Princípios são normas jurídicas?

12/11/2020 às 17:33
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A normatividade dos princípios jurídicos parece que é um dogma no contexto do neoconstitucionalismo. Todavia, sua característica textual coloca em dúvida a capacidade do princípio de regular o comportamento humano dentro de uma sociedade complexa.

Princípios são realmente normas jurídicas? De início, deixo claro que a pretensão não é conclusiva, mas sim a exposição de uma ideia provisória, ou seja, uma espécie de “liminar acadêmica”.

Sabemos que a função do Direito é regular a sociedade, mediante a imposição de modelos de conduta aos seus destinatários. Portanto, a essência do direito é permitir que seus destinatários saibam, de antemão, qual a conduta modelo que os legitimados pela produção do direito desejam. Independentemente de quem seja esse legitimado (se Estado, se o povo, se o juiz), necessário se ter em mente que somente somos obrigados a fazer ou deixar de fazer alguma coisa caso saibamos, previamente, o que devemos fazer. Esta é a premissa adotada nessa reflexão, portanto, inerente a uma visão que coloca a segurança jurídica como valor maior do Direito.

Se você, leitor, concorda até aqui, pergunto: o que é uma norma jurídica?

Norma jurídica é a fonte de conhecimento dos destinatários do Direito sobre qual é o comportamento desejado pela autoridade competente. É a expectativa de conduta que o legitimado adotou em um enunciado normativo (adoto aqui a separação entre texto e norma). Se você, leitor, concorda com a premissa e com a conclusão do conceito de norma, pergunto: princípios são normas jurídicas? O modelo dominante é de que princípios são mandados de otimização que se realizam conforme as possibilidades fáticas e jurídicas (Alexy). Portanto, são normas que carecem de definitividade do comportamento prescrito, haja vista a necessidade de confrontação com outras normas possivelmente aplicáveis a um caso concreto. Pelo conceito, vê-se que a estrutura normativa dos princípios impossibilita que seus destinatários, pela simples perquirição do seu conteúdo, saibam, a priori, qual o comportamento necessário para moldar seu comportamento. Prova disso é que este conceito de princípio impõe que, no momento da aplicação e em caso de colisão de princípios, o aplicador crie uma outra norma jurídica, chamada de regra de precedência condicionada, que define em que circunstâncias (fáticas e jurídicas), por exemplo, o princípio P1 prevalece sobre o princípio P2. Esta nova norma jurídica criada para o caso deve, por questões de igualdade e segurança jurídica, ser aplicado aos casos semelhantes ao caso em que esta norma foi criada. Se o leitor concorda até aqui, pergunto: qual a natureza dessa norma jurídica?

Conforme também a teoria dominante, essa norma é uma regra, que tem a seguinte definição: são mandamentos definitivos, que são aplicados na exata medida da sua prescrição. Deixando de lado a hipótese de conflito entre regras (se válida ou inválida, salvo uma cláusula de exceção), veja que na própria estruturação das regras o modelo de conduta adotado é (ou mais facilmente) cognoscível, permitindo que seus destinatários saibam qual é o comportamento prescrito pela autoridade competente. Perceba: uma norma impõe razões provisórias, enquanto a outra impõe razões definitivas. Podemos afirmar que ambas impõem um comportamento prescrito? Me parece que não. Somente as regras garantem a previsibilidade do direito em relação aos seus destinatários. Pergunto: Por que qualificar como normativo um mandamento que não determina, de início, qual o comportamento prescrito? Pergunta mais complexa: pode o Direito impor, mediante enunciados prescritivos, SOMENTE valores a serem concretizados? Ou como quer o professor Ávila, uma norma pode ser SOMENTE imediatamente finalística, cuja adequação ao caso concreto necessita averiguar se a conduta escolhida para o caso fomenta os fins normativos?

Percebam com atenção: a conduta ajustável ao caso não está na norma, mas foi escolhida pelo aplicador como a conduta desejável pelo ordenamento jurídico. Respondendo aos questionamentos: como adotamos nessa reflexão o conceito de norma como uma expectativa de conduta prescrita pela autoridade competente, somente regras seriam normas jurídicas, portanto, fins podem ser exigidos via enunciados, porém não normatizados. Problematizando: o que seriam, então, esses enunciados positivados numa determinada Constituição que impõe a concretização gradual de determinados fins (ex: dignidade humana)? Tormentoso, pois seríamos obrigados a concluir que existem enunciados textuais que não são normas, mas são vinculantes, já que exigem do aplicador a adoção de um comportamento que se adeque aos fins e valores propostos no enunciado. Seriam, então, enunciados finalísticos que vinculam o aplicador para criar a norma jurídica para o caso concreto e, a posteriori, ser aplicável aos demais casos semelhantes? Podemos dizer que estes enunciados exigem que, caso a caso, os aplicadores criem uma espécie de sistemas de regras jurídicas, cujo objetivo maior é chegarmos a um elevado grau de prescrições de comportamento sobre os diversos casos da vida, promovendo, assim, um elevado grau de segurança e previsibilidade? Difícil responder a tais questionamentos. Na hipótese de afirmação positiva às perguntas, estes enunciados finalísticos funcionariam APENAS (portanto, destes enunciados, abstratamente, não se pode extrair uma norma jurídica) como critérios de validade jurídica para a posterior produção normativa.

Isso exige a transferência do foco para a decisão judicial, pois, é neste locus que a produção normativa encontra sua fonte. A produção da norma jurídica para o caso (ou como queria Alexy, a regra de precedência condicionada produto da colisão de princípios) necessitaria, para fins de racionalidade e controle de poder (ativismo judicial), de uma teoria da argumentação jurídica. Portanto, estaria aberta a discussão de valores, fins, justiça, política, interesses. A argumentação jurídica não seria a simples causa da subsunção da norma princípio ao caso concreto, mas sim uma justificação racional que daria legitimidade a criação da norma jurídica (ou regra de precedência) para o caso concreto, conforme os fins e valores buscados pela autoridade competente. Pragmaticamente, já não estaríamos fazendo isso? Julgando conforme valores? Chamar princípio de norma não seria apenas uma estratégia (ou um álibi) para conferir obrigatoriedade a valores, ao justo, ao bom, ao correto, tirando o ônus argumentativo do aplicador para criação de uma norma jurídica que contenha a expectativa de conduta desejada? Se sim, é justa a aplicação do direito tendo como premissa um valor sem o delineamento racional e criterioso do procedimento adotado para criação da verdadeira norma jurídica que julgará o caso e os demais casos semelhantes?

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Não. Um caso sob julgamento que tem a sua conclusão fundamentada no “princípio da dignidade da pessoa humana”, APENAS, me parece um arbítrio, pois impõe direitos e deveres aos destinatários sem definição do comportamento prescrito para o caso, que impõe um debate sobre as razões e contrarrazões porventura existentes no caso, com o agravamento de não sido criada a norma jurídica para posteriormente julgar um caso semelhante. É ínsito a ordem jurídica que seus destinatários sejam tratados da mesma forma pelo Direito. Esta premissa é frequentemente desconsiderada pelos aplicadores (e criadores da norma jurídica do caso), pois conferem legitimidade a decisão judicial apenas invocando uma “norma jurídica” que apenas enuncia valores, sem levar em consideração “outros valores normativos” que acabam incidindo no caso, realizando um verdadeiro decisionismo.

Um detalhe: sabemos dos problemas da linguagem e, portanto, mesmo que tratássemos apenas as regras como normas jurídicas, o problema do déficit de prescrição do comportamento desejável ainda existiria.

Como são ideias introdutórias, há muitas dúvidas. Portanto, a provisoriedade das ideias está aberta para objeções.

Sobre o autor
Renato Nascimento Lessa

Advogado OAB BA n° 40.539. Área de atuação: Cível e Consumidor. Graduado pela Universidade Católica do Salvador. Pós- graduado em Direito Processual Civil pela Universidade Anhanguera/LFG, coordenação do professor Fredie Didier. Aprovado e empossado nas funções de conciliador e juiz leigo, tendo exercido tais atividades entre 2015 e 2017. Telefone: (71) 992838762 (wapp)

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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