A análise da imputação em pagamento em Direito Tributário frente a súmula 464 do STJ.
Da imputação em pagamento em direito tributário
1. De início, cumpre destacar que a imputação em pagamento é um instituto oriundo do direito civil. Tal instituto se apresenta quando há a verificação que o mesmo sujeito passivo possui perante o mesmo sujeito ativo mais de um débito e oferece para pagamento montante insuficiente para quitação de tudo o que deve.
2. Na esfera do direito tributário, o CTN optou por atribuir à autoridade administrativa a prerrogativa de, seguindo rígida disciplina legal, estabelecer quais os débitos serão quitados pelo montante oferecido pelo sujeito passivo, quando da impossibilidade de plena quitação.
5. Nesse sentido o art. 163 do CTN é expresso ao vincular a relação de precedência entre diferentes créditos tributários, como segue:
Art. 163. Existindo simultaneamente dois ou mais débitos vencidos do mesmo sujeito passivo para com a mesma pessoa jurídica de direito público, relativos ao mesmo ou a diferentes tributos ou provenientes de penalidade pecuniária ou juros de mora, a autoridade administrativa competente para receber o pagamento determinará a respectiva imputação, obedecidas as seguintes regras, na ordem em que enumeradas:
I – em primeiro lugar, aos débitos por obrigação própria, e em segundo lugar aos decorrentes de responsabilidade tributária;
II – primeiramente, às contribuições de melhoria, depois às taxas e por fim aos impostos;
III – na ordem crescente dos prazos de prescrição;
IV – na ordem decrescente dos montantes.
6. Assim o artigo 163 do CTN vincula todos os entes federativos de forma cogente, não havendo margem para interpretações diversas quando da imputação em pagamento relativa a diferentes créditos tributários.
7. Noutro giro, o CTN não contém nenhuma regra expressa de imputação de pagamento para os casos em que o contribuinte tenha um débito tributário composto de principal, juros e multas.
8. No direito privado há expresso comando para que se impute primeiro os juros:
Art. 354. Havendo capital e juros, o pagamento imputar-se-á primeiro nos juros vencidos, e depois no capital, salvo estipulação em contrário, ou se o credor passar a quitação por conta do capital.
9. Embora o direito tributário aceite a aplicação subsidiária por analogia de artigos do Código Civil, há jurisprudência sumulada de que o artigo 354 do CC não alcança às hipóteses de compensação tributária:
Súmula 464 - STJ. “A regra de imputação de pagamentos estabelecida no art. 354 do Código Civil não se aplica às hipóteses de compensação tributária.”
A súmula 464 do STJ.
10. Como exposto anteriormente, a súmula 464 do STJ veda o uso da regra de imputação de pagamentos estabelecida no art. 354 do Código Civil em hipóteses de compensação tributária.
11. Do voto da Ministra ELIANA CALMON proferido em um dos acórdãos que embasaram a edição da Súmula em apreço (Recurso Especial nº 987.943), colhe-se a seguinte fundamentação:
“Refletindo sobre o tema faço os seguintes destaques, respaldada na lei e na doutrina:
a) o artigo 170 do CTN dispõe que a lei pode, nas condições e sob as garantias que estipular, ou cuja estipulação em cada caso atribuir à autoridade administrativa, autorizar a compensação de créditos tributários com créditos líquidos e certos, vencidos ou vincendos, do sujeito passivo contra a Fazenda Pública;
b) a compensação tributária depende de regras próprias e específicas, não se aplicando as regras genéricas do Código Civil que, prioritariamente, destinam-se a regular as relações de Direito Privado; tanto é verdade que, anteriormente à Lei nº 8.383/91, o Código Civil já regulava o instituto da compensação (art. 1009 e seguintes do CC/16) e, no entanto, não era possível, com base na lei geral, pretender a compensação tributária;
c) se as leis tributárias não prevêem a forma de imputação do pagamento, não se pode aplicar analogicamente o art. 354 do CC/2002;
d) inexiste dispositivo no Código Tributário Nacional que determine a aplicação subsidiária do Código Civil;
e) o legislador ordinário, inicialmente, ao instituir o Novo Código Civil, fez inserir naquele diploma dispositivo específico determinando que a compensação das dívidas fiscais seria regida pelo disposto no Capítulo VII. Entretanto, tal norma foi revogada pela Lei 10.677, de 22.5.2003, logo após a entrada em vigor do CC/2002; e
f) inexiste lacuna legislativa in casu, mas silêncio eloquente do legislador que não quis aplicar à compensação de tributos indevidamente pagos as regras do Direito Privado.”
12. É salutar esclarecer que nesse precedente, como nos demais precedentes do STJ que desaguaram na edição da Súmula 464, cuidava-se de julgar pretensão de contribuinte, no sentido de que, na compensação tributária por ele buscada, quando o débito fazendário em seu favor fosse maior que o seu débito com a Fazenda – a dizer que esta restaria devedora da diferença remanescente –, dever-se-ia, na operação, imputar-se o valor do débito fazendário primeiramente aos juros devidos ao particular, na forma do multicitado artigo 354 do CC, o que seria mais benéfico para o credor.
13. Desta feita, conforme bem pontuado pela Ministra Calmon, na hipótese aventada de compensação com saldo credor a favor do contribuinte, se as leis tributárias não preveem a forma de imputação do pagamento, não se pode aplicar analogicamente o art. 354 do CC.
14. Cumpre observar que a imputação e a compensação tributárias são institutos diferenciados.
15. Nesse sentido, a compensação é um instituto decorrente de duas relações jurídicas diferentes, em que o credor de uma é o devedor de outra e vice-versa e, quando tratada como matéria de Direito Privado, na qual tem sua origem, apresenta profundas diferenças em relação à compensação no âmbito do Direito Público.
16. No tocante ao Direito Público, conforme ensinado por Paulo Roberto Barros: “sempre em homenagem ao princípio da indisponibilidade dos bens públicos, o CTN acolhe o instituto da compensação como forma extintiva, mas desde que haja lei que a autorize.”
17. A lei necessária para a efetivação da compensação tributária, nos termos do art. 170 do CTN, trará condições e garantias próprias, podendo autorizar a compensação de créditos tributários com créditos líquidos e certos, vencidos ou vincendos, do sujeito passivo contra a Fazenda Pública.
18. O art. 369 do CC, por seu turno, apresenta quatro requisitos necessários à compensação: a) reciprocidade das obrigações; b) liquidez das dívidas; c) exigibilidade das prestações; d) fungibilidade das coisas devidas.
19. Confrontando-se o art. 170 do CTN com o art. 369 do CC, apresenta-se a primeira diferença nas regras que valem para a compensação no âmbito privado e no âmbito do Direito Tributário. No âmbito do Direito Civil, as obrigações que se compensam são sempre vencidas, ao passo que no Direito Tributário pode ocorrer a compensação entre obrigações vencidas e vincendas.
208. Além disso, a compensação no Direito Civil normalmente é ex contracto, ao passo que no Direito Tributário ela é ex lege, ou seja, decorre do comando da lei.
21. Essas são apenas algumas das diferenças existentes no regramento desses dois institutos.
22. Assim, embora derive do conceito de compensação do Direito Civil, a compensação tributária é instituto próprio e diferenciado, modalidade expressa de extinção do crédito tributário, dotada de eficácia própria e fundamentada em Lei específica.
23. Noutro giro, a imputação em pagamento é a maneira como os débitos serão quitados. Sua definição no Código Civil importa uma relação jurídica de Direito Privado e, portanto, aplica-se apenas aos créditos civis.
24. Quanto aos créditos tributários, inseridos em uma relação jurídica de Direito Público (Direito Tributário) que se estabelece entre o Poder Público e os particulares, a súmula 464 é taxativa ao afirmar que a regra de imputação estabelecida no Código Civil não se aplica às hipóteses de compensação tributária.
25. Depreende-se do voto da Ministra Eliana Calmon que não haverá a aplicação subsidiaria do CC no tocante à imputação do pagamento em Direito Tributário posto que o CC rege o crédito privado.
26. A diferenciação, portanto, se faz pela natureza do crédito e não pelo instituto da imputação que, como explicado, é apenas a maneira de quitação dos débitos. Conclui-se que créditos privados serão regidos por regras do Direito Privado e créditos tributários por regras de Direito Público.
27. De todo o exposto, conclui-se que a vedação e a instrução trazida pela súmula 464 do STJ incide sobre o uso subsidiário do Código Civil no tocante a imputação de pagamento, não alcançando qualquer norma específica de matéria tributária que seja elaborada por ente político no uso de sua competência própria.