O juizo das garantias e sua adequação formal ao processo constitucional

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O objetivo do presente artigo científico é analisar o instituto do juízo das garantias e sua adequação formal ao processo constitucional brasileiro e demonstrar como o modelo acusatório se completa com o referido instituto.

1.            CONSIDERAÇÕES INICIAIS

 O presente artigo científico tem por objeto, o estudo do instituto do juiz das garantias e a sua adequação formal ao processo constitucional.  Tal análise faz-se necessária uma vez que a Lei 13.964/19 trouxe significativas modificações no que tange ao juízo das garantias, entre outras mudanças, no entanto os artigos 3º-A, 3°-B, 3°- C, 3°-D, 3°-E e 3°-F DO CPP, que versam sobre o referido instituto, foram suspensos.

Trata-se de um tema extremamente atual e relevante para o Direito Processual Penal, pois o instituto do juiz das garantias traz uma revolução que prevê uma garantia maior da aplicação do modelo acusatório no Brasil, uma vez que o magistrado não irá agir de ofício e atuar como gestor da prova e o juiz que irá salvaguardar os direitos fundamentais do acusado e verificar a legalidade da investigação criminal, não terá a responsabilidade de instruir o processo, ou de julgá-lo, futuramente.

É de bom alvitre enfatizar que sempre houve proteção dos direitos do acusado na fase de investigação criminal, no entanto, não havia qualquer impedimento que o juiz que atuasse na fase persecutória, fosse o mesmo que poderia proferir a sentença do investigado, ou seja, não havia qualquer separação. Fato é que, a falta desse impedimento poderia acarretar em um envolvimento subjetivo do magistrado, afastando assim a sua equidistância do processo.

O juiz das garantias antes da referida lei, era pauta do Projeto de Lei do Senado n. 156/09, mas foi no Pacote Anticrime que o instituto foi introduzido por Emenda. No entanto, foi suspenso cautelarmente pelo Min. Luiz Fux, em razão de quatro ações diretas de inconstitucionalidade, alegando, resumidamente, a inconstitucionalidade formal e material dos referidos artigos.

O método utilizado foi análise e pesquisa sobre o tema proposto em diversas fontes como doutrina, legislação brasileira e documentos.

Para uma melhor abordagem e compreensão do tema proposto, o estudo foi dividido em quatro capítulos. O primeiro capítulo conceitua o instituto Juiz das Garantias, expõe suas funções e ressalta a importância dessa figura para que haja a garantia dos direitos fundamentais do acusado. No segundo capítulo, trataremos dos modelos processuais, e a adequação do juiz das garantias ao modelo acusatório. No terceiro capítulo abordaremos o trâmite do processo legislativo da Lei 13.964/19 “Pacote Anticrime” e o vício de iniciativa do projeto de Lei. Por fim, no quarto capítulo, falaremos sobre a (in) constitucionalidade formal do juízo das garantias e discutiremos sobre a decisão do Ministro que suspendeu os artigos que dispunham sobre o instituto.

2.            CONCEITO E FUNÇÕES DO JUIZ DAS GARANTIAS

Para que haja o entendimento do instituto ora abordado, faz-se necessária uma prévia explicação do seu conceito e funções.

 

2.1         Conceito

 

De acordo com o artigo 3-B, caput, do Código de Processo Penal, incluído pela Lei n. 13.964/19, o juiz das garantias é responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário.

Em outras palavras, trata-se de magistrado com atuação no âmbito criminal em fase exclusivamente pré-processual. Segundo o autor Renato Brasileiro:

Consiste, pois, na outorga exclusiva, a um determinado órgão jurisdicional, da competência para o exercício da função de garantidor dos direitos fundamentais na fase investigatória da persecução penal, o qual ficará, na sequência, impedido de funcionar no processo judicial desse mesmo caso penal. (BRASILEIRO, 2020,p. 114)

Neste sentido, fica claro que o juiz das garantias, não poderá participar de nenhuma outra fase do processo judicial, pois dependendo do momento em que se encontra o processo, a competência será de um magistrado ou de outro.

O objetivo do referido instituto se dá em razão de assim garantir a maior imparcialidade e neutralidade possível do juiz, afastando a possibilidade dele ser contaminado subjetivamente, uma vez que ele não irá participar da fase de instauração da investigação criminal.  Nas palavras de Marcos da Costa:

O juiz que atua e profere decisões durante o inquérito policial não será o mesmo que presidirá a futura ação penal. A razão para isso é clara: assegurar maior concretude para um princípio fundamental do processo: o da imparcialidade do julgador. (COSTA, 2019)

Até a entrada em vigor da Lei n. 13.964/19, o juiz das garantias poderia ser também o magistrado que atuaria no momento de instrução e julgamento da mesma demanda, o que pode comprometer a sua imparcialidade, uma vez que, por exemplo, o mesmo juiz autorizaria o afastamento do sigilo telefônico e proferiria a eventual sentença condenatória.

Vale ressaltar que o juiz das garantias não é um instituto novo, ele já existia, pois faz parte do devido processo legal, porém não havia qualquer impedimento que o mesmo magistrado atuasse tanto na fase persecutória quanto na fase de instrução e julgamento.

A competência do juiz das garantias abrange toda a fase de investigação, iniciando-se no inquérito policial e encerrando no momento do recebimento da denúncia. A partir deste momento, o juiz das garantias não fará mais parte do processo judicial, que irá ser assumido por um novo juiz, da instrução e julgamento.  

2.2 Funções

Nos termos do artigo 3-B do CPP, as funções do juiz das garantias são:

Art. 3º-B.

[...] competindo-lhe especialmente:

 I – receber a comunicação imediata da prisão, nos termos do inciso LXII do caput do art. 5º da Constituição Federal;

 II – receber o auto da prisão em flagrante para o controle da legalidade da prisão, observado o disposto no art. 310 deste Código;

III – zelar pela observância dos direitos do preso, podendo determinar que este seja conduzido à sua presença, a qualquer tempo;

IV – ser informado sobre a instauração de qualquer investigação criminal;

V – decidir sobre o requerimento de prisão provisória ou outra medida cautelar, observado o disposto no § 1º deste artigo;

VI – prorrogar a prisão provisória ou outra medida cautelar, bem como substituí-las ou revogá-las, assegurado, no primeiro caso, o exercício do contraditório em audiência pública e oral, na forma do disposto neste Código ou em legislação especial pertinente;

VII – decidir sobre o requerimento de produção antecipada de provas consideradas urgentes e não repetíveis, assegurados o contraditório e a ampla defesa em audiência pública e oral;

VIII – prorrogar o prazo de duração do inquérito, estando o investigado preso, em vista das razões apresentadas pela autoridade policial e observado o disposto no § 2º deste artigo;

IX – determinar o trancamento do inquérito policial quando não houver fundamento razoável para sua instauração ou prosseguimento;

X – requisitar documentos, laudos e informações ao delegado de polícia sobre o andamento da investigação;

XI – decidir sobre os requerimentos de:

a) interceptação telefônica, do fluxo de comunicações em sistemas de informática e telemática ou de outras formas de comunicação;

b) afastamento dos sigilos fiscal, bancário, de dados e telefônico;

c) busca e apreensão domiciliar;

d) acesso a informações sigilosas; direitos fundamentais do investigado;

XII – julgar o habeas corpus impetrado antes do oferecimento da denúncia;

XIII – determinar a instauração de incidente de insanidade mental;

XIV – decidir sobre o recebimento da denúncia ou queixa, nos termos do art. 399 deste Código; e outros meios de obtenção da prova que restrinjam

XV – assegurar prontamente, quando se fizer necessário, o direito outorgado ao investigado e ao seu defensor de acesso a todos os elementos informativos e provas produzidos no âmbito da investigação criminal, salvo no que concerne, estritamente, às diligências em andamento;

XVI – deferir pedido de admissão de assistente técnico para acompanhar a produção da perícia;

XVII – decidir sobre a homologação de acordo de não persecução penal ou os de colaboração premiada, quando formalizados durante a investigação;

XVIII – outras matérias inerentes às atribuições definidas no caput deste artigo. § 1º (VETADO).

§ 2º Se o investigado estiver preso, o juiz das garantias poderá, mediante representação da autoridade policial e ouvido o Ministério Público, prorrogar, uma única vez, a duração do inquérito por até 15 (quinze) dias, após o que, se ainda assim a investigação não for concluída, a prisão será imediatamente relaxada.’ (BRASIL, 2019)

As funções do juiz das garantias são várias, conforme descrito no artigo retro mencionado, funções essas, que garantem a legalidade das ações realizadas dentro do inquérito policial. Seu papel, segundo o autor Casara:

O juiz das garantias pode ser definido como o “responsável pelo exercício das funções jurisdicionais alusivas à tutela das liberdades públicas, ou seja, das inviolabilidades pessoais/liberdades individuais frente à opressão estatal, na fase pré-processual”. (CASARA, 2010, p.170)

É evidente a importância que o papel do juiz das garantias desempenha na fase de investigação, uma vez que sua função é ser o responsável pelo controle da legalidade da investigação e ser o garantidor dos direitos do investigado.

Ele monitorará tanto o respeito aos direitos e garantias do acusado, quanto a preservação do direito-dever que o Estado possui de investigar o fato e buscar sua autoria. Tal função é de extrema relevância, para que não haja desrespeito aos direitos do investigado e haja consonância com os direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição Federal e na Convenção Americana sobre Direitos Humanos.

Fato é, que se o juiz das garantias não existisse, não haveria o devido processo legal, não poderíamos falar em proteção dos direitos do acusado, pois o inquérito policial não teria um terceiro equidistante que apuraria os limites dos atos realizados pelas autoridades policiais, podendo assim ocasionar vícios na legalidade do processo, como um todo.

Portanto, é de suma importância que as funções do juiz das garantias sejam bem definidas e preservadas, para que a fase de investigação seja executada dentro da legalidade e de forma imparcial, garantindo assim o cumprimento do devido processo legal.   

3.            DOS MODELOS PROCESSUAIS, E A ADEQUAÇÃO DO JUIZ DAS GARANTIAS AO MODELO ACUSATÓRIO

Para que haja melhor compreensão do modelo adotado no Brasil, há de se falar brevemente nos modelos existentes no Processo Penal, são eles, o sistema inquisitório, acusatório e misto. Nas palavras de Eduardo Moreira e Margarida Lacombe Camargo:

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O conceito de sistema processual penal é baseado na divisão existente entre acusatório, inquisitivo e misto. Estes sistemas revelam a proposta do Estado na forma de condução das práticas de controle social punitivo e nas garantias concedidas a quem violar o pacto. (Moreira,Camargo, 2017).

Diante disso, podemos perceber que existem os três modelos processuais penais, no entanto, seria difícil uma constituição adotar dois modelos ao mesmo tempo, pois suas características os distinguem completamente, conforme veremos a definição de cada um.

3.1 O Sistema Inquisitivo

No sistema inquisitivo, há uma concentração das funções de acusar, defender e julgar nas mãos de uma mesma pessoa, o juiz inquisidor. Este magistrado participa de todas as etapas do procedimento, o que pode comprometer sua imparcialidade. De acordo com Renato Brasileiro:

Essa concentração de poderes nas mãos do juiz compromete, invariavelmente, sua imparcialidade. Afinal, o juiz que atua como acusador fica ligado psicologicamente ao resultado da demanda, perdendo a objetividade e a imparcialidade no julgamento. (BRASILEIRO, 2020, p. 42).

De acordo com o sistema inquisitivo, não existe qualquer separação das funções, o que não condiz com um Estado Democrático de Direito, pois não haveria a devida separação necessária para que o acusado tivesse sua defesa protegida e retirada das mãos de quem o acusaria e julgaria.

3.2 O Sistema Acusatório

 

O modelo acusatório traz consigo a separação das funções, ou seja, uma parte é responsável por acusar, outra parte por defender, existindo uma igualdade de posições entre as referidas partes, e um julgador equidistante, que não se envolve na fase persecutória. De acordo com o autor Tourinho Filho:

No processo penal acusatório, que campeou na Índia, entre os atenienses e entre os romanos, notadamente durante o período republicano, e que, presentemente, com as alterações ditadas pela evolução, vigora em muitas legislações, inclusive na nossa, existem, como traços profundamente marcantes:

a) o contraditório, como garantia político-jurídica do cidadão;

b) as partes acusadoras e acusada, em decorrência do contraditório, encontram-se no mesmo pé de igualdade;

c) o processo é público, fiscalizável pelo olho do povo (excepcionalmente se permite uma publicidade restrita ou especial);

d) as funções de acusar, defender e julgar são atribuídas a pessoas distintas, e, logicamente, não é dado ao Juiz iniciar o processo (ne procedat judex ex officio);

e) o processo pode ser oral ou escrito;

f) existe, em decorrência do contraditório, igualdade de direitos e obrigações entre as partes, pois ‘non debet licere actori, quod reo non permittitur’;

g) a iniciativa do processo cabe à parte acusadora, que poderá ser o ofendido ou seu representante legal, qualquer cidadão do povo ou órgão do Estado.

(TOURINHO FILHO, 1997, p.34)

No nosso país, o sistema jurídico adotado é o modelo acusatório, em consonância com os artigos 129, I da Constituição Federal e 3-A do Código de Processo Penal. “Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: I -  promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei” (BRASIL, 1988). “Art. 3º-A. O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação.” (BRASIL, 2019)

Tal modelo diferencia-se do modelo inquisitivo, uma vez que existe uma separação das funções de acusar, defender e julgar. No referido modelo, tem que haver uma separação clara do juiz e acusação, ou seja, o juiz deverá ser estranho à atividade instrutória. Nas palavras do autor Renato Brasileiro:

O modelo acusatório reflete a posição de igualdade dos sujeitos, cabendo exclusivamente às partes a produção do material probatório e sempre observando os princípios do contraditório, da ampla defesa, da publicidade e do dever de motivação das decisões judiciais. Portanto, além da separação das funções de acusar, defender e julgar, o traço peculiar mais importante do sistema acusatório é que o juiz não é, por excelência, o gestor da prova. (BRASILEIRO, 2020,p. 44)

O modelo acusatório é um modelo garantidor dos direitos fundamentais dos cidadãos, uma vez que nele há a separação das funções de acusar, defender e julgar, configurando assim, o devido processo legal.

3.3 O Sistema Misto

Existe também o modelo misto, que é a fusão dos dois modelos citados anteriormente. Neste modelo, existem duas fases processuais distintas, a fase investigatória e a fase processual. Como preleciona Renato Brasileiro:

É chamado de sistema misto porquanto abrange duas fases processuais distintas: a primeira fase é tipicamente inquisitorial, destituída de publicidade e ampla defesa, com instrução escrita e secreta, sem acusação e, por isso, sem contraditório. Sob o comando do juiz, são realizadas uma investigação preliminar e uma instrução preparatória, objetivando-se apurar a materialidade e a autoria do fato delituoso. Na segunda fase, de caráter acusatório, o órgão acusador apresenta a acusação, o réu se defende e o juiz julga, vigorando, em regra, a publicidade, a oralidade, a isonomia processual e o direito de manifestar-se a defesa depois da acusação. (BRASILEIRO, 2020, p. 45)

No mesmo entendimento, Paulo Rangel:

a) a fase preliminar de investigação é levada a cabo, em regra, por um magistrado que, com o auxílio da polícia de atividade judiciária, pratica todos os atos inerentes à formação de um juízo prévio que autorize a acusação. Em alguns países, esta fase é chamada de “juizado de instrução” (v.g. Espanha e França).

Há nítida separação entre as funções de acusar e julgar, não havendo processo sem acusação (Nemo judicio sine actore);

b) na fase preliminar, o procedimento é secreto, escrito e o autor do fato é mero objeto de investigação, não havendo contraditório nem ampla defesa, face à influência do procedimento inquisitivo;

c) a fase judicial é inaugurada com acusação penal feita, em regra, pelo Ministério Público, onde haverá um debate oral, público e contraditório, estabelecendo plena igualdade de direitos entre a acusação e a defesa;

d) o acusado, na fase judicial, é sujeito de direitos e detentor de uma posição jurídica que lhe assegura o estado de inocência, devendo o órgão acusador demonstrar a sua culpa, através do devido processo legal, e destruir este estado. O ônus é todo e exclusivo do Ministério Público;

e) o procedimento na fase judicial é contraditório, assegurada ao acusado a ampla defesa, garantida a publicidade dos atos processuais e regido pelo princípio da concentração, em que todos os atos são praticados em audiência.

(RANGEL, 2015, p. 52)

Diante da posse das informações acima, fica claro que o sistema misto contempla as características do modelo acusatório e inquisitório, num mesmo modelo.

3.4 A adequação do Juiz das Garantias ao modelo acusatório

 Atualmente, como já citado anteriormente, o modelo adotado no Brasil é o acusatório, tal informação é confirmada tanto pela Constituição Federal, quanto pelo Código de Processo Penal. Entretanto, existem algumas situações em que o juiz poderá agir de ofício, situações essas previstas no artigo 156, do Código de Processo Penal, que dispõe:

Art. 156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício: (Redação dada pela Lei nº 11.690, de 2008)

I – ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida; (Incluído pela Lei nº 11.690, de 2008)

II – determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante. (Incluído pela Lei nº 11.690, de 2008). (BRASIL, 2008)

Ocorre que, para que haja o fiel cumprimento do instituto do juiz das garantias, não há espaço para que o magistrado interfira na fase de investigação, atuando como gestor da prova, uma vez que sua função é ser o responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e agir quando provocado for, cumprindo as funções em que a prerrogativa seja reservada à autorização prévia do Poder Judiciário.

Ademais, essa é a única forma para que haja o cumprimento do modelo acusatório, previsto na legislação pátria, com as funções de acusar, defender e julgar, separadas, garantindo assim que os direitos fundamentais do acusado sejam respeitados e cumpridos.

Portanto, o juiz das garantias complementa o modelo acusatório adotado pelo nosso ordenamento jurídico penal, uma vez que ele reafirma a separação necessária entre os juízes que irão atuar na fase pré-processual e na fase de instrução e julgamento.

4.            O PROCESSO LEGISLATIVO DA LEI 13964/19 E O VÍCIO DE INICIATIVA DO PROJETO

Diferente do que muitos imaginam, no projeto original do Pacote Anticrime (Lei 13964/19) não havia a figura do juiz das garantias. O instituto foi inserido por meio de emenda, no momento em que passava pela apreciação da Comissão que foi criada pela Câmara dos Deputados. Tal matéria era objeto do projeto de Lei n. 8045/10, elaborado pelo Senado Federal, que até fora aprovado pelo Senado, no entanto ainda aguarda uma avaliação pela Câmara.  

Foi através da Lei 13964/19 (Pacote Anticrime), que o instituto do juiz das garantias foi implementado, alterando significativamente o nosso Código de Processo Penal e introduzindo os artigos 3ºA, 3ºB, 3ºC, 3ºD, 3ºE e 3ºF. A referida lei foi publicada em dezembro de 2019, teve trinta dias de vacatio legis, entrando em vigor em janeiro de 2020.

No entanto, no mês que a lei entrou em vigor, o Supremo Tribunal Federal, por meio do Ministro Luiz Fux, suspendeu a eficácia dos artigos supracitados, sob a alegação de vício de inconstitucionalidade formal e material. No que tange a inconstitucionalidade formal, tal alegação se dá em razão da forma da elaboração do projeto de lei do pacote anticrime, pois foi proposto pelo Ministro da Justiça, na época, Sérgio Moro, e aprovado legitimamente pelo Poder Legislativo.

A Ementa da Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.298 Distrito Federal, dispõe:

 DIREITO PROCESSUAL PENAL. ART. 3º-A, 3°-B, 3°- C, 3°-D, 3°-E e 3°-F DO CPP. JUIZ DAS GARANTIAS. REGRA DE ORGANIZAÇÃO JUDICIÁRIA. INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL. ARTIGO 96 DA CONSTITUIÇÃO. INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL. AUSÊNCIA DE DOTAÇÃO ORÇAMENTÁRIA PRÉVIA. ARTIGO 169 DA CONSTITUIÇÃO. AUTONOMIA FINANCEIRA DO PODER JUDICIÁRIO. ARTIGO 96 DA CONSTITUIÇÃO. IMPACTO SISTÊMICO. ARTIGO 28 DO CPP. ALTERAÇÃO REGRA ARQUIVAMENTO. ARTIGO 28-A DO CPP. ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL. SISTEMA DE FREIOS E CONTRAPESOS ENTRE ACUSAÇÃO, JUIZ E DEFESA. ARTIGO 310, §4º, DO CPP. RELAXAMENTO AUTOMÁTICO DA PRISÃO. AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA. PROPORCIONALIDADE. FUMUS BONI IURIS. PERICULUM IN MORA. MEDIDAS CAUTELARES PARCIALMENTE DEFERIDAS. (BRASIL, 2020)

Entendeu o Min. Luiz Fux, conforme disposto no texto da Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.298, que as regras atinentes ao juiz das garantias causam alteração profunda nas regras de organização judiciária criminal do país, pois de acordo com o texto dos referidos artigos, houve a divisão de funções, sendo que basicamente, um magistrado fica responsável pela fase de investigação e outro responsável pela fase de instrução e julgamento.

Ocorre que, de acordo com a Constituição Federal de 1988, a competência privativa para propor lei que altera regra de competência judiciária pertence ao Supremo Tribunal Federal, conforme dispõe o art 96 , I, “d” e II, “b” e “d”, da CF:

[…] Art. 96. Compete privativamente:

I - Aos tribunais: [...]

d) propor a criação de novas varas judiciárias.

II - Ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores e aos Tribunais de Justiça propor ao Poder Legislativo respectivo, observado o disposto no art. 169: b) a criação e a extinção de cargos e a remuneração dos seus serviços auxiliares e dos juízos que lhes forem vinculados, bem como a fixação do subsídio de seus membros e dos juízes, inclusive dos tribunais inferiores, onde houver; 

d) a alteração da organização e da divisão judiciárias; [...]

(BRASIL, 1988)

Dito isso, o Ministro Luiz Fux, na condição de Relator das Ações Diretas de Inconstitucionalidade 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305, ajuizadas em face da Lei n. 13.964/19, suspendeu sine die a eficácia, ad referendum do Plenário, a implantação do juiz das garantias. O ministro alegou que a referida Lei, ao tratar do instituto ora abordado, possui vício de iniciativa, e sua eficácia foi suspensa por tempo indeterminado, uma vez que a constitucionalidade da lei ainda será objeto de apreciação pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal.

Portanto, a alegação de vício formal advém da forma pela qual a lei 13.964/19 foi elaborada, uma vez que de acordo com a Constituição Federal do Brasil, não há possibilidade de criação de lei que altere a organização das divisões judiciárias originado de outra forma, se não pelos Tribunais, razão pela qual os artigos 3ºA, 3ºB, 3ºC, 3ºD, 3ºE e 3ºF foram suspensos, por tempo indeterminado, conforme explicitado anteriormente.

5.            A (IN) CONSTITUCIONALIDADE DO JUIZ DAS GARANTIAS E A DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

 

De acordo com a Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.298, do Min. Luiz Fux, os artigos 3º-A, 3°-B, 3°- C, 3°-D, 3°-E e 3°-F DO CPP, referentes ao juiz das garantias, são inconstitucionais.

Na decisão podemos ver que além da alegação de vício formal, explicada no capítulo retromencionado, existe também a alegação de inconstitucionalidade material. A inconstitucionalidade material segundo o Ministro existe em razão da ausência de prévia dotação orçamentária, uma vez que o juiz das garantias prevê que num mesmo procedimento existam dois juízes, o que acarretaria na necessidade do aumento de efetivo no número de juízes.

Apesar da decisão do ministro Luiz Fux do Supremo Tribunal Federal, ser desfavorável no que diz respeito à forma que foi implementado o juiz das garantias em nosso Código de Processo Penal, o juiz das garantias é inconstitucional?

Segundo, Fabiano Silveira:

A separação física entre juiz da investigação e juiz do processo é resultado de um percurso evolutivo que tem início, historicamente, na descentralização das funções de julgar e acusar. [...] Chegamos, então, a um nível de maior refinamento do processo penal acusatório, cuja estrutura aponta, por um lado, para a distinção dos papéis do juiz e do Ministério Público, e por outro, para a diferenciação interna do órgão judicial. (SILVEIRA, 2009, p.89)

Para que possamos responder essa pergunta, faz-se necessário uma análise do modelo adotado pela nossa Constituição.

Com a implantação da Constituição Federal de 1988, ficou claro que o Brasil optou pelo sistema acusatório em seu sistema penal, sistema esse que separa as funções de acusar, defender e julgar. Para Paulo Rangel, no processo penal brasileiro, o sistema vigente é o modelo acusatório, “pois a função de acusar foi entregue, privativamente, a um órgão distinto: o Ministério Público, e, em casos excepcionais, ao particular”. (RANGEL, 2012, p. 50)

Diante disso, podemos concluir que, para que haja consonância com o modelo acusatório adotado pela Constituição Federal, a figura do juiz das garantias não é só constitucional como também imprescindível, uma vez que, que com esta figura em nosso processo penal, o magistrado que irá realizar a sentença não ficará comprometido com a fase de investigação. Conforme destaca o Desembargador Ney Bello:

A modificação legal — em consonância com o que se faz no mundo ocidental — tem o condão de proteger a imparcialidade do magistrado que instrui e decide o processo, separando definitivamente quem acusa de quem julga, restabelecendo o equilíbrio entre defesa e acusação no processo criminal. (NEY BELLO, 2020)

Neste sentido, acredita-se que a imparcialidade do juiz pode ficar ‘contaminada’ se o magistrado que atua na fase pré-processual, atuar também na fase do processo até a sentença, uma vez que existem grandes chances do juiz envolver-se psicologicamente com o processo e assim, ocasionar danos aos direitos do acusado. Assim, ressalta Schreiber:

A atuação do juiz na fase de investigação pode prejudicar sua imparcialidade porque, em primeiro lugar, exige que o juiz mantenha um contato próximo com os atores incumbidos da persecução penal, em que é constantemente inteirado das etapas e rumos da investigação. (SCHREIBER, 2020, P.3).

No entanto, se houver a separação das funções do juiz das garantias, e do juiz que irá realizar a instrução e julgamento, não há que se falar em contaminação, parcialidade e subjetividade. Com a devida separação, o modelo acusatório será devidamente aplicado e respeitado em consonância com a nossa Constituição. 

Portanto, a figura do juiz das garantias no cenário jurisdicional penal é constitucional e de suma importância para a manutenção dos direitos garantidos constitucionalmente ao acusado.

6.            CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Enfatiza-se que a figura do juiz das garantias é de suma importância para reafirmação do modelo processual adotado pelo Brasil na constituição federal de 1988, o sistema acusatório e possui o intuito de agregar cada vez mais ao processo penal brasileiro, garantir os princípios básicos processuais e efetivar ainda mais o devido processo legal.

No que tange a legalidade e constitucionalidade, podemos afirmar que o juiz das garantias é uma figura que vai de acordo com a nossa Constituição e Código de Processo Penal e deve ser implementado de forma definitiva o quanto antes, para que haja o fiel cumprimento do modelo acusatório no sistema penal brasileiro.

Ocorre que, conforme retromencionado, o instituto foi introduzido com um vício de iniciativa de projeto, uma vez que ao alterar significativamente a estrutura dos tribunais brasileiros, não poderia ter sido proposto pelo então Ministro da Justiça, o Sr Sergio Moro.

Dito isso, a forma em que a figura do juiz das garantias (como um agente diferente do juiz que profere a sentença) foi implantada no sistema judiciário, foi considerada inconstitucional pelo ministro Luiz Fux, no entanto, em nenhum momento foi contestada a figura em si do juiz das garantias em nosso processo penal, levando assim, a um entendimento em que o juiz das garantias deverá sim ser implantado em nosso sistema penal no futuro.

Ademais, é certo que haverá um julgamento pelo Supremo Tribunal Federal posteriormente, uma vez que a decisão do Ministro Luiz Fux, suspendeu temporariamente a implementação do juiz das garantias.

Portanto, podemos concluir que o juiz das garantias é constitucional, legal e reafirma a escolha do nosso ordenamento jurídico pátrio, ao adotar o sistema acusatório, devendo ser implementado de forma definitiva o mais breve possível, para que o acusado não seja prejudicado com uma possível contaminação subjetiva do juiz.

Referências bibliográficas:

BELLO, Ney. JUIZ DAS GARANTIAS: avanço necessário!  Revista Consultor Jurídico, 3 de janeiro de 2020. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-jan-03/ney-bello-juiz-garantias-avanco-necessario. Acesso em: 09 de Outubro de 2020.

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Sobre os autores
Stephanie Miriam Barbosa Lima

Servidora Pública do Estado de Minas Gerais, na Instituição Polícia Civil de MG. Formanda em Direito pelo Centro Universitário UNA no 2º semestre de 2020.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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