MARCEL CONCHE E O PRINCÍPIO DIGNIDADE HUMANA

18/11/2020 às 15:30
Leia nesta página:

o texto apresenta o entendimento do filósofo Marcel Conche acerca do princípio da dignidade da pessoa humana

                               

 

   O princípio da dignidade da pessoa humana está expresso na Constituição Federal [arts. 1º, III, e 170], sendo considerado como o princípio supremo da hierarquia das normas, nas palavras de Paulo Bonavides[1], sendo não menos certo que, desde logo caso é salientar o entendimento de Ingo W. Sarlet no que diz com importante tema. Assevera pois que o princípio da dignidade da pessoa humana – como, de resto, os demais princípios fundamentais insculpidos em nossa Carta magna – acaba por servir de referencial inarredável no âmbito da indispensável hierarquização axiológica inerente ao processo hermenêutico-sistemático, não esquecendo – e aqui adotamos a preciosa lição de Juarez Freitas – que toda interpretação é sistemática ou não é interpretação[2]. Portanto, dúvida não há de que o princípio da dignidade da pessoa humana é o mais importante do catálogo principiológico existente na Constituição de 1988.

Busca-se , mesmo que de forma brevíssima,  apresentar o entendimento de Marcel Conche a respeito de importante e atual tema. O filósofo, professor emérito na Universidade de Sorbonne, apresenta uma ótica bastante peculiar e bem diferenciada a respeito da dignidade da pessoa humana e embasa seu pensamento em outro filósofo de nomeada. Primeiramente, afirma que todo homem tem fundamento para se considerar igual de qualquer outro, mesmo que este se seja um superior na sociedade[3], e segundo o mesmo filósofo, a desigualdade está nos ´papéis´ que somos chamados a desempenhar[4]. Segundo ele, nas relações humanas, para que a dignidade de cada um seja respeitada, isto é, o direito de cada um de considerar-se o igual de qualquer outro, é preciso abstrair qualquer pretensão de ´superioridade´ ou ´inferioridade´ e considerar a hierarquia social como nada significando de essencial, como tendo caráter de acidente[5]. Mas é deveras interessante notar a amplitude [e importância] da dignidade, e Conche entende o seguinte: Minha própria dignidade está ligada à dignidade do outro. Sou atingido em minha dignidade não somente se me rebaixo, mas se um outro se rebaixa. Pois minha dignidade não é propriamente minha: é de todo homem e portanto está ligada à dignidade de todo homem. Devo não me rebaixar por respeito a mim mesmo e também por respeito a qualquer homem; e devo querer que nenhum homem se rebaixe, não apenas por respeito por sua própria dignidade, mas também pela minha[6]. Um dos aspectos abordados pelo pensador diz justamente com a atitude serviu [condenada pelos filósofos gregos] e que é diametralmente oposta à dignidade humana.

O tema específico condizente com a servidão humana foi [bem] desenvolvido pelo melhor amigo de Michel de Montaigne, Etienne de La Boétie, que escreveu primorosa obra intitulada Discurso da Servidão Voluntária[7]. Estas são suas palavras: portanto são os próprios povos que se deixam, ou melhor, se fazem dominar, pois cessando de servir estariam quites; é o povo que se sujeita, que se degola, que, tendo a escolha entre ser servo ou ser livre, abandona sua franquia e aceita o jugo; que consente seu mal – melhor dizendo, persegue-o[8]. Conche, nesse passo, adverte com peculiar clareza que se a situação de rebaixamento e de humilhação é incompatível com a dignidade humana, esta exige que se coloque um termo a essa situação[9]. De fato, mesmo que utopicamente, entende Conche que o diálogo de homem para homem deve ser um diálogo de igual para igual, e que essa igualdade é uma igualdade diante da verdade. Caso não se esteja diante dessa igualdade essencial, haverá uma situação incompatível com a dignidade do homem.

Para o mesmo autor, parece ser um tanto quanto difícil a instauração de uma sociedade fraterna, solidária e universal enquanto as nações forem entidades egoístas, militarizadas e em guerra econômica[10], sendo que a inquietude tem prevalência num momento delicado da globalização econômica. Portanto, a par de leituras deveras importantes para o hermeneuta pós-moderno, talvez fosse o caso de se pensar em incluir na lista [pelo menos] as obras aqui referenciadas, que também colocam a dignidade da pessoa humana em degrau superior. Afinal, o princípio está em degrau bem superior na Constituição Federal do Brasil.

           

 

 


[1] Ao prefaciar a obra de Ingo W. Sarlet, Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. 4ª edição. Porto Alegre:Livraria do Advogado Editora, 2006.

[2] Op. cit., p. 80.

[3] O Fundamento da Moral. São Paulo:Livraria Martins Fontes Editora, 2006, p. 63.

[4] Idem, p. 63. Grifo constante do texto original.

[5] Idem, p. 63. Grifos no original.

[6] Op. cit., pp. 63-64.

[7] La Boétie faleceu precocemente, aos 32 anos de idade [em 1563], mas deixou ao mundo obra de fôlego e certamente perene. Soube pensar a respeito da intolerância humana, do egoísmo e da total ausência de solidariedade. Também soube expressar a amizade sincera, falou sobre a virtude e o afeto fraternal, sendo, sem dúvida, um dos grandes homens que a humanidade conheceu, e que plantou a semente do bem [sendo que a obra emprestada e que dá base a estes escritos é justamente o Discurso da Servidão Voluntária. 4ª ed., 2ª reimpressão. São Paulo:Editora Brasiliense, 2001, p. 21. Tradução:Laymert Garcia dos Santos]. A morte de seu melhor amigo foi, sem dúvida, um dos relevantes motivos que ensejaram o recolhimento voluntário de Montaigne em seu castelo, recolhimento esse que, de fato, deu ao mundo uma das grandes obras do pensamento humano, intitulada Ensaios, e que retrata na inteireza o “eu” do humanista. Como diz o próprio Marcel Conche em algum lugar, não tivesse ocorrido a morte de La Boétie, talvez Montaigne não tivesse escrito sua obra genial.

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[8] Op. cit., p. 14.

[9] Idem, p. 64.

[10] Idem, p. 70.

Sobre o autor
Carlos Roberto Claro

Advogado em Direito Empresarial desde 1987; Ex-Membro Relator da Comissão de Estudos sobre Recuperação Judicial e Falência da OAB Paraná; Mestre em Direito; Pós-Graduado em Direito Empresarial; Professor em Pós-Graduação; Parecerista; Pesquisador; Autor de onze obras jurídicas sobre insolvência empresarial.

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