Resumo: A presente pesquisa busca analisar a situação jurídica das famílias simultâneas, fato cada dia mais recorrente no cenário brasileiro. O Poder Judiciário tem sido instado a solucionar crises jurídicas das mais diversas sobre este tema, seja quando uma união estável se mantém paralela à vigência de um casamento civil (concubinato), seja quando o sujeito mantém duas uniões estáveis concomitantemente. Neste trabalho será analisada a evolução histórica do conceito de família e o modo como a lei, a doutrina e os tribunais tem enfrentado o tema.
Palavras-chave: Famílias simultâneas. Concubinato. Casamento. Uniões estáveis múltiplas. Monogamia.
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
As famílias simultâneas são uma realidade cada vez mais frequente no cenário brasileiro. Ocorre quando uma pessoa mantém união estável paralela a um casamento, ou mesmo quando mantém duas uniões estáveis simultaneamente.
União estável, segundo Marcus Claudio Acquaviva, é a “União de fato, lícita e permanente entre homem e mulher, ou vida em comum, sem casamento, entre homem e mulher desimpedidos para contrair matrimônio” (ACQUAVIVA, 2013, p. 892).
A Constituição Da República Federativa do Brasil de 1988, em seu artigo 226, determina que “a família é a base da sociedade, e tem especial proteção do Estado”.
Inovou a Carta Magna quando, no mesmo artigo, elevou à categoria de entidade familiar a união estável entre homem e mulher, bem como reconheceu a entidade familiar formada por qualquer dos pais e seus descendentes (família monoparental).
Mas pode-se dizer que tal inovação foi suficiente para proteger as famílias brasileiras? Todas as famílias brasileiras são abrangidas por esta proteção constitucional?
A resposta é negativa. Atualmente existem diversas pessoas constituindo família no Brasil de maneira diversa das dispostas na Constituição da República.
Com o tempo, novas espécies de famílias formam-se no país, e apesar de a lei não acompanhar a evolução familiar brasileira, nossos tribunais já reconheceram, por exemplo, a possibilidade de união estável homoafetiva como entidade familiar, e como a própria CRFB determina, no citado artigo 226, que a lei deve facilitar a conversão da união estável em casamento, teríamos no Brasil a possibilidade de casamento entre pessoas do mesmo sexo.
Vale lembrar que o direito não é estático, mas sim mutável e direcionado pela realidade social de cada período. O que é estudado hoje de uma forma, em alguns anos pode ser encarado de outra maneira.
Neste artigo será abordado a atual situação jurídica das famílias simultâneas, com aporte doutrinário e jurisprudencial.
1. ORIGEM DA FAMÍLIA
De início, é necessário analisar a etimologia da palavra “família”, que deriva do latim familia, significa o conjunto das propriedades de alguém, incluindo escravos e parentes; que por sua vez, deriva da palavra famulus, significa escravo doméstico (Disponível em https://pt. wiktionary.org/wiki/fam%C3%ADlia).
É fácil perceber que a palavra família é intrinsicamente ligada à ideia de posse, como se as pessoas fossem propriedade uma das outras.
A família, no que se refere à história da civilização, surgiu como um fenômeno natural. O bebê nascia precisando de sua mãe para amamenta-lo, e ela, por sua vez, precisava do marido para manter sua subsistência e de seu filho. Quanto mais crianças, maior a família e maior a necessidade de se estabelecer relações afetivas de forma estável, pois, de alguma forma, todos dependiam um do outro. Hoje, apesar de evoluções nesse cenário, a situação não é diferente.
Segundo o autor César Fiuza, “A ideia de família é um tanto quanto complexa, uma vez que variável no tempo e no espaço. Em outras palavras, cada povo tem sua ideia de família, dependendo do momento histórico” (FIUZA, 2011, p. 1.027).
De acordo com Marcus Claudio Acquaviva o conceito de família é “Comunidade formada por pessoas naturais unidas pelo sangue ou pela afinidade. A família é uma sociedade natural, porque preexiste ao Direito, que se funda no casamento, ou na convivência de fato” (ACQUAVIVA, 2013, p. 419).
Vale ressaltar que o ordenamento jurídico brasileiro teve forte influência da igreja católica, e com isso a ideia de família já foi bem estrita, ligada a um homem e uma mulher que decidiam dividir a vida através do matrimônio, e que se estendia ao nascimento dos filhos como fruto da união.
2. EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE FAMÍLIA
Há algumas décadas existia apenas uma modalidade de família, aquela “família tradicional”, composta por um homem e uma mulher que constituíam matrimônio. Não interessava se havia ou não vínculo de afinidade entre os envolvidos.
O Direito de Família passou por profundas alterações nos últimos anos, em detrimento da evolução no próprio conceito de família. As razões dessa evolução foram diversas, tais como estatização (ingerência do Estado nas relações familiares), redução do grupo familiar com número menor de pessoas, igualdade de direitos entre homens e mulheres, dessacralização (redução da influência religiosa no âmbito familiar), perda da importância do património em relação à supervalorização da pessoa, dentre outros.
O Código Civil de 1916 entendia que a família estava ligada a dois pontos fundamentais: o casamento formal e a consanguinidade. Todavia ao longo dos anos a realidade social trouxe uma nova concepção de família.
Paulo Lobo, a respeito da evolução do sentido de família, nos diz que essa visão antiga de família foi alterada, in verbis:
A família patriarcal que a legislação civil brasileira tomou como modelo, desde a Colônia, o Império e durante boa parte do século XX, entrou em crime, culminando com sua derrocada, no plano jurídico, pelos valores introduzidos na Constituição de 1998 (LOBO. 2014, p.15).
Apesar da CRFB/88 evoluir o conceito de família, para considerar como célula familiar, além do casamento, a união estável entre homem e mulher, e a comunidade formada por um dos pais e seus descentes, não foi suficiente para abarcar as mais diversas modalidades de famílias existentes hoje em nosso país.
3. FAMÍLIAS SIMULTÂNEAS
Entende-se por famílias simultâneas a manutenção familiar paralela à um casamento ou uma união estável, gerando a incidência de dois ou mais núcleos familiares distintos dos quais uma pessoa participa simultaneamente.
Antigamente, os relacionamentos havidos fora do casamento chamavam-se concubinato. À mulher dava-se um olhar preconceituoso de imoralidade, e aos filhos havidos fora do casamento, o status de ilegítimos. Comumente, em ações judiciais, a concubina recebia uma indenização chamada de “preço da carne”, como se fosse uma mercadoria ou alguém que prestou serviço sexual, uma relação próxima à prostituição.
Para Maria Berenice Dias, “O elemento distintivo da família, que a coloca sob o manto da juridicidade, é a presença de um vínculo afetivo a unir as pessoas com identidade de projetos de vida e propósitos comuns, gerando comprometimento mútuo” (DIAS, 2016, p. 204).
O Enunciado 4 do IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família, determina que “A constituição de entidade familiar paralela pode gerar efeito jurídico”.
A evolução do Direito de Família perpassa por uma alteração da estrutura familiar, principalmente devido a movimentos feministas que avançaram ao longo dos anos. A inserção da mulher no mercado de trabalho gerou mudanças no panorama familiar, pois agora a mulher auxilia na economia doméstica, ajudando na subsistência dos filhos, e o homem precisa compartilhar dos deveres domésticos. Houve alteração da “hierarquia” no âmbito familiar, já o homem não é mais o único provedor da casa, fato que elevou a mulher ao mesmo patamar que o homem.
Gizelda Maria Scalon Seixas Santos, ao tratar do assunto, menciona que com a CRFB/88 o casamento deixou de ser o único fato gerador de uma família, in verbis:
A carta de 1988 ampliou o conceito de família e não mais mencionou que se assentava no casamento declarando, no caput do art. 226: a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. Depois deste artigo, o casamento deixou de ser o único fato gerador da família (SANTOS, 1996, p.57.)
Não há dúvidas da importância da família na sociedade, Maria Berenice Dias menciona que “A família é o primeiro agente socializador do ser humano” (DIAS, 1016, p. 23). Um instituto tão valioso não pode ficar às margens da legislação e não receber qualquer proteção do estado.
Além disso, com o advento da CRFB de 1988, o afeto passa a ser considerado pela ordem jurídica como um valor jurídico, elemento essencial de todo e qualquer núcleo familiar conjugal ou parental. A presença de afeto passa a ser decisivo para a caracterização de uma família. No entanto, o reconhecimento de famílias simultâneas não é tão simples.
4. PRINCÍPIOS APLICÁVEIS À FAMÍLIA
Para analisar as diferentes formas de famílias simultâneas que estão surgindo ao redor do país, é preciso uma breve explanação sobre alguns dos princípios que regem o Direito de Família que são aplicados à família de maneira geral.
4.1. Princípio da Monogamia
O art. 1.548, inciso II, do CC/2002 estabelece que é nulo o casamento contraído por infringência de impedimento. O art. 1.521, VI, do mesmo diploma legal, complementa dizendo que as pessoas casadas não podem casar novamente, é um impedimento ao casamento.
Ocorrendo novo matrimônio legal, sem o divórcio do anterior, nos deparamos com a situação de bigamia, atualmente prevista como crime no art. 235. do Código Penal, com previsão de uma pena altíssima, reclusão de 2 a 6 anos.
Da forma como se apresenta na sociedade brasileira, o Princípio da Monogamia tem mais a função de controle estatal sobre o cidadão, que uma busca ao bem estar social.
É preciso saber se o Princípio da Monogamia é aplicado apenas ao casamento ou se também abarca as uniões estáveis, pois caso afirmativo, será impossível reconhecer a existência de uniões estáveis paralelas.
Maria Berenice Dias nos lembra que a imposição da monogamia serve para que o Estado consiga disciplinar melhor questões patrimoniais, sucessórias e econômicas, mas que não cabe ao Estado impor essa forma de viver às pessoas. Vejamos:
A monogamia não foi instituída em favor do amor. Trata-se de mera convenção decorrente do triunfo da propriedade privada sobre o estado condominial primitivo. Serve muito mais a questões patrimoniais, sucessórias e econômicas. Embora a uniconjugalidade disponha de valor jurídico, não passa de um sistema de regras morais. De qualquer modo, seria irreal negar que a sociedade ocidental contemporânea é, efetivamente, centrada em um modelo familiar monogâmico, mas não cabe ao Estado, em efetivo desvio funcional, se apropriar deste lugar de interdição (DIAS, 2016, p. 44).
É possível perceber que o Princípio da Monogamia está em crise, e precisa ser revisto.
4.1.1 Possibilidade de Relativização do Princípio da Monogamia:
No atual cenário brasileiro, as pessoas casadas, ou que já mantenham uma união estável, não se furtam em constituir nova família.
Esse fato gera uma série de consequências, naturais de obrigações familiares, como dever de assistência, de prestar alimentos, direitos hereditários, etc. Um homem, por exemplo, que mantém uma união estável com uma mulher por 20 anos, concebendo com ela 4 filhos, enquanto é casado com outra há 23 anos, concebendo filho nenhum, quando morre, a pensão por morte e sua herança é dividida apenas com os filhos e a esposa, pois a lei não confere amparo à companheira de 20 anos que criou 4 filhos do falecido.
Situações como a narrada chegam ao Judiciário a todo momento, que apesar da omissão legislativa, precisa solucionar a lide.
Cumpre aos estudiosos do direito analisar essas situações, para determinar qual seria a melhor solução, e até mesmo cobrar do Poder Legislativo alterações legislativas que possam abarcar conflitos como o narrado.
Se o Princípio da Monogamia já não se sustenta, deveríamos, então, iniciar uma busca por algo que o substitua ou pelo menos o complemente.
Para Maria Berenice Dias, elevar a monogamia ao status de princípio constitucional acarreta resultados desastrosos, como enriquecimento ilícito do parceiro infiel:
No entanto, pretender elevar a monogamia ao status de princípio constitucional leva a resultados desastrosos. Por exemplo, quando há simultaneidade de relações, simplesmente deixar de emprestar efeitos jurídicos a um - ou, pior, a ambos os relacionamentos -, sob o fundamento de que foi ferido o dogma da monogamia, acaba permitindo o enriquecimento ilícito exatamente do parceiro infiel. Resta ele com a totalidade do patrimônio e sem qualquer responsabilidade para com o outro. Essa solução, que ainda predomina na doutrina e é aceita pela jurisprudência, além de chegar a um resultado de absoluta afronta à ética, se afasta do dogma maior de respeito à dignidade da pessoa humana (DIAS, Maria Berenice. 2016, p. 44).
Para Paulo Lobo, o Princípio da Monogamia não pode ser aplicado à união estável, in verbis:
O princípio da monogamia é apenas aplicável ao casamento, dada a natureza deste e a tutela constitucional das entidades familiares que refogem ao modelo matrimonial, cujos exemplos salientes são as famílias monoparentais ou quando a pessoa integra família dirigida por algum parente (avô, tio, irmão mais velho, etc.). Monogamia significa interdição a outro casamento, mas não a outra entidade familiar (LOBO, Paulo. 2014, p. 167).
Portanto, o Princípio da Monogamia já não se basta às novas situações que a modernidade apresenta, e passa a criar situações de injustiça ao redor do país, ferindo princípios constitucionais de elevada importância.
4.2. Princípio da Dignidade da Pessoa Humana
O art. 1º, inciso III da CRFB/88 enuncia que o nosso Estado Democrático de Direito tem como fundamento a dignidade da pessoa humana.
Para Flávio Tartuce, o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana pode ser tido como o princípio máximo, ou superprincípio. O autor completa dizendo que “deve-se ter em mente a construção de Kant, segundo a qual se trata de um imperativo categórico que considera a pessoa humana como um ser racional, um fim em si mesmo” (TARTUCE, 2019, p.7).
Para Paulo Lobo, “A dignidade da pessoa humana é o núcleo existencial que é essencialmente comum a todas as pessoas humanas, como membros iguais do gênero humano, impondo-se um dever geral de respeito, proteção e intocabilidade” (LOBO, Paulo. 2014, p.54).
É importante salientar que se o Estado negar direitos à uma família em detrimento de outra, apenas sob fundamento de que o ordenamento jurídico não prevê a possibilidade de famílias simultâneas, fere radicalmente a dignidade humana da família protelada.
4.3. Princípio da Solidariedade Familiar
O ser humano é um ser social, que vive em família, constituindo vínculos de afeto e solidariedade. Sempre que acontece algum infortúnio ou algum problema na vida de uma pessoa, podemos concluir que alguém de sua família estará disponível para ajudar. Assim vive o homem, trocando experiências em seu seio familiar, se ajudando mutuamente, aprendendo, evoluindo e amando conjuntamente.
A regra matriz do Princípio da Solidariedade é o art. 3º, inciso I, da CRFB, como sendo um dos princípios da República.
Para Paulo Lobo, “A solidariedade, como categoria ética e moral que se projetou para o mundo jurídico, significa um vínculo de sentimento racionalmente guiado, limitado e autodeterminado, que compete à oferta de ajuda, apoiando-se em uma mínima similitude de certos interesses e objetivos, de forma a manter a diferença entre os parceiros na solidariedade” (LOBO, Paulo. 2014, p. 56).
Para o mesmo autor, a liberdade e a justiça são objetivos supremos da CRFB, e devem ser aplicados à proteção da família, assim como a solidariedade:
Liberdade, justiça e solidariedade são os objetivos supremos que a Constituição brasileira (art. 3º, I) consagrou para a realização da sociedade feliz, após os duzentos anos da tríade liberdade, igualdade e fraternidade da Revolução Francesa. Do mesmo modo são os valores fundadores da família brasileira atual, como lugar para a concretização da dignidade da pessoa humana de cada um de seus membros, iluminando a aplicação do direito (LOBO, Paulo. 2014, p.24).
É natural que haja um espírito de solidariedade no cerne familiar, afinal, de uma forma ou de outra, todos são, ou já foram, dependentes dos membros de suas famílias, e nada mais correto do que retribuir com gratidão a atenção já recebida.
4.4. Princípio da Afetividade
Dentre as mais diversas entidades familiares que surgem, todas possuem o afeto como um elemento essencial na constituição familiar.
Para Paulo Lobo “A família é socioafetiva, em princípio, por ser grupo social considerado base da sociedade e único na convivência afetiva” (LOBO, Paulo. 2014, p.24).
Para Flávio Tartuce, a afetividade é um direito fundamental, in verbis:
O afeto talvez seja apontado, atualmente, como o principal fundamento das relações familiares. Mesmo não constando a expressão afeto no Texto Maior como um direito fundamental, pode-se afirmar que ele decorre da valorização constante da dignidade humana (TARTUCE, 2019, p. 25).
O Princípio da Afetividade é tão forte em nosso ordenamento, que o homem que reconhece como seu, filho de sua esposa com outro homem, estabelecendo vínculo de afeto, não pode depois querer quebrar esse vínculo.
5. FORMAS DE CONSTITUIÇÃO DE FAMÍLIAS SIMULTÂNEAS:
São duas as formas de constituição de famílias simultâneas. Pode haver a constituição de um casamento paralelamente a uma união estável, ou pode ocorrer o estabelecimento de duas ou mais uniões estáveis concomitantemente.
Tudo o que ocorre no mundo dos fatos e gera conflitos, mesmo que não disciplinado legalmente, acaba chegando ao Poder Judiciário para que solucione a lide.
Conforme dispõe o Princípio da Inafastabilidade da Jurisdição, nenhuma lesão ou ameaça de lesão pode ser excluída de apreciação pelo Poder Judiciário, conforme determina o art. 5º, XXXV, CRFB/88.
Dessa forma, o Poder Judiciário não pode se negar a julgar a crise jurídica alegando que não há norma legal que a fundamente. Portanto, diante da omissão legislativa para regular as famílias simultâneas, o Poder Judiciário deve encontrar soluções de conflito com base nos princípios constitucionais basilares que regem o Direito de Família.
5.1. União Estável
O conceito de união estável também evoluiu com o passar dos anos. A Lei 8.971/94, de início, exigia prazo de convivência ou coabitação de 5 anos ou existência de prole comum para sua configuração. Mas na referida lei já havia previsão da possibilidade de alimentos, herança e meação, apesar de trazer certas restrições.
Após, foi editada a Lei 9.278/96, que não revogou completamente a lei anterior, porém reconheceu como entidade familiar a convivência duradoura, pública e contínua, de um homem e uma mulher, com o objetivo de constituir família, retirando o requisito temporal e previsão de prole comum, além de ampliar os direitos dos companheiros.
Hoje, o CC/02, no art. 1.723, prevê que “é reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família”, conceito semelhante à lei anterior.
Segundo o autor Flávio Tartuce, os requisitos para a configuração da união estável no Brasil são publicidade, continuidade e durabilidade, in verbis:
Os requisitos, nesse contexto, são que a união seja pública (no sentido de notoriedade, não podendo ser oculta ou clandestina), contínua (sem que haja interrupções, sem o famoso ‘dar um tempo’ que é tão comum no namoro) e duradoura, além do objetivo se os companheiros ou conviventes de estabelecerem uma verdadeira família (animus familiae) (TARTUCE, 2019, p. 353).
A Súmula 382 do Supremo Tribunal Federal nos diz que “A vida em comum sob o mesmo teto, more uxório, não é indispensável à caracterização do concubinato”, referindo-se, hoje, à atual união estável.
No Brasil, muito tem ocorrido situações em que a pessoa estabelece a denominada união estável plúrima ou múltipla, ou seja, convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família com mais de um companheiro.
Na doutrina, temos 3 diferentes posições sobre o assunto, e todas elas giram em torno de saber se a monogamia é ou não princípio informador da união estável.
O primeiro entendimento, seguido por Álvaro Villaça Azevedo, diz que nenhum dos relacionamentos constitui união estável, havendo deslealdade nas relações plúrimas, tratando-se de concubinato impuro ou desleal (AZEVEDO, 2002, p.190). Também segue este entendimento a autora Maria Helena Diniz, dizendo que a fidelidade ou lealdade são requisitos da união estável (DINIZ, 2002, p.321). Porém, é possível, para esta posição, pedido de indenização por danos morais e materiais. Ressalte-se de ante mão, que é posição que prevalece na jurisprudência nacional.
Para uma segunda posição, devem ser aplicadas as regras previstas para o casamento putativo, com aplicação analógica do art. 1.561. do CC/02, na hipótese de companheiro inocente que desconhece o relacionamento anterior do outro, instaurando uma união estável putativa. Esta posição seria aplicada não apenas em casos de união estável paralela, mas também em casos de união estável concomitante a casamento. Estando de boa-fé, devem ser reconhecidos direitos ao companheiro inocente, conforme entendem Euclides de Oliveira (OLIVEIRA, 2003, p.128) e Rodrigo da Cunha Pereira (PEREIRA, 2004, 0.75).
Há um terceiro entendimento, no sentido de que todas as uniões estáveis paralelas constituem entidade familiar, devendo ser reconhecidos os direitos de todas. É posição encabeçada pela autora Maria Berenice Dias, nos ensinando que “Negar a existência de famílias paralelas - quer um casamento e uma união estável, quer duas ou mais uniões estáveis - é simplesmente tentar fazê-las desaparecer. Com isso a justiça acaba cometendo enorme injustiças.” (DIAS, Maria Berenice. 2016, p. 454).
Situações muito curiosas estavam ocorrendo nos cartórios de registro de notas ao redor do país, onde constava registro de escritura pública de união estável poliafetiva. Conforme de extrai do site IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família, em 1º de abril de 2016, um funcionário público de 33 anos, se uniu oficialmente a duas mulheres, no 15º Ofício de Notas, na Barra da Tijuca, na Zona Oeste do Rio de Janeiro (Disponível em: https://ibdfam.org.br/ noticias/ 5970/Uni%C3%A3o+poliafetiva:+escritura+%C3%A9+necess%C3%A1ria%3F).
Apesar do registro de escritura pública não ser hábil para constituir união estável ao redor do país, fato é que a sociedade estava buscando meios de tentar garantir alguma segurança jurídica às famílias que se constituíam “às margens da lei”. No entanto, em junho de 2018, o Conselho Nacional de Justiça decidiu pela vedação de escrituras públicas de uniões poliafetivas (CNJ, Pedido de Providências 0001459-08.2016.2.00.0000, Rel. Min. João Otávio de Noronha).
Como bem descreve Flávio Tartuce, é preciso pensar em uma nova forma de família, especialmente em relação às gerações mais novas:
“(...) o futuro reserva uma nova forma de pensar a família, o que, em breve, serão admitidos relacionamentos plúrimos, seja a concomitância de mais de uma união estável, seja a presença desta em comum com o casamento. Acredita-se que o futuro é das famílias paralelas, cabendo ao tempo mostrar a razão, especialmente pela visão de mundo das gerações mais novas. Na verdade, se a família é plural, essa deve ser mais uma opção oferecida pelo sistema, para quem desejar tal forma de constituição” (Tartuce, 2019, p.383).
Para Maria Berenice Dias, enquanto o Poder Judiciário se recusa a reconhecer união simultânea como entidade familiar, cabe ser formulado em juízo pedidos alternativos em caráter eventual: “a declaração de união estável ou o reconhecimento de sociedade de fato, ou, ao menos, o pagamento de indenização por serviços prestados” (DIAS, Maria Berenice. 2016, p. 414).
O Superior Tribunal de Justiça enfrentou situação ocorrida no Estado do Rio de Janeiro em que o sujeito, após constituir união estável com uma mulher, constituiu nova união com outra, que pleiteou o reconhecimento da união para fins de herança. O Tribunal de Justiça do Estado reconheceu a segunda união estável como putativa, sujeita, portanto, a direitos hereditários. No entanto, o STJ negou reconhecimento da segunda união estável, sob o argumento de que é impossível constituir uma segunda união estável concomitante com a anterior, pois seria o mesmo que se admitir pluralidade de casamentos, in verbis:
União estável. Reconhecimento de duas uniões concomitantes. Equiparação ao casamento putativo. Lei nº 9.728/96. 1. Mantendo o autor da herança união estável com uma mulher, o posterior relacionamento com outra, sem que se haja desvinculado da primeira, com quem continuou a viver como se fossem marido e mulher, não há como configurar união estável concomitante, incabível a equiparação ao casamento putativo. 2. Recurso especial conhecido e provido
(STJ, REsp 789.293/RJ, 3ª Turma, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, j. 16/02/2006, DJ 20/03/2006, p.271).
Posteriormente, o STJ enfrentou novamente o tema, em situação ocorrida no Rio Grande do Norte e publicada no Informativo 435 do STJ, onde também entendeu pela impossibilidade de se estabelecer uniões estáveis plúrimas. A seguir, a ementa do julgado:
FAMÍLIA. UNIÕES ESTÁVEIS SIMULTÂNEAS. PENSÃO. In casu, o de cujus foi casado com a recorrida e, ao separar-se consensualmente dela, iniciou um relacionamento afetivo com a recorrente, o qual durou de 1994 até o óbito dele em 2003. Sucede que, com a decretação do divórcio em 1999, a recorrida e o falecido voltaram a se relacionar, e esse novo relacionamento também durou até sua morte. Diante disso, as duas buscaram, mediante ação judicial, o reconhecimento de união estável, consequentemente, o direito à pensão do falecido. O juiz de primeiro grau, entendendo haver elementos inconfundíveis caracterizadores de união estável existente entre o de cujus e as demandantes, julgou ambos os pedidos procedentes, reconhecendo as uniões estáveis simultâneas e, por conseguinte, determinou o pagamento da pensão em favor de ambas, na proporção de 50% para cada uma. Na apelação interposta pela ora recorrente, a sentença foi mantida. Assim, a questão está em saber, sob a perspectiva do Direito de Família, se há viabilidade jurídica a amparar o reconhecimento de uniões estáveis simultâneas. Nesta instância especial, ao apreciar o REsp, inicialmente se observou que a análise dos requisitos ínsitos à união estável deve centrar-se na conjunção de fatores presentes em cada hipótese, como a affectio societatis familiar, a participação de esforços, a posse do estado de casado, a continuidade da união, a fidelidade, entre outros. Desse modo, entendeu-se que, no caso, a despeito do reconhecimento, na dicção do acórdão recorrido, da união estável entre o falecido e sua ex-mulher em concomitância com união estável preexistente por ele mantida com a recorrente, é certo que o casamento válido entre os ex-cônjuges já fora dissolvido pelo divórcio nos termos do art. 1.571, § 1º, do CC/2002, rompendo-se, definitivamente, os laços matrimoniais outrora existentes. Destarte, a continuidade da relação sob a roupagem de união estável não se enquadra nos moldes da norma civil vigente (art. 1.724. do CC/2002), porquanto esse relacionamento encontra obstáculo intransponível no dever de lealdade a ser observado entre os companheiros. Ressaltou-se que uma sociedade que apresenta como elemento estrutural a monogamia não pode atenuar o dever de fidelidade, que integra o conceito de lealdade, para o fim de inserir, no âmbito do Direito de Família, relações afetivas paralelas e, por consequência, desleais, sem descurar do fato de que o núcleo familiar contemporâneo tem como escopo a realização de seus integrantes, vale dizer, a busca da felicidade. Assinalou-se que, na espécie, a relação mantida entre o falecido e a recorrida (ex-esposa), despida dos requisitos caracterizadores da união estável, poderá ser reconhecida como sociedade de fato, caso deduzido pedido em processo diverso, para que o Poder Judiciário não deite em solo infértil relacionamentos que efetivamente existem no cenário dinâmico e fluido dessa nossa atual sociedade volátil. Assentou-se, também, que ignorar os desdobramentos familiares em suas infinitas incursões, em que núcleos afetivos justapõem-se, em relações paralelas, concomitantes e simultâneas, seria o mesmo que deixar de julgar com base na ausência de lei específica. Dessa forma, na hipótese de eventual interesse na partilha de bens deixados pelo falecido, deverá a recorrida fazer prova, em processo diverso, repita-se, de eventual esforço comum. Com essas considerações, entre outras, a Turma deu provimento ao recurso, para declarar o reconhecimento da união estável mantida entre o falecido e a recorrente e determinar, por conseguinte, o pagamento da pensão por morte em favor unicamente dela, companheira do falecido.
(STJ, REsp 1.157.273/RN, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 18/05/2010).
Tempos depois, no Informativo 464 do STJ, foi publicado o mesmo entendimento:
UNIÕES ESTÁVEIS PARALELAS. A Turma, ao prosseguir o julgamento, deu provimento ao recurso especial e estabeleceu ser impossível, de acordo com o ordenamento jurídico pátrio, conferir proteção jurídica a uniões estáveis paralelas. Segundo o Min. Relator, o art. 226. da CF/1988, ao enumerar as diversas formas de entidade familiar, traça um rol exemplificativo, adotando uma pluralidade meramente qualitativa, e não quantitativa, deixando a cargo do legislador ordinário a disciplina conceitual de cada instituto - a da união estável encontra-se nos arts. 1.723. e 1.727 do CC/2002. Nesse contexto, asseverou que o requisito da exclusividade de relacionamento sólido é condição de existência jurídica da união estável nos termos da parte final do § 1º do art. 1.723. do mesmo código. Consignou que o maior óbice ao reconhecimento desse instituto não é a existência de matrimônio, mas a concomitância de outra relação afetiva fática duradoura (convivência de fato) - até porque, havendo separação de fato, nem mesmo o casamento constituiria impedimento à caracterização da união estável -, daí a inviabilidade de declarar o referido paralelismo. Precedentes citados: REsp 789.293-RJ, DJ 20/3/2006, e REsp 1.157.273-RN, DJe 7/6/2010
(STJ, REsp 912.926-RS , Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 22/2/2011).
No mesmo sentido, o STJ publicou a afirmação n. 4, na Edição n. 50. da Jurisprudência em Teses, sobre união estável, que “não é possível o reconhecimento de uniões estáveis simultâneas”.
No Supremo Tribunal Federal há um tema em Repercussão Geral sobre o assunto, ainda pendente de julgamento, nº 529, sobre a possibilidade de reconhecimento jurídico de união estável e de relação homoafetiva concomitantes, com o consequente rateio de pensão por morte. É preciso aguardar o julgamento para saber qual será o posicionamento atual da Suprema Corte.
Interessante questão foi decidida pelo STF na ADI 4.277, em que a Corte Máxima entendeu pela possibilidade de união estável homoafetiva fundamentando a decisão em princípios e diretrizes como a não discriminação, vedação do preconceito, liberdade de escolha da entidade familiar, igualdade de direitos, laicidade, pluralismo, autonomia privada, intimidade e vida privada. Estimulante seria se a Suprema Corte decidisse com os mesmos fundamentos quanto a possibilidade de famílias simultâneas (STF, ADI 4.277/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 21/10/2015).
5.2. Concubinato
O art. 1.727. do CC/02 dispõe que as relações não eventuais entre o homem e a mulher impedidos de casar, constituem concubinato.
Para Flávio Tartuce, concubinato pode ser subclassificado em dois conceitos: concubinato puro, como sendo a própria união estável; e concubinato impuro, que seria a convivência estabelecida entre pessoas que são impedidas de casar e que, portanto, não podem estabelecer uma união estável, como é o fato de pessoa casada não separada de fato, que convive com outra (TARTUCE, 2019, p. 365. a 367).
A Súmula 380 do Supremo Tribunal Federal determina que “Comprovada a existência de sociedade de fato entre os concubinos, é cabível a sua dissolução judicial, com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum”, não reconhecendo o concubinato como uma entidade familiar.
Porém, Maria Berenice Dias nos alerta sobre o reconhecimento apenas de efeitos patrimoniais ao concubinato como uma inverdade jurídica e imposição de entidade familiar a qual a pessoa não escolheu. Vejamos:
(...) reconhecer apenas efeitos patrimoniais, como sociedade de fato, é uma mentira jurídica, porquanto os companheiros não se uniram para constituir uma sociedade. Por fim, desconsiderar a participação do companheiro casado na relação concubinária, para entendê-la como monoparental em havendo filhos, ofende o princípio da livre escolha da entidade familiar. Estar-se-ia diante de uma entidade monoparental imposta
(DIAS, Maria Berenice. 2016, p 453).
Fato é que no dia a dia da sociedade brasileira, é muito comum situações em que uma pessoa casada constitui família paralela.
Ressalte-se que o art. 1.708. do Código Civil parece dar certa natureza de relação familiar ao concubinato quando diz que “Com o casamento, a união estável ou o concubinato do credor, cessa o dever de prestar alimentos”.
O Supremo Tribunal Federal analisou caso ocorrido no Estado da Bahia, de um sujeito que estabeleceu duas uniões concomitantes mantendo-as por décadas. Tratava-se de um casamento e uma união estável (concubinato impuro). No casamento concebeu 11 filhos. Na união estável concebeu 9 filhos. Com sua morte, ambas as mulheres requereram pensão previdenciária do falecido. Vale ressaltar, que o TJBA determinou a divisão do benefício para as duas mulheres.
Porém, no STF venceu a posição do relator, ministro Marco Aurélio, no sentido de não implementar a divisão do benefício a fim de beneficiar a concubina, sob alegação de que não era caso de união estável, mas sim de concubinato, já que havia impedimento para o casamento. (STF, RE 397.762-8/BA. Relator Min. Marco Aurélio, j.03/06/2008).
Vale destacar que no Supremo Tribunal Federal temos um tema sobre o assunto pendente de julgamento, afetado em Repercussão Geral, de nº 526. Trata da possibilidade de concubinato de longa duração gerar efeitos previdenciários. É preciso aguardar o julgamento para saber qual será o atual posicionamento da Suprema Corte.
O Superior Tribunal de Justiça também tem entendido pela impossibilidade do reconhecimento do paralelismo da união estável com o casamento, devendo a relação não oficial ser tratada como mero concubinato.
O STJ analisou situação ocorrida no Estado de Pernambuco, em que um servidor público casado manteve união estável paralela ao casamento, e após falecer, ambas pleiteavam a pensão por morte. O Tribunal de Justiça do Estado julgou parcialmente procedente o pedido da concubina. Porém, entendeu o STJ que não é possível conferir ao concubinato adulterino o mesmo tratamento da união estável, e portanto, não garantiu à companheira parte dos benefícios previdenciários do falecido (STJ, REsp 1.185.653/PE, 4ª Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j.07/12/2010, DJ 01/03/2011).
Em outro caso, ocorrido no Estado do Rio Grande do Sul, o sujeito casado manteve união estável paralela ao casamento por 16 anos, concebendo duas filhas. O juiz de 1ª instância reconheceu a união estável e determinou que fosse partilhado 50% dos bens para cada uma, sobre o patrimônio adquirido à título oneroso, durante a constância da conivência do casal. No entanto, o STJ entendeu que “impõem-se a prevalência dos interesses da mulher casada, cujo matrimônio não foi dissolvido, aos alegados direitos subjetivos da concubina, pois não há, sob o prisma do Direito de Família, prerrogativa desta à partilha dos bens deixados pelo concubino” (STJ, REsp. 931.155/RS, 3ª Turma, Rel. Min. Nacy Andrighi, j. 07/08/2007, DJ 20/08/2007, p.281).
No entanto, alterando sua forma de solucionar a questão, em caso ocorrido também no Estado do Rio Grande do Sul, STJ entendeu pelo direito de uma concubina idosa a continuar a receber as verbas alimentares, diante de justas expectativas geradas pelo concubino, citando a proteção presente no Estatuto do Idoso, e os princípios constitucionais da dignidade humana e da solidariedade familiar. Tratou-se de uma ação de reconhecimento e dissolução de união concubinária com pedido de partilha de bens e alimentos e/ou indenização por serviços prestados. Na 1ª instância houve condenação do réu a pagar alimentos à concubina, e o Tribunal de Justiça do Estado manteve a condenação. A seguir, ementa da decisão do STJ sobre o caso:
RECURSO ESPECIAL. CONCUBINATO DE LONGA DURAÇÃO. CONDENAÇÃO A ALIMENTOS. NEGATIVA DE VIGÊNCIA DE LEI FEDERAL. CASO PECULIARÍSSIMO. PRESERVAÇÃO DA FAMÍLIA X DIGNIDADE E SOLIDARIEDADE HUMANAS. SUSTENTO DA ALIMENTANDA PELO ALIMENTANTE POR QUATRO DÉCADAS. DECISÃO. MANUTENÇÃO DE SITUAÇÃO FÁTICA PREEXISTENTE. INEXISTÊNCIA DE RISCO PARA A FAMÍLIA EM RAZÃO DO DECURSO DO TEMPO. COMPROVADO RISCO DE DEIXAR DESASSISTIDA PESSOA IDOSA. INCIDÊNCIA DOS PRINCÍPIOS DA DIGNIDADE E SOLIDARIEDADE HUMANAS. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL. INEXISTÊNCIA DE SIMILITUDE FÁTICO-JURÍDICA. 1. De regra, o reconhecimento da existência e dissolução de concubinato impuro, ainda que de longa duração, não gera o dever de prestar alimentos a concubina, pois a família é um bem a ser preservado a qualquer custo. 2. Nada obstante, dada a peculiaridade do caso e em face da incidência dos princípios da dignidade e solidariedade humanas, há de se manter a obrigação de prestação de alimentos a concubina idosa que os recebeu por mais de quatro décadas, sob pena de causar-lhe desamparo, mormente quando o longo decurso do tempo afasta qualquer riso de desestruturação familiar para o prestador de alimentos. 3. O acórdão recorrido, com base na existência de circunstâncias peculiaríssimas – ser a alimentanda septuagenária e ter, na sua juventude, desistido de sua atividade profissional para dedicar-se ao alimentante; haver prova inconteste da dependência econômica; ter o alimentante, ao longo dos quarenta anos em que perdurou o relacionamento amoroso, provido espontaneamente o sustento da alimentanda –, determinou que o recorrente voltasse a prover o sustento da recorrida. Ao assim decidir, amparou-se em interpretação que evitou solução absurda e manifestamente injusta do caso submetido à deliberação jurisprudencial. 4. Não se conhece da divergência jurisprudencial quando os julgados dissidentes tratam de situações fáticas diversas. 5. Recurso especial conhecido em parte e desprovido
(STJ, REsp 1.185.337/RS, 3ª Turma, Rel. Min. João Otávio de Noronha, j.17/03/2015, DJ 31/03/2015).
É perceptível a enorme resistência dos tribunais superiores em admitir relação de concomitância entre um casamento e uma união estável, porém, os juízes de 1ª instância e os Tribunais de Justiça reconhecem essa possibilidade com maior facilidade.
CONCLUSÃO
Conclui-se que é preciso questionar qual o papel do Estado na intervenção da família, se realmente é necessária essa intervenção estatal tão opressiva que impõe até a forma como a pessoa deve constituir sua própria família.
É preciso atentar à possibilidade cada vez mais crescente de pessoas constituírem famílias paralelas, de forma pública, contínua e duradoura, e conviverem bem com esta situação, estarem felizes pela forma como vivem.
Um dos papéis do Estado no Estado Democrático de Direito é garantir a liberdade do ser humano, mas esta liberdade tem sido relativizada pela forma como o Estado que deve ser constituída a família merecedora de sua proteção.
Negar direitos à uma família em detrimento de outra fere uma série de princípios, como a dignidade da pessoa humana, solidariedade familiar, igualdade, respeito à diferença, pluralismo familiar e afetividade. Dessa forma, negar a existência de famílias simultâneas é um completo descompasso com as garantias fundamentais.
Muito melhor seria o Estado regulamentar as diversas formas de constituição de famílias simultâneas, a fim de garantir segurança jurídica à situação.
Hoje, podemos dizer que família representa a união entre pessoas que possuem laços sanguíneos e/ou de convivência, baseado no afeto. É um conceito muito abrangente, mas que se amolda perfeitamente à família brasileira.
O Estado negar direitos às famílias simultâneas não impede que elas continuem sendo constituídas ao redor do país, e as decisões dos tribunais superiores estão gerando grandes injustiças e enorme insegurança jurídica, o que é inadmissível em um Estado Democrático de Direito.
Os estudiosos do direito devem continuar a questionar e debater a existência dessas famílias simultâneas e a forma como o Poder Legislativo e o Poder Judiciário estão enfrentado a situação, para que, dessa maneira, seja possível encontrar a melhor solução no amparo dessas famílias, atualmente relegadas pelo Estado.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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TARTUCE, Flávio. Direito Civil: Direito de Família. 14ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2019.
WIKCIONÁRIO, O Dicionário Livre. Disponível em: https://pt.wiktionary.org/wiki/ fam%C3%ADlia. Acesso em 18/11/2020.
Abstract: This research seeks to analyze the legal situation of simultaneous families, a fact that is more and more recurrent in the Brazilian scenario. The Judiciary has been urged to resolve the most diverse legal crises on this topic, whether when a stable union remains parallel to the existence of a civil marriage (concubinage), or when the subject maintains two stable unions at the same time. This work rill analize the historical evolution of the concept of family and the way in which law, doctrine and courts have faced it.
Key words: Simultaneous families. Concubinage. Marriage. Multiple stable unions. Monogamy.