2019a).

 Em 1990, o primeiro passo para inclusão social foi dado quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) retirou o homossexualismo da lista de doenças, mas somente em 2018 o segundo passo foi dado em relação ao tema, quando ao lançar a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID 11) foi retirado os transtornos de identidade de gênero do capítulo de doenças mentais (BRASIL, 2018a). Assim, os pequenos avanços foram consolidando e dando voz aqueles que até então eram vistos e tratados como doentes e muitas vezes de forma depreciativa.

Outro fato importante é a atualização das regras mínimas das Nações Unidas para o tratamento de reclusos que ocorreu em 2015, mais conhecido como Regras de Mandela o documento tem como objetivo “estabelecer o que geralmente se aceita como sendo bons princípios e práticas no tratamento dos reclusos e na gestão dos estabelecimentos prisionais” (BRASIL, 2016a). A revisão decorre das regras anteriormente apresentadas, em 1955, no primeiro Congresso sobre Prevenção ao Crime e Justiça Criminal em Genebra.

Dentre as regras revistas destaca-se a de número 11 que delibera acerca da separação de categorias na qual a qualidade de cada indivíduo deve ser considerada para que sejam inseridos em ambientes específicos de acordo com o seu sexo, por exemplo, com ênfase no gênero e auto determinação de cada indivíduo.

Infelizmente, no âmbito das políticas públicas as evoluções também ocorrem de forma lenta, no Brasil em sua Constituição Federal de 1988 temos os primeiros artigos dedicados a dignidade da pessoa humana que por sua vez proíbe qualquer tipo de discriminação. Porém somente isso não é capaz de abolir tais práticas e proteger efetivamente, principalmente quando utilizamos os presídios brasileiros como cenário em que se exige uma legislação mais específica.

Judith Butler (1999) compreende que as normas são moldadas de forma que se encaixem em um caráter heteronormativo, ou seja, baseadas apenas no gênero heterossexual e a partir deste momento, cria-se uma exclusão das demais classes que deixam de ser vistas como sujeitos de direito e consequentemente ficam desprotegidos. Essa insegurança normativa causada pela não abrangência de todas as categorias sexuais criam incertezas e dificultam a luta dos transexuais.     

Segundo Oliveira e Vieira (2011, p. 19) o que define a conduta do sistema jurídico e a consagração da vulnerabilidade em relação a uma pessoa é sua identidade de gênero, pois “o preso LGBT, antes de se concluir se é inocente ou não,  já  é  tratado  como  um  condenado  quando  se  descobre  sua  orientação  e/ou  gênero,  os  quais, segundo a maioria, estão desconformes com os ditames da sociedade heterossexista”.   

Nesse sentido, um dos primeiros casos julgados no Brasil acerca dos direitos dos transgêneros foi em 2018 quando o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou o Habeas Corpus Nº 152.491 em favor de duas travestis para que fossem transferidas a uma unidade prisional adequada a sua identidade de gênero. A decisão do Ministro Barroso foi fundamentada nos seguintes termos:

10. Sem prejuízo disso, a notícia de que o paciente e o corréu foram incluídos em estabelecimento prisional incompatível com as respectivas orientações sexuais autoriza a concessão da ordem de ofício, na linha da Resolução Conjunta nº 1, de 15.04.2014, do Conselho Nacional de Combate à Discriminação; e da Resolução SAP nº 11, de 30.01.2014, do Estado de São Paulo (BRASIL, 2018b).

Vale ressaltar que a Resolução SAP Nº 11 de 2014, citada pelo Ministro Barroso também foi de grande importância para o avanço dos direitos desses indivíduos uma vez que dispõe sobre os tratamentos reservados aos travestis e transexuais dentro do sistema penitenciário, dentre eles temos o direito de utilização de roupa intima conforme seu gênero e a implantação de cela ou ala específica para travestis e transexuais (BRASIL, 2014a).

Ao analisar os fundamentos utilizados na decisão, é possível concluir que um grande precedente foi aberto para os futuros casos pois:

ao determinar a transferência das duas travestis para uma unidade prisional feminina, o STF reafirma dois dos direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição Federal, que são o de assegurar aos presos o respeito à integridade física e moral e a individualidade da pena, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado ( MELLO, 2018).

Em suma, existem outros julgados e arguições com intuito de promover qualidade de vida aos transexuais que se encontram encarcerados, tal como a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 527 de 2019, promovida pela Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros (ABGLT) na qual o objetivo era questionar as decisões judiciais divergentes e que afrontam a Resolução Conjunta da Presidência da República e do Conselho de Combate à Discriminação nº 1/2014, acarretando na tutela cautelar que determinou a transferência de transexuais aos presídios femininos (BRASIL,2019b).

Ainda nessa linha de raciocínio, a decisão cautelar concretizou que os direitos da população LGBT no geral, estão amparados em nossa Constituição e nos princípios fundamentais com a finalidade de evitar tratamentos desumanos dentro dos presídios brasileiros e respeitar os espaços de convívio adequados aos gêneros mesmo perante a omissão legislativa.

Entretanto, é importante salientar que não existem alas especificas para essa população em todos os presídios brasileiros e ainda que existam julgados que determinem a transferência de transexuais e travestis para presídios femininos não é suficiente para que se atenda à demanda, e pensando nisso foi criado o  projeto de lei 6.350/2019 que “determina que mulheres, travestis, transexuais masculinos ou femininas e maiores de sessenta anos cumpram pena em estabelecimento e adequado à sua condição pessoal” (BRASIL, 2019c). O projeto que visa inserir tal previsão na Lei 7.210/84 - Lei de Execução Penal (LEP) ainda será analisado pelas comissões de Direitos Humanos e Minorias; de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado; e de Constituição e Justiça e de Cidadania.

Desta feita, apesar de diversas resoluções e julgados é nítido que o amparo para os gêneros mais marginalizados perante a coletividade ainda é insuficiente para garantir que seus direitos não sejam violados. O ordenamento jurídico está em constante evolução ao passo que acompanha o corpo social, mas até o momento é falho na proteção desses indivíduos principalmente quando referido ao sistema carcerário brasileiro onde as lacunas da lei ainda não foram preenchidas gerando grandes dúvidas.

2   MULHERES E A POPULAÇÃO TRANS

Os sexos feminino e masculino sempre foram o ponto de partida que guiam a coletividade em relação aos costumes e demais aspectos do comportamento humano. Apesar da existência do gênero, a humanidade está propensa a acatar condutas que condizem com o sexo biológico de cada pessoa, ou seja, mesmo que um indivíduo tenha nascido com determinado sexo mas não se aceite dessa forma e queira mudar as características de seu corpo e comportamento, torna-se um assunto complexo perante os costumes enraizados no corpo social. Neste aspecto é possível compreender que:

ao dirigir o foco para o caráter "fundamentalmente social", não há, contudo, a pretensão de negar que o gênero se constitui com ou sobre corpos sexuados, ou seja, não é negada a biologia, mas enfatizada, deliberadamente, a construção social e histórica produzida sobre as características biológicas (LOURO, 1997, p. 21).

Para Bento (2006) a diretriz criada pela sociedade é estabelecida pelo sexo biológico e a partir dele o gênero é construído. O gênero só tem relevância quando segue os parâmetros impostos que por sua vez guiarão a forma como cada indivíduo deverá se comportar e como será visto aos olhos dos outros. Trata-se de uma performance em que todos os dias é repetido o padrão comportamental aceitável e assim, tudo que foge do considerado normal será marginalizado.

Contudo, quando o assunto se refere a mulheres no geral, estas por sua vez também fazem parte de uma parcela fragilizada no que tange aos costumes e atos praticados independentemente de terem nascido com o sexo feminino. De acordo com Louro (1997), a figura feminina sempre foi vista como frágil e incapaz de ocupar postos de liderança e ainda que estivessem inseridas em ambientes de trabalho continuavam sendo vistas de forma inferior, como se fossem indignas de receber os mesmos tratamentos e privilégios que os indivíduos do sexo masculino apenas pela sua condição de mulher.

A situação tende a se agravar ao incluirmos o contexto da mulher dentro do sistema prisional no qual dentre as diversas dificuldades que enfrentam, destaca-se o fato delas receberem menos visitas, comparado aos homens “seja pelo estigma social da mulher que comete um delito ou em razão dos companheiros estabeleceram novas relações afetivas com maior rapidez”, conforme ensina Oliveira e Santos (2012, p. 240).

O termo “transexual” foi conceituado pela psiquiatra Colette Chiland (2003, apud BENTO, 2012), afirmando que são os indivíduos do sexo masculino ou feminino que não se identificam com seu corpo de nascimento, ou seja, existe uma batalha entre seu sexo e gênero ocasionando a busca por procedimentos médicos para que finalmente consigam se reconhecer em si mesmo. No Brasil, o Ministério da saúde também conceitua a expressão na qual:

o indivíduo transexual tem como característica principal o desejo constante e intenso de modificar seu sexo genital. Entende-se que uma pessoa transexual possui a genitália de determinado sexo (masculino ou feminino), porém, sua psique é oposta a ele. Assim, o transexual homem para mulher é aquele que nasceu com a genitália masculina (pênis), mas sua psique é feminina (se mulher para homem, temos uma pessoa que nasceu com a genitália feminina (vagina), mas sua psique é masculina, determinando que ela se perceba interna e externamente como um homem) (BRASIL,2002).

Não obstante, os transexuais se encontram no mesmo nível de vulnerabilidade pois além de fugirem do idealismo adequado imposto, também lutam para serem reconhecidos na figura feminina. Assim, é fato que a transexualidade é vista desde os primórdios de forma injusta e equivocada, ao passo que de maneira preconceituosa apenas se iguala à imagem rebaixada do feminino.

Buglione (2007) discorre que a visão da sociedade sobre a mulher ainda está ligada à uma diretriz opressora lhe atribuindo o papel de suporte ao homem, portanto quando vinculada ao ambiente criminal é rejeitada não só pelo cometimento de um crime, mas também por estar inserida em um contexto considerado totalmente masculino.

Em conclusão, se o sexo feminino já enfrenta diversas problemáticas simplesmente pelo seu gênero, seja dentro ou fora dos presídios, não há espanto ao compará-lo ao sofrimento enfrentado pelas mulheres trans que buscam muito além da auto aceitação, buscam o respeito e a igualdade não apenas como indivíduo que apresenta determinadas características, mas também como cidadão com plenos direitos.

3  TRANSEXUALIDADE NOS PRESÍDIOS BRASILEIROS

3.1 Superlotação do sistema prisional e seus reflexos

A superlotação de presídios no Brasil não é um assunto recente uma vez que a situação se apresenta instável ao longo dos anos. De acordo com o último levantamento do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), realizado em 2019 para o projeto “Sistema Prisional em números”, a taxa de ocupação dos estabelecimentos prisionais brasileiros é de 165,72% sendo considerado o número total de unidades que é de 1.408. Ao comparar esse dado com o de 2018 que foi de 175%, é possível dizer que houve uma diminuição, entretanto insignificante, uma vez que permanece sendo um número muito alto e além da capacidade prisional.

Acrescenta-se que tal conjuntura ocasiona outros problemas, como a violência que também foi objeto de estudo do CNMP, na qual foi registrado algum tipo de lesão corporal causada por servidores em 221 unidades da totalidade de presídios. Tendo como base essa perspectiva, é possível associar as problemáticas desses locais com nossa carta constitucional e o seu maior princípio, a dignidade da pessoa humana, que objetiva a proibição de qualquer tratamento degradante à população, mas que nesse caso é claramente ferido. (BRASIL, 1988)   

Nesse sentido, nosso ordenamento jurídico traz previsões legais visando a proteção dos indivíduos que se encontram em situação de encarceramento, é o caso do artigo 5º, inciso III da Constituição Federal de 1988 que dispõe “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”, ou seja, ao ser interpretado para a área criminal serve como garantia de que o preso não deve ser submetido à situações que o coloquem em situações desconfortáveis como compartilhar uma cela com um número de pessoas além de sua capacidade.

Ainda visando a segurança dos encarcerados, o inciso XLIX do mesmo artigo determina que “é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral”, assim como o artigo 40 da LEP aduz “impõe-se a todas as autoridades o respeito à integridade física e moral dos condenados e dos presos provisórios” (BRASIL, 1984), logo nos remete ao fato de que não deveriam sofrer nenhum tipo de abuso, seja dos outros presidiários ou dos agentes públicos.

Por conseguinte, o Estado ao administrar o sistema de forma omissa e com políticas que só contribuem para o encarceramento em massa resultam no agravamento da situação, conforme Soares e Queiróz (2019) mencionam ao dizer que:

O Estado brasileiro, a par das inúmeras violações a direitos humanos, vivenciadas diariamente no sistema penitenciário, agravadas principalmente pela superlotação, não apenas ignora tal realidade, como emite sinais claros de que pretende adotar medidas que vão ao encontro da política de encarceramento em massa, tais como a redução da atual menoridade penal, e a extinção de direitos como progressão de regime e saídas temporárias. (SOARES; QUEIRÓZ, 2019, p. 4)

Em 2016, a Ministra Cármen Lúcia fez uma visita ao Complexo Penitenciário da Papuda, em Brasília/DF, onde verificou de perto os problemas enfrentados diariamente dentro dos presídios no Brasil, foi relatado que:

Na Penitenciária do Distrito Federal II (PDF II), a presidente visitou uma ala onde havia uma cela com 18 homens ocupando oito vagas. Para dormir, os detentos afirmaram que precisam forrar a superfície da cela apinhada com colchões porque não há camas para todos. Não era possível enxergar o piso do alojamento com tantos presos sentados no chão e sobre as camas. Na PDF II, cerca de 3,2 mil condenados cumprem pena, embora só haja 1,4 mil vagas (BRASIL, 2016b).

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Ainda durante a visita, verificou-se que a situação do Centro de Detenção Provisória (CDP) é ainda mais grave pois há cerca de 4 mil presos em um local com capacidade de 1,6 mil vagas sendo que foi relatado por funcionários a existência de outros pavilhões com o dobro da capacidade suportada.

O crescimento desenfreado da população prisional gera danos muitas vezes irreparáveis para aqueles que os vivem, mas principalmente para aqueles que fazem parte do grupo LGBT, como os transexuais que já são fragilizados por diversos outros fatores e dependem de uma maior proteção.

3.2 O cárcere sob o corpo transexual

O sistema carcerário brasileiro tem sua estrutura baseada em um sistema heteronormativo, ou seja, foi construído para que haja uma divisão entre homens e mulheres. É possível visualizar essa separação no artigo 82, §1º da Lei 7.210/84 na qual positiva “a mulher e o maior de sessenta anos, separadamente, serão recolhidos a estabelecimento próprio e adequado à sua condição pessoal” ( BRASIL, 1984).

Desta feita, é notório que tal organização não foi feita para atender aos transexuais e demais gêneros, mas diante de diversas questões enfrentadas dentro dos presídios como agressões e demais violências que são agravadas para esses grupos específicos, fez-se necessário adaptações que infelizmente ainda são ineficazes. De acordo com relatório do Centro para o Progresso Americano, presidiários LGBT tem 15 vezes mais chance de sofrer abuso sexual dentro das penitenciárias se comparado com os heterossexuais. (INSTITUTO TERRA TRABALHO E CIDADANIA, 2015)

Ainda nessa vertente, a Comissão Internacional de Direitos Humanos (CIDH), demonstrou em seu relatório a situação perigosa e agravante na qual transexuais estão submetidos quando estão em situação prisional, sofrendo ataques sexuais, torturas e outros tratamentos desumanos, inclusive sendo praticado por agentes de segurança da própria instituição ou com seu auxilio já que há relatos de que eles chegam a distribuir preservativos para incentivar e facilitar que estupros ocorram.

A violência e o descaso com a população LGBT é multiplicada quando estão dentro de presídios, sofrendo ainda mais ao ter seus direitos violados por aqueles que deveriam protegê-los. O ambiente na qual estão inseridos também contribuem para o sofrimento já que muitas vezes o básico para sobrevivência lhes é negado, conforme explica Souza e Ferreira (2016, p. 29), ao relatar a situação do Presídio Central de Porto Alegre em que “a superlotação, falta de assistência médica e ambientes insalubres desenham um cenário que remonta aos campos de extermínio nazistas. Apenas observando estes tópicos notam se graves violações aos direitos humanos.”

Nesse sentido, alguns preceitos como As regras de Bangkok - Regras das Nações Unidas para o tratamento de mulheres presas e medidas não privativas de liberdade para mulheres infratoras, objetivam direcionar os Estados para que se evite tais atos lesivos, nesse documento especificamente busca-se a salvaguarda das mulheres presidiárias mas que pode ser interpretado de modo que abranja os transexuais, já que apesar de termos uma separação entre sexos masculinos e femininos, trata-se de uma questão de gênero, na qual é explicitado por Santos (2017):

O gênero é trazido ao longo de todo o documento produzido em Bangkok e, para nós, o conceito mais amplo e mais abrangente desse termo e baseado na autodeclaração dos sujeitos é o que deve preponderar. Isso justamente porque o espectro de abrangência dos direitos humanos não pode ficar enraizado nas disposições binárias e limitadas de “homem” e “mulher” e nem se fundar em concepções biologicistas fixas. (SANTOS, 2017, p. 48)

Sendo assim, acerca das regras, a de número 7 elucida que nos casos de abuso sexual ou qualquer outro tipo de agressão que ocorra dentro do presídio ou fora, é direito da mulher ter todo o apoio necessário, seja psicológico ou de denúncia ao agressor (BRASIL, 2016c). De mesmo modo, a regra 17 defende a educação sobre medidas preventivas afim de se evitar doenças sexualmente transmissíveis e outros tipos de doenças inerentes a mulheres. (BRASIL, 2016c)

Outrossim, tais determinações ainda fazem parte de um cenário distante da realidade principalmente quando relacionado à saúde dentro das prisões. O médico e escritor, Drauzio Varella (2019), narra uma de suas experiências em um presídio, em que as maiores queixas de travestis que viviam em uma cadeia masculina eram a falta de educação sexual e métodos de prevenção a doenças sexualmente transmissíveis. Dentre suas pesquisas, descobriu-se que travestis que cumpriam pena há mais de seis anos,100% eram portadoras do vírus HIV.

 Além disso, o tema agressão também foi muito citado, com reclamações acerca dos abusos sofridos por parte dos outros encarcerados, dos preconceitos já tão vividos fora do cárcere e que dentro só aumenta, além das superlotações de celas e privação de hormônios femininos necessários para manter suas formas. Porém, apesar das dificuldades enfrentadas, Drauzio expõe “quando perguntei onde sentiam mais segurança e eram mais respeitadas, na cadeia ou na rua, responderam: “Na cadeia”. Nenhuma discordou”. (VARELLA, 2019)

Dentro do sistema penitenciário existe uma insuficiência enorme em muitas vertentes pois os direitos se limitam aos papéis de leis, mas a realidade vivida é outra, não existe segurança, saúde, trabalho e muitos outros direitos que proporcionariam uma mudança social significativa para os presidiários. O grupo LGBT experimenta essa privação de maneira mais forte e dolorosa, acabam sendo punidos não somente por seus crimes, mas também por serem quem são, independentemente de estarem livres ou em celas.

Ademais, há relatos como o da transexual Gabriela (nome fictício), que explicita os abusos que sofreu enquanto cumpria sua pena em uma penitenciária masculina, na qual foi obrigada a cortar seus cabelos e a dividir uma cela com doze homens, sendo estuprada com frequência até nos banheiros. Além da crueldade causada pelos presidiários, também chegou a ser agredida por agentes penitenciários. (G1, 2020)

O fato é que o ordenamento jurídico não deve se limitar ao órgão sexual ou característica de um indivíduo pois só contribuem para que mais relatos como os de Gabriela ocorram, ele deve ser mutável no sentido de acompanhar a sociedade conforme suas necessidades afinal não somos apenas um corpo pré-determinado, mas sim sujeitos em constante evolução.    

3.3 Celas e alas específicas à população LGBT: progresso ou   exclusão?

Devido à situação caótica do sistema prisional brasileiro, na qual indivíduos dividem celas com capacidade máxima excedida, faz-se necessário o questionamento acerca da necessidade de separação das pessoas que se declaram LGBT.

De acordo com dados do Levantamento Nacional de Informações Carcerárias (INFOPEN, 2019), apenas 3% dos presídios brasileiros possuem alas específicas para essa comunidade e apenas 7% tem celas exclusivas. Vale ressaltar que o Brasil está no ranking como um dos países com a maior população carcerária, o que contribui para que não haja espaços adequados para os indivíduos de forma geral.

Essas informações demonstram que o Estado pouco faz para desenvolver políticas públicas capazes de garantir dignidade à essas pessoas, entretanto princípios e regras foram criados para amenizar, como os Princípios de Yogyakarta que buscam orientar sobre as ações nocivas e que devem ser evitadas em relação à orientação sexual e identidade de gênero, dentre elas o princípio 9 que discorre sobre o comportamento dos Estados mediante os LGBT que se encontram cumprindo penas privativas de liberdade, na qual devem:

d) Implantar medidas de proteção para todos os presos e presas vulneráveis à violência ou abuso por causa de sua orientação sexual, identidade ou expressão de gênero e assegurar, tanto quanto seja razoavelmente praticável, que essas medidas de proteção não impliquem maior restrição a seus direitos do que aquelas que já atingem a população prisional em geral. (YOGYAKARTA, 2006, p. 19)

O objetivo de tal princípio é buscar a integridade física e psicológica daqueles que fogem do padrão heterossexual mas ainda sim assegurar igualdade de tratamento e benefícios que os demais já possuem sem gerar uma exclusão social, já que todos devem ter acesso a direitos como os de remição de pena através do trabalho, por exemplo. Ainda sob essa égide, o principio 9 também tem como objetivo “assegurar, na medida do possível, que todos os detentos e detentas participem de decisões relacionadas ao local de detenção adequado à sua orientação sexual e identidade de gênero”. (YOGYAKARTA, 2006, p. 19)

Apesar das poucas alas e celas especiais nos presídios é importante tais medidas para que tanto os transexuais como os demais possam ter voz ativa sobre os lugares mais adequados para sua segurança, uma vez que as pessoas que se encontram encarceradas devem buscar sua reintegração na sociedade e pagar pelos seus crimes de forma justa que é o previsto no artigo 10º da Lei 7.210/84 na qual diz “a assistência ao preso e ao internado é dever do Estado, objetivando prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade” (BRASIL, 1984), ou seja, de forma que não lhes causem qualquer forma de tortura e os incentive a não retornar ao crime.

Uma das primeiras Alas LGBT do Brasil foi instalada em 2013 na Penitenciária Desembargador Flósculo da Nóbrega, em João Pessoa-PB, e uma pesquisa foi realizada em 2014 com o intuito de comparar as mudanças na qualidade de vida após essa população passar a conviver nesse espaço (EUSTAQUIO JUNIOR; BREGALDA; SILVA, 2016). Diversos questionamentos foram respondidos por travestis, transexuais e homossexuais que demonstraram melhorias significativas no âmbito das relações sociais, aspectos de higiene e segurança pois:

O convívio em um pavilhão comum restringia a possibilidade de gays, travestis e transexuais realizarem atividades como o trabalho fora da cela, geralmente relacionado à manutenção das atividades da instituição e independente de seu desejo e, muitas vezes, o trabalho dentro da cela era algo determinado à força, que ia contra a vontade desses indivíduos. (EUSTAQUIO JUNIOR; BREGALDA; SILVA, 2016, p. 264)

Outra melhoria foi nas relações pessoais na qual relataram que antes da criação da cela, tinham dificuldades para receber visitas de seus parceiros, em especial pelo preconceito direcionado por aqueles que conviviam na ala comum. Após a mudança, as visitas se tornaram mais frequentes e livre do medo de ataques e represálias. (EUSTAQUIO JUNIOR; BREGALDA; SILVA, 2016)

Entretanto, pontos negativos também foram apontados sobretudo em relação à privação ao lazer e acesso a cuidados médicos, o motivo é que com uma ala separada os funcionários do presídio não vão com frequência ao local que acaba ficando isolado e impede que os indivíduos transitem, conforme os autores mencionam:

A possibilidade de lazer foi reduzida a praticamente zero, já que as maiores queixas são a respeito do banho de sol, que costumava ser a única atividade de lazer e vem sendo cortada do seu quadro de atividades. Esse impedimento de sair da cela dificulta a manutenção da saúde dos detentos, que não podem sequer ir a um atendimento médico ou odontológico, exceto nos dias em que há atividades que tornem necessário abrir o portão da Ala. (EUSTAQUIO JUNIOR; BREGALDA; SILVA, 2016, p. 274)

As transformações ocasionadas pela ala especial demonstram uma pequena parte do impacto positivo que pode gerar na vida de detentos LGBT, porém não omitem as situações desfavoráveis e exclusões, devidamente apontadas por Marcio Zamboni (2016) na qual explicita:

A diversidade sexual e de gênero em prisões masculinas podem propiciar situações de discriminação e violência, mas também relações de troca afetiva, sexual e material. Essas trocas (namoros, casamentos, programas, transas etc.), entre pessoas que podem ou não se ver como parte de uma população LGBT, são muito valorizadas por grande parte dessas presas e presos – de forma que este projeto de separação é muitas vezes percebido como algo que pode restringir um já limitado campo de possibilidades (ZAMBONI, 2016, p. 22)

 Desta feita, é indispensável a participação ativa do Estado para a garantia de que esse projeto seja levado para as demais regiões do Brasil, com a criação de diretrizes que concretizem os direitos daqueles que passem a conviver nessas áreas e que continuem incluídos nas atividades proporcionadas. Além disso, a opinião desse grupo deve ser levada em consideração sobre os lugares nos quais se sentem mais confortáveis, evitando assim que ocorram segregações e mais direitos sejam lesados.

4   ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO E A TRANSEXUALIDADE

A violação de direitos é perpetuada em diversos episódios do cotidiano da humanidade, em determinados lugares se apresenta de forma consecutiva e em outros em menor quantidade. Por conseguinte, tornou-se imprescindível a criação de leis que combatam tais problemas e protejam as minorias.

Conforme já explicado, o propósito que deve ser atingido dentro dos presídios é a possibilidade de reintegração do indivíduo no corpo social, fato devidamente apontado no artigo 1º da LEP. Inclusive, o artigo 4º, dispõe que “o Estado deverá recorrer à cooperação da comunidade nas atividades de execução da pena e da medida de segurança” (BRASIL, 1984), ou seja, na concepção de Rodrigo Felberg “a participação da sociedade auxiliando o Estado nesse processo de reintegração é de suma importância, uma vez que a reintegração social do egresso é benéfica tanto para ele, quanto para toda comunidade de forma geral”.(2015, apud OLIVEIRA, 2017,p. 55)

Ainda na mesma lei, o artigo 3º preceitua que o condenado e o internado terão todos os seus direitos garantidos e no parágrafo único determina que “não haverá qualquer distinção de natureza racial, social, religiosa ou política”. (BRASIL, 1984)

A LEP também expressa em seu artigo 41 os direitos inerentes aos encarcerados como o de visita intima de parentes e amigos (inciso X), vestuário e alimentação adequados (inciso I) e igualdade de tratamento (inciso XII) (BRASIL, 1984). Acentua-se o fato de que todos os dispositivos citados são meios de salvaguarda aos direitos de todos, independentemente de qualquer característica que possua.

O título IV (artigos 82 a 86), deliberam sobre os estabelecimentos penais levando em conta as necessidades de cada indivíduo. Destaca-se o artigo 84, parágrafo 4º que alude “o preso que tiver sua integridade física, moral ou psicológica ameaçada pela convivência com os demais presos ficará segregado em local próprio” e artigo 85 complementa que “o estabelecimento penal deverá ter lotação compatível com a sua estrutura e finalidade” (BRASIL, 1984), isto é, expressam que é imprescindível  que o ambiente no qual as pessoas cumprirão suas penas proporcionem o suficiente para sua subsistência e sem qualquer tipo de violência.

Por sua vez, o artigo 38 do Código Penal (CP) impõe o respeito à integridade física do presidiário, sistematizando que todos os seus direitos devem ser mantidos e que a única exceção é o da liberdade. Logo, ainda que um indivíduo se encontre em situação prisional, sua garantias proporcionadas pela dignidade humana devem ser mantidas. (BRASIL, 1940)

4.1 Resolução Conjunta Nº 1 de 15 de abril de 2014

A Resolução Conjunta Nº 1 de 2014 é uma das inovações do nosso ordenamento jurídico. Trouxe amparo à população LGBT que cumpre pena privativa de liberdade e delibera sobre assuntos de suma importância ao combate à discriminação pois tem como fonte a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o Pacto de San José da Costa Rica, Regras de Bangkok, Princípios de Yogyakarta, entre outros.

Ao todo são 12 artigos, ressalta-se o artigo 1º que elucida quais são os indivíduos que compõem a comunidade LGBT, além das suas devidas definições na qual entende-se como transexual “pessoas que são psicologicamente de um sexo e anatomicamente de outro, rejeitando o próprio órgão sexual biológico” (BRASIL, 2014b).

Desta feita, acerca da necessidade de rejeição do próprio órgão sexual, Lima e Nascimento (2014) considera que:

Tal noção coaduna com a compreensão patologizada da transexualidade, que impõe em diversos âmbitos a existência de um laudo médico que ateste a presença do transtorno psicopatológico, ou seja, um distúrbio mental, para que a população transexual possa ter a garantia de seus direitos. Há um conflito evidente entre a objetividade e a subjetividade da própria sexualidade (LIMA; NASCIMENTO, 2014, p. 84).

Os autores  ainda esclarecem que apesar de se tratar de uma norma que busca regulamentar e trazer dignidade à comunidade LGBT, deixa de ser eficiente ao buscar sua concretização em determinado aspecto do corpo o que contradiz a subjetividade do gênero, que não pode e nem deve ser definido apenas por questões físicas.

O artigo 2º diz que “a pessoa travesti ou transexual em privação de liberdade tem o direito de ser chamada pelo seu nome social, de acordo com o seu gênero” (BRASIL, 2014b). Em paradigma à essa estipulação, é interessante salientar que em 2018, o STF normatizou através da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4275 o direito de transgêneros alterarem seus registros civis, em relação ao nome e gênero, sem que seja necessário cirurgia de redesignação de sexo. Em seu voto, o Ministro Celso de Mello proferiu:

Com este julgamento, não hesito em afirmar que o Brasil dá um passo significativo contra a discriminação e contra o tratamento excludente que têm marginalizado grupos minoritários em nosso País, como a comunidade dos transgêneros, o que torna imperioso acolher novos valores e consagrar uma nova concepção de Direito fundada em nova visão de mundo, superando os desafios impostos pela necessidade de mudança de paradigmas, em ordem a viabilizar, como política de Estado, a instauração e a consolidação de uma ordem jurídica genuinamente inclusiva. (BRASIL, 2018c, p. 123)

 O terceiro artigo tem como disposição “às travestis e aos gays privados de liberdade em unidades prisionais masculinas, considerando a sua segurança e especial vulnerabilidade, deverão ser oferecidos espaços de vivência específicos” (BRASIL, 2014b), destaca-se o parágrafo 2º que discorre acerca da liberdade de escolha dos indivíduos sobre a transferência para celas e alas específicas. Em 2018, a juíza Leila Cury, da Vara de Execuções Penais do Distrito Federal, negou a transferência de onze transexuais e travestis para uma unidade prisional feminina sob o argumento de que a Resolução Conjunta Nº1 determina a transferência para espaços específicos e não para prisões femininas.

Entretanto, o artigo 4º alude que “as pessoas transexuais masculinas e femininas devem ser encaminhadas para as unidades prisionais femininas” (BRASIL, 2014b), ou seja, o direito das transexuais que faziam parte do grupo acabou por ser ignorado ainda que não houvesse previsão legal para a transferência apenas das demais que se declararam travestis, assim, ao comparar a decisão, já citada, do Ministro Barroso no Habeas corpus nº 152.491, a justificativa da juíza foi que:

Essas pessoas trans também foram alocadas em celas separadas dos homens e estão recebendo banho de sol em pátio separado deles, de forma que suas situações não se assemelham em nada àquelas enfrentadas pelas travestis beneficiadas com a concessão da Ordem no HC nº 152.491/SP, de relatoria do Ministro Barroso (BRASIL,2018d).

Em sede recursal, o processo mencionado acima foi julgado em 2019, pelo Desembargador João Batista Teixeira que negou provimento com a alegação de que apesar de não haver estabelecimentos específicos para transgêneros, os que residem na penitenciária masculina não estão sofrendo nenhum tipo de violência. Nota-se que o assunto ainda não se encontra pacificado, gerando diversas ramificações no direito.

Outros artigos que merecem maior atenção são:

5º - À pessoa travesti ou transexual em privação de liberdade serão facultados o uso de roupas femininas ou masculinas, conforme o gênero, e a manutenção de cabelos compridos, se o tiver, garantindo seus caracteres secundários de acordo com sua identidade de gênero.

6º - É garantido o direito à visita íntima para a população LGBT em situação de privação de liberdade, nos termos da Portaria MJ nº 1.190/2008 e na Resolução CNPCP nº 4, de 29 de junho de 2011.

7º - É garantida à população LGBT em situação de privação de liberdade a atenção integral à saúde, atendidos os parâmetros da Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais - LGBT e da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional - PNAISP.

Parágrafo único - À pessoa travesti, mulher ou homem transexual em privação de liberdade, serão garantidos a manutenção do seu tratamento hormonal e o acompanhamento de saúde específico (BRASIL, 2014b).

Tais regulamentos são de grande relevância por tratarem de quesitos que são comumente violados nos presídios como visita intima e tratamento hormonal. Diante das denúncias acerca dessas condutas, o Departamento Penitenciário do Paraná (DEPEN, 2019), regulamentou em conjunto com outros órgãos de justiça a portaria Nº 87 que busca dar assistência à população Gay, Travesti e Transexual (GTT) que se encontram encarceradas no Sistema Penitenciário do Paraná, com a primeira implementação na  Cadeia Pública de Rio Branco do Sul em Curitiba e tem como base os mesmos preceitos da Resolução Conjunta Nº1.

O artigo 8º aduz que “a transferência compulsória entre celas e alas ou quaisquer outros castigos ou sanções em razão da condição de pessoa LGBT são considerados tratamentos desumanos e degradantes” (BRASIL, 2014b). Tem como desígnio a vedação da utilização das alas e celas específicas para os LGBT para prática de abusos.

Por fim, o artigo 11 certifica o direito ao auxílio-reclusão, incluindo cônjuge ou companheiro ainda que seja do mesmo sexo (BRASIL, 2014b). Fica nítido que não é aceitável a diferenciação do preso LGBT dos demais, logo é portador dos mesmos direitos, garantindo também que as famílias desses indivíduos sejam asseguradas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho tinha como objetivos demonstrar as diferentes perspectivas acerca da população transexual dentro do sistema carcerário no Brasil. Discutir acima de tudo, a situação muitas vezes precária na qual estão submetidos, principalmente nos quesitos de violência e discriminação, além da necessidade de celas e alas específicas para a comunidade LGBT com o intuito de proteger a sua integridade física e mental, sem que houvesse uma exclusão ainda maior e a criação de normas específicas que regulamente e protejam os direitos desses indivíduos dentro dos presídios.

Entende-se que estes objetivos foram atingidos uma vez que houve uma análise profunda sobre a importância do gênero na construção da sociedade e como afetou a transexualidade, pois, colocou essas pessoas no mesmo patamar de vulnerabilidade em que se encontram as mulheres cisgêneros (as que nasceram com o sexo feminino e assim se identificam) na qual sofrem mais violências e quando são inseridas em presídios brasileiros, são discriminadas até mesmo por suas famílias.

Outro tema apresentado foi a superlotação carcerária e seus impactos aos indivíduos transexuais, dados apontaram que o crescimento da população prisional acarreta diversos outros problemas como a violência que já é comumente usada contra aqueles considerados mais vulneráveis o que dificulta ainda mais seu convívio com os demais presidiários.

Além disso, discutiu-se sobre a criação das alas e/ou celas específicas e através de diversas pesquisas como a de 2014 realizada na Penitenciária Desembargador Flósculo da Nóbrega, em João Pessoa-PB, na qual teve uma das primeiras alas voltadas à população LGBT, concluiu-se que ocorreram melhorias significativas, mas, que também geraram uma exclusão social nas relações entre os que lá viviam.

Por fim, foram levantados questionamentos sobre o cárcere dos transexuais com foco no âmbito judicial, de que modo políticas públicas foram desenvolvidas para amparar esses indivíduos e quais mudanças foram geradas. Nota-se que o ordenamento jurídico brasileiro ainda é omisso no assunto e que apesar do tema ter maior destaque na mídia atualmente, poucos casos foram levados ao STF e todas as decisões divergiram. Destaca-se a Resolução Conjunta Nº 1 de 15 de abril de 2014 que regulamenta os direitos LGBT dentro das penitenciárias. Porém ainda pouco se faz quando se trata de garantir um ambiente seguro que garanta a reeducação dos presidiários transexuais e pouco se ouve sobre suas opiniões.

Este trabalho tem limitações porque existem outras pesquisas que abordam a mesma temática utilizando-se de entrevistas e com foco em regiões e penitenciárias brasileiras específicas. Entretanto, esta pesquisa limitou-se ao levantamento de informações e comparações com diferentes pontos de vista e sendo assim, não foram realizadas outras abordagens com a população que foi objeto de estudo.

Finalmente, sugere-se o equilíbrio entre as políticas públicas e a comunidade LGBT. É evidente que a falta de regulamentação específica só demonstra que nosso ordenamento jurídico está fadado ao declínio uma vez que não acompanha as mudanças sociais. A sociedade encontra-se em constante evolução, logo novos hábitos e comportamentos surgem e junto com eles surgem as necessidades de mudanças e ao fechar os olhos para tais problemas, a justiça se mostra ineficaz e ultrapassada, além de falhar na sua função de proteção aos indivíduos, essencialmente aqueles que mais necessitam.

Logo, esse cenário problemático que custa a vida de milhares e perpetua a violência só pode ser alterado com a devida atenção do governo, seja na criação de leis eficazes ou na construção de ambientes que proporcionem a segurança que todos os seres humanos possuem como direito, pois somente assim, ocorrerá o verdadeiro aproveitamento da pena cujo foco principal do sistema penitenciário deve ser o de moldar pessoas melhores, que sejam capazes de voltar ao convívio social e sob tudo não queiram retornar para o sistema.

 

REFERÊNCIAS

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Sobre as autoras
Luci Mendes de Melo Bonini

Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, Professora de Filosofia e Pesquisadora no Mestrado em Políticas Públicas da Universidade de Mogi das Cruzes. Área de interesse: Direitos Humanos e Políticas Públicas.

Jaqueline de Souza Barbosa

Bacharelanda no curso de Direito da Universidade de Mogi das Cruzes

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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