Entenda o que é o princípio da consunção

19/11/2020 às 13:20
Leia nesta página:

Imagina-se uma situação na qual o autor do delito pratica dois ou mais crimes e um deles é meio necessário para a prática de outro. Qual é o princípio aplicável ao caso?

Contrariamente ao que muitos pensam, a defesa técnica nem sempre busca a absolvição total dos acusados no âmbito de processos criminais. Há casos em que se busca tão somente a aplicação da justiça ao caso concreto, mesmo que isso importe em condenação do cliente.

Para casos em que a acusação cumpriu integralmente com seu ônus probatório de comprovar a materialidade e autoria do delito, bem como seus demais aspectos, tais como a tipicidade, ilicitude e culpabilidade; resta à defesa, em princípio, buscar amenizar a situação do acusado, requerendo, por exemplo, a aplicação da pena justa e um regime inicial de cumprimento de pena menos gravoso.

Uma das formas para alcançar tal objetivo é através das teses subsidiárias, como a aplicação do princípio da consunção. Seria o caso de, em não sendo reconhecida a absolvição plena do réu, buscá-la parcialmente em relação a um delito.

Esse princípio trata, em síntese, que quando o autor do delito pratica dois ou mais crimes e um deles é meio necessário para a prática de outro, o primeiro delito é absorvido pelo segundo e, consequentemente, responderá criminalmente somente pelo último delito praticado. A consunção envolve ações ou omissões necessárias para a execução de outra infração penal (TALON, 2017).

Segundo Cezar Roberto BITENCOURT (2011, p.226): 

Pelo princípio da consunção, ou absorção, a norma definidora de um crime constitui meio necessário ou fase normal de preparação ou execução de outro crime. Em termos bem esquemáticos, há consunção quando o fato previsto em determinada norma é compreendido em outra, mais abrangente, aplicando-se somente esta.

Realizada essa breve conceituação, suponhamos, a título de exemplificação, que determinada pessoa é denunciada por roubo majorado pelo emprego de arma de fogo e porte ilegal de arma de fogo. Durante a instrução processual, resta plenamente comprovada a materialidade e autoria de ambos os delitos, de modo que pode-se pensar que não há tese defensiva a ser alegada.

É para casos como esse que aplicável o princípio ora apresentado, visto que o porte ilegal de arma de fogo é crime-meio para a realização do crime-fim: roubo majorado pelo emprego de arma. Desse modo, a absolvição pelo porte de arma é medida que se impõe.

Outra hipótese cabível é quando o réu é denunciado por invasão de domicílio e homicídio. Em aplicando o princípio da consunção, deve o delito de invasão de domicílio ser absorvido pelo homicídio, visto que invadir o domicílio é crime-meio necessário para realização do homicídio.

Colaciona-se, para melhor entendimento, julgado em que fora aplicado o princípio da consunção:

APELAÇÃO CRIMINAL. CRIMES CONTRA O PATRIMÔNIO. EXTORSÃO. PROVAS DA MATERIALIDADE E DA AUTORIA SUFICIENTES. (...) LESÃO CORPORAL. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA CONSUNÇÃO. A violência empregada contra a vítima, constituiu meio de coação da extorsão. Logo, cuida-se de elementar do tipo penal, razão para acolher o pedido de aplicação do princípio da consunção, o que resulta na absolvição do acusado. (...) APELO DEFENSIVO PARCIALMENTE PROVIDO.(Apelação Criminal, Nº 70082998063, Sétima Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Glaucia Dipp Dreher, Julgado em: 12-12-2019)

In casu, o réu fora denunciado por lesão corporal e extorsão. Todavia, entendeu-se por aplicar o princípio da consunção, de modo que restou absolvido da lesão corporal, visto que “a violência empregada contra a vítima constituiu meio de coação para a extorsão”.

Isto significa dizer que para realizar a extorsão, delito previsto no artigo 158 do Código Penal, impositivo que o agente empregue constrangimento, “mediante violência ou grave ameaça”, sendo a violência, desse modo, necessária para realização do delito de extorsão e sendo por este absorvida.

Outrossim, colaciona-se a aplicação do princípio a outros fatos:

HABEAS CORPUS. PENAL E PROCESSO PENAL. FALSIDADE IDEOLÓGICA E USO DE DOCUMENTO  FALSO. CONSUNÇÃO. REINCIDÊNCIA. AÇÕES PENAIS EM CURSO. ILEGALIDADE. NOVA DOSIMETRIA. ORDEM PARCIALMENTE CONCEDIDA. 1.   Para aplicação do princípio da consunção pressupõe-se a existência de ilícitos penais chamados de consuntos, que funcionam apenas  como estágio de preparação ou de execução, ou como condutas, anteriores ou posteriores de outro delito mais grave, nos termos do brocardo lex consumens derogat legi consumptae. 2.  A  partir  do quadro fático-probatório firmado pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, extrai-se que a falsificação do documento  foi apenas um ato preparatório para o seu uso perante órgão público; a ação final do Paciente era a obtenção de uma identidade  pública com informação errada. Assim, caracterizado o desdobramento causal de uma única ação, motivo pelo qual o delito tipificado no art. 299 do Código Penal deve ser absorvido pelo crime descrito no art. 304 do Código Penal. (...). (HC 464045 / RJ, Relator(a) Ministra LAURITA VAZ, SEXTA TURMA, Data do Julgamento 26/02/2019)


APELAÇÃO-CRIME. DISPARO DE ARMA DE FOGO EM LOCAL HABITADO. PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO DE USO PERMITIDO. Mantido o reconhecimento do princípio da consunção entre os delitos de disparo e porte ilegal de arma de fogo. Apelo ministerial improvido. Unânime. (Apelação Criminal, Nº 70083101279, Quarta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Aristides Pedroso de Albuquerque Neto, Julgado em: 05-12-2019)

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No último julgado, apresenta-se caso recorrente de cabimento do princípio ora debatido, considerando que para realização do disparo de arma de fogo, evidentemente que é necessário portá-la. Desse modo, o porte resta absorvido pelo disparo.

Caso de tipos penais idênticos – e que gerou certa repercussão à época do julgamento – foi o discutido no Habeas Corpus nº 111.488, no qual aborda processo em que o Ministério Público ofereceu denúncia por porte de arma de fogo de uso restrito. Ocorre que o porte e o disparo de arma de fogo ocorreram em situação de legítima defesa de terceiro, visto que o acusado portou a arma e realizou o disparo para defender a sobrinha que estava prestes a ser estuprada, consoante abaixo relatado:

Decorre dos autos que, na data dos fatos, o acusado Márcio tentou constranger a vítima A.C.F.S, menor de 14 anos, à conjunção carnal, mediante violência, somente não consumando o crime em decorrência da pronta intervenção de F. M. S., o qual munido de arma de fogo efetuou disparos em sua direção, o que cessou a tentativa de estupro.

Das provas colacionadas aos autos, verifica-se que o apelante somente disparou a arma de fogo, com o nítido intuito de defender a vítima, sua sobrinha, das agressões perpetradas pelo primeiro denunciado, agindo assim, em legítima defesa de terceiros, fatos este que a própria acusação reconhece, pois o apelante não foi denunciado por efetuar disparo de arma em via pública ou tentativa de homicídio. Somente foi acusado por porte ilegal de arma. 

Ocorre que, pelo princípio da consunção, quando um crime é meio para a prática de outro delito, é ele absorvido por aquele crime-fim, de modo que o agente responde apenas por essa última infração penal.

Não há dúvida no sentido de que o delito de porte e o de disparo de arma de fogo se deram em um mesmo contexto fático, motivo pelo qual necessária se faz à absorção de uma conduta pela outra.

O crime de disparo de arma de fogo absorve o de porte de arma, já que esta última conduta precede àquela e constitui-se em condição indispensável à sua prática. (Trecho do voto do Desembargador Paulo Cézar Dias)

Percebe-se, assim, que foi acolhido o requerimento defensivo pela aplicação do princípio, tendo em vista que o porte da arma era meio para efetuar o disparo, que realizado em legítima defesa de terceiro.

Pelo exposto, demonstra-se a importância de conhecer e alegar o princípio da consunção, como forma de absolver ou ao menos amenizar a situação do réu em processo penal, de modo a se buscar que a justiça seja realizada no caso concreto.

Sobre o autor
Jeferson Freitas Luz

Advogado. OAB/RS 121.405. Pós-Graduado em Direito Penal e Processual Penal.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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