INTRODUÇÃO
Com a evolução das Constituições ao longo da história, um dos componentes mais alterados foi a presença da religião na política, indo desde uma total separação, até a fase em que era impossível distingui-las.
A República Federativa do Brasil consagra a laicidade estatal, ou seja, supostamente, o estado não está ligado a nenhuma religião específica, respeitando, sempre, todas de forma igual.
Porém, na prática, observa-se, em diversas situações, que esta não é a realidade, uma vez que, corriqueiramente, são observadas situações de total intolerância para com determinadas religiões, atos esses praticados tanto por civis, quanto entes ligados ao Estado.
Assim, o presente trabalho tem como finalidade a análise da intolerância religiosa em um Estado que se diz laico, apresentando-se, assim, a evolução tanto do organismo estatal quanto da religião, questionando a veracidade da laicidade estatal, através do estudo de casos concretos.
Trata-se de pesquisa qualitativa, baseada em revisão bibliográfica, com o estudo de doutrinas, jurisprudênciais, bem como a análise de alguns casos concretos.
1. DA EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO ESTADO E A SUA FORMAÇÃO
Com o início da ideia de Estado, temos por primeira fase de sua evolução o chamado Estado antigo, o qual inclui ao mesmo tempo, tanto os aspectos humanos quanto os elementos divinos.
Nessa fase, temos a presença da chamada Teoria do Direito Divino Sobrenatural, que acredita na fundação do Estado por Deus, através de um ato concreto de sua vontade e que o rei, também ocupando o papel de sumo sacerdote, era o representante direto de Deus na ordem temporal, bem como o governante do povo.
Desta forma, o Estado Antigo configura um Estado Teocrático, ou seja, um Estado ligado diretamente à religião.
Segundo Jorge Miranda, o Estado Antigo, chamado por ele de Estado Oriental, apresenta algumas características:
“Como traços mais marcantes do Estado do médio Oriente apontem-se: Teocracia, ou seja, poder político reconduzido ao poder religioso; forma monárquica combinada com a teocracia, porquanto o monarca é adorado como um deus); ordem desigualitária, hierárquica e hierática da sociedade; reduzidas garantias jurídicas dos indivíduos (o que, todavia, não significa necessariamente que eles ou que todos eles sejam degradados a meros objetos sem quaisquer direitos); larga extensão territorial e aspiração a constituir um império universal (MIRANDA, 2005, p. 25).
Como exemplo de Estados que definiram o Estado Antigo temos: o Estado Egípcio, o Estado Hindu, o Estado Hebraico, entre outros. E em grande parte deles, como exemplo o Estado Egípcio, os imperadores eram realmente tratados como deuses, imortais e intocáveis.
Assim, observa-se que uma grande concentração de poderes se assentava nas mãos do imperador, sendo este poder mais absoluto ainda, quando os poderes políticos e teocráticos coincidiam (DALLARI, 2006, p. 62).
A segunda fase da evolução histórica do Estado, configura-se com o chamado Estado Grego.
Sabe-se que a Grécia, na antiguidade clássica, era definida como a originadora da cultura humana, tendo em vista seu grande desenvolvimento artístico (como esculturas, música, pintura, moda) e intelectual (estudos variados com enfoque na filosofia).
O território Grego é formado por montanhas, vales isolados e uma península cercada de inúmeras ilhas, assim, tendo por base tal geografia o Estado Grego não era unitário, mas sim um conjunto de cidades independentes. Assim, por não haver uma unidade política na Grécia Antiga, não existia de fato, um Estado Grego.
Vale lembrar que cada cidade tinha sua própria identidade e sua própria forma de governo, como por exemplo, a cidade de Esparta exercia a aristocracia, enquanto que a cidade de Atenas exercia a democracia.
Porém uma importante semelhança entre as cidades-estados gregas era, que em nenhuma delas, havia a ligação entre o governante e uma divindade, ou seja, não existia a figura do líder enviado por Deus. Na pólis o poder era limitado pela vontade do povo.
No que tange ao Estado Romano[1], esse tem sua origem descrita por um mito. Segundo a lenda Rômulo e Remo, dois irmãos gêmeos, quando bebês estavam a ponto de se afogar no rio Tibre, porém foram salvos por uma loba, que amamentou e cuidou de ambos. As crianças cresceram, dando início ao Império Romano. Alguns anos depois Rômulo mata Remo e se torna o primeiro rei de Roma, fundando-a, após pedir ajuda divina e ser agraciado com o local, na região do Palatino.
Faz-se importante mencionar que o ato da real fundação de Roma foi religioso, já que o mesmo seguiu a indicação dos deuses. Vê-se que, de acordo com a lenda, o terreno onde a cidade havia sido fundada situava-se numa zona pantanosa das sete colinas, e por um ato sagrado secaram-se os pântanos, o solo se tornou fértil, e assim o terreno se transformou e se tornou propício para que as pessoas se estabelecessem.
O Império Romano perdurou até o século V da era cristã, encontrando seu fim com as invasões dos povos bárbaros, dando fim à Idade Antiga, e, assim, iniciando a Idade Média.
É chamado de Idade Média o período que perdurou entre a queda do Império Romano do Ocidente em 476 e a tomada de Constantinopla pelos turco-otomanos em 1453, tempo no qual o Estado Medieval nasceu, trazendo também a Igreja Romana.
Sahid Maluf[2], a respeito desse período, diz que “toda a história da Idade Média gira em torno das relações entre o Estado e a Igreja Romana”.
Durante a Idade Média, Estado e Religião não eram mais totalmente unificados, e tal mudança se deve a Jesus Cristo, que ensinou que seu reino não pertencia a este mundo.
Com o tempo, o absolutismo monárquico encontrou seu fim, configurando-se como um elemento de transição para o Estado moderno, sendo sucedido pelo período do Renascimento.
O Renascimento foi um período marcado pelo movimento intelectual, um período no qual os homens não se entregavam aos dogmas, mas os contestavam, rompendo o ensinamento medieval proporcionado pela igreja e aflorando novas ideias e atitudes que levaram ao início do Estado Moderno.
A sociedade Europeia, com grande influência do renascimento, começou a adotar uma visão humanizada do universo, não mais colocando a religião em primeiro lugar, fazendo com que a ideia principal de que “o poder vem de Deus” fosse substituída pela de que “o poder vem dos homens”[3].
Portanto, a origem do Estado Moderno se deve à laicidade do poder e à criação da unidade chamada de nação.
2. DA RELAÇÃO ENTRE HISTÓRIA E RELIGIÃO
2.1 A evolução histórica da religião na política
A palavra religião vem do latim religare, que significa ligar de novo, sendo muito difícil conceituá-la, uma vez que esta é, na maior parte das vezes, definida de forma com que favoreça crença seguida por um, desfavorecendo aquelas seguidas pelos demais.
Desde o início da sociedade humana, a religião acompanha o cotidiano das civilizações e sua forma organizacional, evoluindo progressivamente e, assim, adentrando o sistema estatal como forma de poder e soberania.
Com enfoque no cristianismo, observa-se que os fatos que o fundaram ocorreram durante o Império Romano, nos últimos séculos da anteriormente citada, Idade Antiga. Surgindo a partir da doutrina dos homens que seguiram a Jesus Cristo.
O cristianismo de inicio se propagou através dos apóstolos de Jesus, que repassavam seus ensinamentos em Roma e na Europa, dando assim início ao primeiro século da era cristã.
Essa religião trouxe consigo ares de uma possibilidade de revolução temida pelos dominantes, ao ponto de que, aqueles que o pregavam passaram a ser perseguidos e exterminados de forma intolerante, uma vez que, segundo a doutrina cristã, inexistia qualquer outra forma de adoração senão a Deus, o que provocava a ira de imperadores e reis que se definiam como divinos.
É visto que durante séculos os cristãos foram perseguidos pelos romanos, que lhes imputavam a culpa de fatos que não se relacionavam a eles e até mesmo os torturavam publicamente, atos hediondos estes que decorriam do temor de Roma pelo ideal cristão, uma vez que este não concordava com a adoração ao imperador como deus vivo e pregava a igualdade entre os homens, porém, mesmo diante de tamanha represália o cristianismo continuou a se propagar, conseguindo cada vez mais adeptos.
Os romanos então desistiram da ideia de perseguição, iniciando um ato de aproximação do cristianismo, o que nos apresenta uma situação fática do ditado: “se não pode contra eles, junte-se a eles”.
Dessa forma, no ano 313, o imperador romano Constantino converteu-se ao cristianismo, permitindo o culto da religião por todo o império.
Já no ano de 393, a história foi completamente invertida, uma vez que o cristianismo não se tornou apenas a religião oficial de Roma, como passou a perseguir toda e qualquer outra religião pagã, se tornando, através de manobra política na qual se uniu ao sistema governamental, uma força de manipulação, coação e extorsão.
Assim, o cristianismo inicia seu período negro, passando de uma crença de abnegação pela fé, motivada pelo amor incondicional para uma ideia opressiva, tirânica e violenta, na qual qualquer oposição era vista como heresia.
Tal período perdurou até a reforma protestante, uma vez que, sendo visto como “corrompido”, o cristianismo foi alvo do pensamento racionalista. O racionalismo iniciou uma visão apurada do verdadeiro e do falso, e assim, com a reforma protestante, o mundo cristão foi dividido.
Com a chegada do iluminismo e o renascentismo, tendo por base as novas ideias e formas de pensamento, ocorreram diversas revoluções que trouxeram nos ideias à sociedade, iniciando direitos individuais e coletivos, e desvinculando o Estado da Igreja através de uma nova forma de governo. A sociedade começou a limitar o poder estatal através de um conjunto de normas, dando origem à “Constituição”.
Neste mesmo momento ocorre a Revolução Francesa, revolução esta que inaugurou um “novo mundo”, uma vez que retirou os privilégios referentes a monarquia e nobreza e promulgou a Declaração dos Direitos do homem e do Cidadão, se baseando no pensamento de igualdade, liberdade e fraternidade.
Com a nova modalidade político-constitucional, testemunha-se a ruptura entre o Estado e a Igreja, uma vez que esta perde seu prestigio, não mantendo, assim, sua coerção social junto ao sistema governamental.
O chamado Estado Laico então, surge por uma necessidade indispensável, visando o desenvolvimento em uma liberdade pacífica de diversas sociedades, ideologias e crenças. Dessa forma o poder deixa de ser legitimado pelo sagrado, e passa a ser legitimado pela constituição.
Segundo a regra constitucional, além da separação entre Estado e Igreja, adota-se por princípio a neutralidade do Estado em questões de cunho religioso, não sendo permitido que este atrapalhe o funcionamento de alguma religião, ou mantenha relações de dependência ou aliança com um representante religioso, salvo na forma da lei, a colaboração de interesse público. Sendo visto ainda que é defendido que o Estado deveria se abster de toda e qualquer forma religiosa, seja materializada em símbolos, seja na criação de feriados para a adoração de entidades pertencentes a uma religião especifica ou, um caso mais corriqueiro, a aplicação do ensino religioso em escolas públicas, uma vez que tal ato é visto como meio de violar a consciência e a ideologia do aluno.
Assim, verifica-se que, mesmo com previsão constitucional, a laicidade estatal não é exercida como um todo, mostrando-se necessária atitude estatal para garantir o direito fundamental, que caso não cumprido, deveria ser fiscalizado e exigido pelo Supremo Tribunal Federal.
2.2 Das relações entre religião e o Estado Brasileiro
2.2.1 Do Período Colonial
A união entre a coroa portuguesa e a Igreja Católica Apostólica Romana é o que marcou o período colonial brasileiro, uma vez que, com tal união, os reis portugueses possuíam o direito de nomear autoridades eclesiásticas, demonstrando certo controle sobre a Igreja Católica.
Dentre os diversos fatos decorrentes da reforma protestante no século XVI, vale salientar a vinda dos jesuítas ao Brasil, fato este decorrente da diminuição de fiéis que a Igreja Católica estava sofrendo na Europa, vez que, viu-se na descoberta de novas terras a possibilidade de ganho de novos membros.
Dessa forma deu-se a união entre a coroa portuguesa, que tinha o intuito de colonizar, e a igreja católica, tendo esta, por sua vez, o intuído de desempenhar sua função de salvar almas convertendo as pessoas ao catolicismo.
Os jesuítas então atuavam tanto na missão de catequizar os indígenas, como na função de educar os filhos da elite rural e dos funcionários do governo, motivo pelo qual criaram colégios nas províncias e detinham o controle da educação colonial.
Após um longo período de monopólio da educação pelos jesuítas, ocorreu a expulsão dos mesmos em 1759, ordem dada pelo iluminista marquês de Pombal, primeiro-ministro do rei de Portugal D. José I. Porém, tal fato não alterou a situação religiosa, uma vez que o catolicismo continuou a ser a religião oficial do Estado, não permitindo qualquer outra crença, demonstrando assim, enorme intolerância religiosa.
Uma das primeiras referências sobre liberdade religiosa no Brasil veio com a assinatura de um tratado de Comércio e Navegação com a Inglaterra no ano de 1810, tratado este que previa direitos e deveres bilaterais entre portugueses e ingleses.
2.2.2 Do Período Monárquico
Observado o período colonial, a proclamação da independência do Brasil no ano de 1822 não alterou de forma considerável a questão religiosa. Uma vez que a Constituição imperial de 1824 ainda apresentava um liame forte entre Estado e Religião, na qual a Igreja Católica Apostólica Romana se encontrava como religião oficial do Império.
Com o texto da Constituição imperial de 1824 é clara a ideia de que, mesmo defendendo a tolerância religiosa, o cidadão brasileiro que adotasse na época religião distinta do cristianismo sofreria discriminação, isto pois a religião tratava, tanto de requisito para ocupar vagas de poder público, como requisito para garantir determinados direitos.
2.2.3 Da Proclamação da República:
A questão religiosa no Estado Brasileiro teve um fator decisivo no ano de 1889 com a Proclamação da República, mudança ocorrida pela vontade dos republicanos de se desvencilhar de práticas comuns do período imperial.
Assim, com o decreto nº 119-A de 1890, alterou-se a relação entre Religião e Estado, fazendo com que o Estado Brasileiro deixasse de ser um Estado confessional e se tornasse um Estado Laico. O citado decreto proibiu a intervenção do Estado em matéria religiosa, resguardando a liberdade religiosa.
A ideia resguardada pelo referido decreto foi confirmada pela primeira Constituição republicana, que influenciada pelo positivismo e racionalismo consagrou o Estado laico e determinou em seu artigo 11 que: É vedado aos Estados, como a União: (...) estabelecer, subvencionar ou embaraçar o exercício de cultos religiosos. ”
2.2.4 A Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1934
Com o advento da Constituição de 1934, manteve-se a ideia de Estado laico, porém mostrou maior abertura a atuação das igrejas. Naquele momento o casamento religioso passou a produzir os mesmos efeitos do casamento civil, passou a ser permitida a existência de cemitérios particulares administrados por órgãos religiosos, e a assistência religiosa ao Estado, desde que solicitada.
Uma das maiores e mais consideráveis alterações foi o estabelecimento do ensino religioso em escolas públicas, que era realizado facultativamente de acordo com a confissão religiosa do aluno, requisito este que não era seguido devido ao preconceito religioso que ainda se mantinha na época com religiões distintas do cristianismo.
Assim, a Constituição de 1934 manteve a laicidade, porém, diferente da Constituição de 1891, não afastava por completo a religião do Estado.
2.2.5 A Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1937
Outorgada pelo presidente Getúlio Vargas, a Constituição de 1937 previu a possibilidade restrição à liberdade religiosa decorrente da questão de ordem e dos bons costumes, uma vez que esta poderia servir como instrumento jurídico para a limitação de determinada religião.
Observa-se que, até então, a Constituição de 1891 e a Constituição de 1934 foram as únicas que não buscaram a proteção de Deus em seus textos, uma vez que o desligamento entre Estado e Religião na Constituição de 1937 se deu pela influência fascista presente na época.
Essa constituição não tinha por base a liberdade de consciência, e por tal motivo, a liberdade de religião era limitada, ou seja, não era resguardada em todos os seus aspectos. No geral o texto não tratava de matérias referentes à liberdade religiosa no geral, em comparação com a legislação anterior, deixou de dispor sobre assistência religiosa ou ao casamento religioso.
2.2.6. A Constituição Da República Dos Estados Unidos Do Brasil De 1946
Promulgada por uma Assembleia Constituinte, a Constituição de 1946 nasceu de uma redemocratização do país, apresentando diversos avanços no tocante a relação entre Estado e religião, nos quais o Estado laico foi reafirmado, e a liberdade religiosa foi mantida, embora ainda fosse reafirmada a ligação entre a religião e a ordem pública e bons costumes.
No tocante ao ensino religioso, o mesmo se manteve facultativo, mas era obrigatório o seu oferecimento nas unidades de ensino públicas.
Tal Constituição tentou conciliar o Estado Liberal com a ideia de justiça liberal, visando assim resguardar a democracia.
2.2.7 A Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1967
Elaborada sob o regime militar que tomou o poder no ano de 1964, a Constituição de 1967 manteve, no geral, a mesma ideia quanto à liberdade religiosa, ou seja, ainda na ideia quanto à ordem pública e aos bons costumes.
Durante a ditadura militar, a Constituição tinha sua força normativa reduzida, uma vez que era ignorada por aqueles que deviam mantê-la em funcionamento.
É de conhecimento geral o fato de que, durante o período militar, não houve qualquer liberdade de consciência, assim, no tocante ao direito da liberdade de religião, caso se esboçasse no culto ou crença, determinado ideal de justiça social, o autor estaria sujeito a detenções arbitrárias.
2.2.8 A Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1988
A Constituição de 1988 foi criada com influências das experiências republicanas anteriores do Brasil, da Constituição de Portugal de 1976, da Constituição da Espanha de 1978, da Constituição da França de 1985, dentre outras.
O objetivo no panorama constitucional internacional na época era o fortalecimento dos direitos fundamentais, assim como o planejamento econômico e social, fato que fez com que a Constituição de 1988 fosse conhecida como a Constituição Cidadã.
Em seu artigo 5º, nos incisos VI, VII e VIII, a Constituição reconhece o direito a liberdade de religião como direito fundamental, defendendo tanto a liberdade de crença, quanto a garantia do libre exercício de cultos e liturgias.
O principal ponto a ser analisado é a adoção do Estado Laico, reafirmado no inciso I do artigo 19 do texto constitucional:
É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:I-estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná‑los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público.
A única exceção a proibição de aliança ou dependência do Estado para com a religião é a colaboração de interesse público.
Assim, como visto, a liberdade de religião no Brasil iniciou-se de forma restrita, uma vez que o Estado, inicialmente, adotava a religião católica como oficial, e após a primeira República foi instaurado o Estado Laico, que permanece, em teoria, até os dias atuais.
2.2.9 A Religião na Atualidade
A base ideológica do regime de liberdade de religião e do direito fundamental é a laicidade do Estado brasileiro determinada pela Constituição Federal de 1988.
No atual momento, analisando a relação entre religião e Estado, é percebido que não se possui o real entendimento sobre o grau de laicismo do Estado brasileiro, ou até onde vai o limite da colaboração defendida pela Constituição.
A força social, moral e até política que a religião predominante continua a representar na sociedade, é o que enseja esse desentendimento a respeito da laicidade.
Com base em dados coletados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)[4], em 2010, o número de seguidores da Religião Católica Apostólica Romana, contava com 64,6% da população, enquanto os Protestantes representavam 22,1%, Espiritas representavam 2%, outras religiões, como o Judaísmo, o Hinduísmo, o Islamismo, a Umbanda e o Candomblé representavam 0,5% da população, e aqueles sem religião representam 8%. Com os dados obtidos é facilmente perceptível a superioridade de seguidores de determinadas religiões em relação as outras.
3 DA LAICIDADE ESTATAL E A INTOLERÂNCIA RELIGIOSA
3.1 Noções Introdutórias acerca da Laicidade Estatal
A laicidade estatal passa a existir quando se observa uma nítida distinção entre o Estado e a Religião, não havendo assim, a influência da religião na forma de governo, ideal este resguardado pela Constituição Federal de 1988.
A importância da laicidade estatal é defendida pela ideia de que a imposição de um grupo representaria restrição as demais crenças e pessoas, caracterizando um tipo de tirania societária. Assim, adotando a mesma na configuração do Estado, garante-se uma maior igualdade dentre aqueles que o compõe.
3.2 Da Intolerância Religiosa
Rainer Forst[5], filósofo, político e professor alemão leciona que o conceito de tolerância depende da pessoa que o apresenta, uma vez que este caracteriza no discurso político contemporâneo um papel central, de forma que, aquele que o define, sempre tenta modelar a própria posição como tolerante e as outras como intolerantes.
Em sua concepção, Forst determina que a tolerância constitui um conceito normativamente dependente, ou seja, visando ter determinado conteúdo, carece de recursos normativos adicionais que não sejam dependentes. Assim, a tolerância trata de uma atitude requerida por outros valores e princípios.
Os limites da tolerância, ainda segundo o pensamento de Rainer Forst, são atingidos apenas quando um grupo tenta se sobrepor a outro, estabelecendo que as percepções destes não se encaixam na norma geral, de tal forma, é visto que só haverá tolerância onde a mesma seja praticada de modo voluntário, não sendo resultado de algum tipo de coação.
Assim, enquanto a tolerância trata de uma demanda por justiça, a intolerância, por sua vez, trata de uma forma específica de injustiça, na qual um indivíduo ou um grupo de indivíduos impõe ilegitimamente sua visão á outro grupo.
Por sua vez, a intolerância religiosa ocorre quando indivíduos que seguem uma determinada crença impõe seu pensamento sobre outros, determinando que qualquer crença que venha a divergir daquela, é incorreta.
3.3 Dos Casos de Intolerância Religiosa no Brasil
Mesmo com a designação de Estado Laico, e a garantia de liberdade religiosa realizada pela Constituição de 1988, frequentemente são observadas situações de extrema intolerância religiosa, dotadas de preconceito, desrespeito e até mesmo violência, em especial contra as religiões de origem africana, porém se estendendo até mesmo aqueles que não possuem religião alguma.
Assim, é importante observar alguns episódios nos quais a liberdade religiosa e o Estado Laico foram totalmente ignorados.
O primeiro caso a ser apresentado ocorreu no dia 12 de outubro de 1995, um dia reservado como feriado nacional em homenagem a Nossa Senhora Aparecida, definida como a Padroeira do Brasil. No episódio o Bispo da Igreja Universal do Reino de Deus, Sérgio von Helder, tomou atos agressivos contra uma imagem da citada santa durante o programa religioso ministrado por ele “O Despertar da Fé”, no qual em meio a um “protesto” contra o caráter do feriado, o bispo, criticando a Igreja Católica e acusando a mesma de lucrar com a adoração de santos, desferiu chutes contra a imagem da santa, afirmando que se tratava apenas de um “pedaço de gesso”. Tal fato foi amplamente criticado tanto pela mídia quanto por líderes religiosos, o que levou a condenação do bispo por discriminação e vilipêndio a imagem, sendo essa a primeira condenação por descriminação religiosa no Brasil.
Temos também o caso que envolveu a conhecida como Mãe Gilda de Ogum, no qual, em 1992, a revista Veja publicou uma matéria na qual era apresentada uma foto de Mãe Gilda, vestida com os trajes específicos da religião e possuindo uma oferenda. Acontece que, utilizando da mesma fotografia, sem a devida permissão, a Igreja Universal do Reino de Deus, em 1999, realizou uma matéria no jornal Folha Universal a respeito de charlatanismo, com o título “Macumbeiros charlatões lesam o bolso e a vida dos clientes”, afirmando ainda, no texto da matéria, que o Brasil enfrentava o crescimento de um “mercado de enganação”.
Mãe Gilda, que já se encontrava com sua saúde fragilizada, teve o estado piorado, vindo a falecer em 2000, falecimento este que se deu no dia seguinte ao qual esta assinou a procuração que constituía a seus advogados o poder de defenderem na justiça seu desejo por reparação, vez que a mesma, por conta da matéria, sofria ameaças e atos agressivos, decorrentes da intolerância religiosa.
Após o ocorrido, o Governo Federal promulgou a Lei nº 11.635/07, que instituía o dia 21 de janeiro como o Dia Nacional do Combate à Intolerância Religiosa.
Por fim, é de suma importância lembrar um episódio ocorrido em 2015, no qual Kailane, que na data contava com 11 anos de idade, levou uma pedrada ao sair de um terreiro de candomblé, fato este que, como relatado tanto pela vítima, quanto pelos presentes, teve como autores dois homens portando bíblias que prosseguiram o ato insultando incessantemente as pessoas que saiam do terreiro.
Devido a grande mobilização pelo caso de Kailane, foi inciado um debate mais aprofundado pelos representantes do Estado e entidades religiosas que se solidarizaram com o mesmo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do tema analisado, conclui-se que a religião, desde o primado da sociedade, tem estado presente em diversos aspectos estatais, sendo configurada como fator primordial, em sociedades sem o mínimo de consideração ao que diz respeito à direitos humanos.
Assim, a intolerância religiosa, sendo o conjunto de ideologias e atitudes ofensivas a crenças e práticas religiosas, não constitui um fenômeno recente, uma vez que são notados episódios da mesma a centenas de anos, como a perseguição romana aos cristãos, ou a era negra do catolicismo.
A religião se mostra tema de suma importância a ser discutido e examinado de forma coerente, uma vez que constitui um dos aspectos centrais na cultura da nação brasileira, com enfoque em questões como diversidade, liberdade religiosa, crença e principalmente tolerância, vista o fato dos direitos constitucionalmente resguardados.
É visto ainda que, mesmo o Estado brasileiro adotando a configuração de Estado Laico, sendo este um formato no qual o Estado se desvincula por completo da religião, é nítida a falta de entendimento a respeito do mesmo, uma vez que frequentemente observa-se a supremacia forçada de determinadas religiões sobre outras, como exemplo símbolos cristãos em órgãos públicos, ou até mesmo o ensino religioso obrigatório em determinadas escolas, de forma que uma religião em específico é apresentada como correta desde o início da educação infantil.
Um dos fatores mais perceptíveis e mais corriqueiros é o preconceito religioso, sendo a prática do mesmo percebida até mesmo por representantes Estaduais.
Foram apresentados episódios de extrema intolerância religiosa, sendo estes apenas uma mísera fração da totalidade de atos similares que ocorrem no território brasileiro, de tal forma, mesmo com diversos documentos ou tratados internacionais, que resguardam os direitos humanos, incluindo o direito de liberdade religiosa, é visto que inexiste eficácia nos mesmos.
Tem-se em vista que é necessária a ação Estatal para encontrar meios mais eficazes de amparar os cidadãos que sofrem e impedir que outros venham a sofrer atos discriminatórios por seguir ou deixar de seguir determinada crença, realizando uma maior fiscalização a respeito da laicidade estatal, revisando a parte criminal de tais atos e criando um meio de conscientização populacional eficaz, visando assim alcançar a verdadeira igualdade social resguardada pela Constituição Federal.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.
MIRANDA, Jorge. Teoria do estado e da constituição. Tradução da edição portuguesa. Rio de Janeiro: Forense, 2005
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2006
SCALQUETTE, Rodrigo Arnoni. História do Direito
PUGLIESI, Márcio. Algumas considerações sobre o processo histórico da formação da burguesia. In: GONZAGA, Alvaro de Azevedo; GONÇALVES, Antonio Baptista (Coord.). (Re)pensando o direito: estudos em homenagem ao Prof. Cláudio De Cicco. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010
CARNEIRO, Paulo Luiz. Jornal O Globo. Online, 09 de outubro de 2015. Disponível em: https://acervo.oglobo.globo.com/em-destaque/chute-na-imagem-da-padroeirado-brasil-choca-pais-e-reprovado-por-religiosos-1-17738478#ixzz5GkbKmYOM.
FILHO, José Bittencourt. Matriz religiosa brasileira: religiosidade e mudança social. Petrópolis, RJ: Vozes: Petrópolis; Rio de Janeiro: Koinonia, 2003.
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Disponível em: <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010133002009000200002&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 05 de novembro de 2017.
REIMER, Haroldo. Liberdade Religiosa na História e nas Constituições do Brasil. São Leopoldo: Oikos, 2013.
[1] KLABIN, Aracy Augusta Leme. História geral do direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 188.
[2] MALUF, Sahid. Teoria Geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 2019.
[3] MALUF, Sahid. Teoria Geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 2019.
[4] IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Número de seguidores de religiões. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/. Acesso em: 10/09/20.
[5] FORST, Rainer. Os limites da tolerância. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-33002009000200002. Acesso em:02/10/20.