A venda em fatias das empresas estatais

16/11/2020 às 12:52
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Busca-se prescrutar quando a alienação de empresas estatais, bem como suas subsidiárias, podem ser realizadas e qual o requisito para tanto. Vale-se da Reclamação STF n º 42576 para enfrentar o tema.

Preceitua o inciso XIX do art. 37 da Constituição Federal – CF, com redação dada pela Emenda Constitucional n 19, de 1998, que somente por lei específica é autorizada a instituição de empresa pública ou de sociedade de economia mista, as denominadas empresas estatais. Continua a Lei Maior, no inciso XX, que depende de autorização legislativa, em cada caso, a criação de subsidiárias.

Da leitura dos dispositivos constitucionais acima citados, em sentido inverso, extrai-se que a alienação, seja da empresa estatal ou das suas subsidiárias, demanda manifestação legislativa.

Isso porque a exploração direta de atividade econômica pelo Estado visa atender questões relevantes, envolvendo “imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo”, conforme se observa do caput do art. 173 da CF.

É, pois, à primeira vista, questão de comezinha hermenêutica constitucional, que não demanda maiores elucubrações ou debates a respeito.

Inobstante, nada em Direto é fácil, posto que nem sempre prevalece, na doutrina ou na jurisprudência, a melhor técnica interpretativa, com influxos, por vezes, de interesses políticos dos mais diversos.

Na reclamação nº 42576, prevaleceu no Supremo Tribunal Federal o entendimento de que “a específica autorização legislativa somente é obrigatória na hipótese de alienação do controle acionário de sociedade de economia mista (empresa-mãe). Não há necessidade dessa prévia e específica anuência para a criação e posterior alienação de ativos da empresa subsidiária, dentro de um elaborado plano de gestão de desinvestimento, voltado para garantir maiores investimentos e, consequentemente, maior eficiência e eficácia da empresa-mãe”[1].

A reclamação acima foi motivada, segundo consta, pois, determinada empresa estatal estava a criar várias subsidiárias, de fatias das suas unidades produtivas, para viabilizar a venda mais simplificada, sem passar pela autorização legislativa demandada pela Constituição Federal. Estaria, assim, sendo realizada a privatização de parcelas da estatal, mediante manobra societária ou por meio de parcerias.

Ora, é sabido que toda empresa tem suas receitas e sobrevivência atrelada a suas unidades produtivas, aos seus fatores de produção. Se a empresa principal é fatiada em diversas unidades produtivas, ao argumento de se tratar de parcerias ou novas empresas do conglomerado, subsidiárias, e repassadas para a iniciativa privada sem manifestação do legislativo, estar-se-á, inegavelmente, levando a estatal a sua inviabilidade de manutenção.

Se se vende as parcelas produtivas de maior retorno econômico, sob o etéreo e falacioso argumento de que a estatal estará se tornando mais eficiente e eficaz, a estatal tornar-se-á, em verdade, deficitária, como ocorreria com qualquer empresa. Caso se crie subsidiárias e posteriormente venda todos os ativos da estatal, que são responsáveis, no final das contas, pelo seu lucro, por corolário lógico, só restará o passivo.

Veja que só com passivos, sem as receitas das suas unidades produtivas, a empresa começa a gerar prejuízos consecutivos, o que afasta o argumento da maior eficiência.

À guisa de exemplo, vejamos o objeto social da Petrobrás:

Art. 3º- A Companhia tem como objeto a pesquisa, a lavra, a refinação, o processamento, o comércio e o transporte de petróleo proveniente de poço, de xisto ou de outras rochas, de seus derivados, de gás natural e de outros hidrocarbonetos fluidos, além das atividades vinculadas à energia, podendo promover a pesquisa, o desenvolvimento, a produção, o transporte, a distribuição e a comercialização de todas as formas de energia, bem como quaisquer outras atividades correlatas ou afins.

Imagine separar, em diversas subsidiárias, “a pesquisa, a lavra, a refinação, o  processamento, o comércio e o transporte de petróleo” e seus derivados. Posteriormente, cada subsidiária seria alienada para iniciativa privada ao argumento de plano de desinvestimento em prol da eficiência. O que aconteceria com a estatal principal, a empresa-mãe, como chamada pelo STF? Perderia, por óbvio, em parcelas, o seu objeto social. E como se deve chamar isto? Certamente, privatização de estatal, ainda que com nome pomposo de desinvestimento.

Tal conduta, não parece compatível com a Constituição, eis que elaborar suposto plano de desinvestimento, nada mais é do que uma forma de privatização, sem manifestação prévia do Poder Legislativo.

Disso decorre até mesmo o princípio constitucional da separação de poderes. A Constituição, ao dividir as competências, delegou a tarefa de autorização de criação e extinção das empresas estatais e suas subsidiárias aos legisladores, terreno político em que existe maior diálogo público, com diversos agentes públicos deliberando sobre importante tema, inclusive com possibilidade de abertura para manifestação social, e não aos gestores da empresa estatal ou ao Poder Executivo.

Interpretação que leve a desconsiderar a necessidade de Lei padece, à evidência, de inconstitucionalidade.

Cabe ponderar que a empresa estatal pode e deve ter liberdade empresarial para organizar seus fatores de produção, para se tornar cada vez mais eficiente e produtiva para a sociedade, porém a alienação de parcelas relevantes da sua atividade econômica, a sua razão de existir, deixa transparecer uma verdadeira privatização oculta.

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No caso concreto tratado na mencionada reclamação, a Suprema Corte entendeu que não se verificou “desvio de finalidade ou fraude na criação de subsidiária, no sentido de “fatiar” a empresa-mãe, permitindo uma “oculta e parcial privatização” sem autorização legislativa, com somente a venda de seus ativos. Pelo contrário, (...) no legítimo e lícito exercício de sua discricionariedade de gestão administrativa, a (...) pretende realizar um plano de desinvestimento, buscando otimizar sua atuação e, consequentemente, garantir maior rentabilidade, eficiência e eficácia à empresa”.

Não parece a melhor solução. Se ocorre desinvestimento, venda de ativos trocando em miúdos, haverá redução da estatal, do seu conglomerado, responsável pelo resultado final da empresa o que, por consequência, é prudente, por comando constitucional, que o Poder Legislativo se manifeste.

Não ocorreu, portanto, uma implícita autorização para que o Poder Executivo faça gestão empresarial da estatal por meio da venda de seus ativos como melhor lhe aprouver. Cabe ao legislativo assim explicitamente deliberar, acerca do conglomerado como um todo da empresa estatal, se assim for decidido pela maioria dos parlamentares.

Em suma, em que pese o entendimento esposado pelo STF na reclamação nº 42576, a Constituição Federal não deixa margem a dúvidas como se deve tratar eventual plano de desinvestimento, qual seja, mediante deliberação legislativa.

A propósito, com objetivo de afastar a interpretação dada pelo STF, tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 4806/20 que determina que a autorização legislativa para criação de subsidiária de estatal não abrange permissão para posterior privatização da empresa[2]. Caso seja aprovado, salutar disciplinamento deixará explícito, em harmonia com a Constituição, que a venda, seja da empresa estatal como de suas subsidiárias, carece de prévia e específica manifestação legislativa.


[1] Informativo STF nº 993.

[2] https://www.camara.leg.br/noticias/697882-proposta-limita-privatizacao-de-empresa-subsidiaria-de-estatal/

Sobre o autor
Alexandre Santos Sampaio

Advogado. Mestre em Direito pela Uniceub - Centro Universitário de Brasília. Especialista em Direito Público pela Associação Educacional Unyahna. Especialista em Direito Civil pela Universidade Federal da Bahia. Bacharel em Direito pela Universidade Católica do Salvador. Bacharel em Administração pela Universidade do Estado da Bahia.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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