Abuso do Direito de Defesa

Resumo:


  • A lentidão dos processos judiciais no Brasil tem causas complexas, como o pequeno número de magistrados em relação ao volume de processos nas comarcas e a imprudência ou negligência das partes em cooperar para que os trâmites sejam concluídos em um período razoável de tempo.

  • O abuso do direito de defesa no processo civil é um tema relevante, que pode gerar morosidade nos processos judiciais, sendo necessário adotar medidas para coibir práticas protelatórias e garantir o princípio da duração razoável do processo.

  • O abuso do direito de defesa pode ser caracterizado por atos ou omissões praticados pelas partes, amparadas pelo princípio da ampla defesa, que visam procrastinar ou protelar o processo, ferindo os princípios da cooperação e da boa-fé, podendo resultar em litigância de má-fé e aplicação de sanções pecuniárias.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

O presente artigo visa expor, de uma forma mais problematizada, o abuso do direito de defesa sem deixar de lado a garantia constitucional da ampla defesa e contraditório contida no artigo 5º da nossa Carta Magna.

Resumo: Recente pesquisa do Conselho Nacional de Justiça revelou que os processos em primeira instância no Brasil demoram, em média, 4 anos e 4 meses para serem julgados. Portanto, torna-se indispensável compreender quais são os motivos que levam à elevada demora para solucionar uma demanda judicial no país. A lentidão dos processos judiciais no Brasil tem causas complexas, seja pelo pequeno número de magistrados em relação ao volume de processos nas comarcas, seja pela imprudência ou negligência das partes em cooperar para que os trâmites sejam concluídos em um período razoável de tempo. Este trabalho apresenta uma análise bibliográfica e jurisprudencial para avaliar se o abuso do direito de defesa no processo civil tem relação direta com essa morosidade, provocando a demora no julgamento das demandas pelo Poder Judiciário. Dessa forma, a proposta deste estudo é examinar o instituto do abuso do direito de defesa, conceito jurídico de cunho indeterminado, e suas relações com o princípio da ampla defesa previsto no art. 5. da Constituição da República de 1988. As partes envolvidas em um processo judicial têm garantido, pelo Estado Democrático de Direito, o princípio da ampla defesa, entre outras normas previstas no Código de Processo Civil. Logo, se faz necessário verificar qual o limite destes princípios, a partir de uma melhor compreensão sobre eles, tendo em vista que são valores fundamentais, mas não gozam de status absoluto. O abuso do direito de defesa perpassa por todos os ramos de direito processual, ainda que seja focado no direito processual civil.

Palavras-chave: Abuso de direito de defesa. Princípio da ampla defesa. Conselho Nacional de Justiça. Constituição da República de 1988.

Abstract: A recent survey by the National Council of Justice revealed that cases at first instance in Brazil take, on average, 4 years and 4 months to be heard. Therefore, it is essential to understand what are the reasons that lead to the long delay in resolving a lawsuit in the country. The slowness of judicial proceedings in Brazil has complex causes, whether due to the small number of magistrates in relation to the volume of cases in the counties, or the imprudence or negligence of the parties in cooperating so that the proceedings are concluded in a reasonable period of time. This paper presents a bibliographic and jurisprudential analysis to assess whether the abuse of the right of defense in civil proceedings is directly related to this slowness, causing the Judiciary Branch to delay the demands. Thus, the purpose of this study is to examine the institute of abuse of the right of defense, a legal concept of an undetermined nature, and its relations with the principle of broad defense provided for in art. 5. of the Constitution of the Republic of 1988. The parties involved in a judicial process have guaranteed, by the Democratic State of Law, the principle of broad defense, among other rules provided for in the Civil Procedure Code. Therefore, it is necessary to verify the limit of these principles, based on a better understanding of them, considering that they are fundamental values, but do not enjoy absolute status. The abuse of the right of defense permeates all branches of procedural law, even though it is focused on civil procedural law.

Keywords: Abuse of the right of defense. Principle of broad defense. National Council of Justice. Constitution of the Republic of 1988.

1 INTRODUÇÃO

            A demora do Poder Judiciário para solucionar demandas é assunto corriqueiramente comentado não só no âmbito jurídico, mas também em outros meios, como o jornalístico, sendo bastante falado até mesmo pelo senso comum. Pela primeira vez em 2016, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) mapeou o tempo médio desde a ação, ou seja, o momento inicial em que o jurisdicionado move a máquina judiciária, chamado de distribuição, até o julgamento da demanda na primeira e segunda instâncias no Brasil, os chamados acórdãos ou sentenças.

            Nessa pesquisa ficou demostrado que o tempo médio de duração de um processo na justiça estadual, de primeira instância, é de 4 anos e 4 meses.

            O documento ainda demonstrou que o Tribunal de Justiça de Rio de Janeiro é o que possui menor tempo médio de execução da sentença, entre os tribunais de grande porte do Brasil. Por lá, o prazo médio é de 1 ano e 9 meses para julgar uma demanda, metade do tempo observado na média nacional. Por outro lado, a Justiça de Pernambuco é a que mais demora para prolatar uma sentença, podendo chegar à 7 anos de demanda judiciária.

            De acordo com Alexandre Freire Pimentel (ANO), a demora nos julgamentos de processos ocorre pelo déficit de juízes de primeiro grau, tendo em vista que o país já contabilizou um total de 450 mil ações para um só magistrado. Além disso, em alguns casos, a defesa se manifesta com evidentes recursos protelatórios, ou algum outro meio de abuso do direito de defesa, congestionando ainda mais a máquina judiciária.

            Assim, a proposta deste trabalho é analisar a demora nos julgamentos no país, com foco especificamente no instituto do abuso de direito de defesa à luz do Código de Processo Civil (CPC - Lei n. 13.105/2015), em contraponto aos princípios constitucionais do devido processo legal e da ampla defesa, observando seus limites, fundamentos, evolução histórica e hipóteses de consumação, passando pelas causas exemplificativas de litigância de má-fé, além de outras não consagradas.

            O instituto do abuso do direito de defesa aparece vagamente descrito no CPC por meio do trecho que consagra a tutela antecipada de evidência, sendo hipótese legal do cabimento da tutela antecipada, quando ocorre o abuso de direito de defesa. O abuso de direito de defesa é comumente visto na prática, mas pouco problematizado na doutrina. Dessa forma torna-se inquestionável a importância da delimitação do tema para sua compreensão prática.

            Dessa forma, esta pesquisa foi realizada com o intuito de saber quais são os principais abusos cometidos pelas partes, por quais motivos são praticados, e, por fim, quais os meios necessários para evitar estes abusos.

2 PRINCÍPIOS QUE REGEM O PROCESSO CIVIL

            Nota-se que quatro princípios que regem o processo civil guardam íntima relação com o abuso de direito da defesa, entre eles o princípio da cooperação, disposto no art. 6º do CPC, segundo o qual “todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva” (BRASIL, 2015). O segundo é o princípio da boa-fé e lealdade processual disposto no art. 5º do CPC, cujo texto prevê que “aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé” (BRASIL, 2015).      Há ainda o princípio da ampla defesa, este garantido pelo art. 5º da Constituição da República de 1988. Ele estabelece que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes” (BRASIL, 1988). Por fim, o mesmo artigo da Carta Magna trata do princípio da duração razoável no processo, em que “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação” (BRASIL, 1988).

            Cabe destacar que o processo conta com mais de uma parte, todas com direito a ampla defesa, assim como o dever de se comportarem com boa-fé e cooperação, não só entre si, mas também perante o juiz. O princípio da ampla defesa abrange processos judiciais e administrativos em que há a existência de litígio, portanto, nesses processos, necessariamente a ampla defesa deve ser observada e respeitada. No caso de processos não litigiosos, como os inquéritos policial e civil, a sindicância administrativa e a jurisdição voluntária, não necessariamente o princípio da ampla defesa precisa ser respeitado.

            O princípio da ampla defesa é bastante abrangente, e abarca outras subespécies de defesa, como o princípio do contraditório, direito de contestação, ou de impugnação de atos e atividades. Porém o princípio da ampla defesa não pode ser visto como absoluto, aliás, nenhuma norma ou princípio fundamental é absoluto ou pode ser interpretado como tal. Desse modo, o princípio da ampla defesa deve ser contrabalanceado aos princípios da cooperação e da boa-fé, assim como da lealdade processual.

            Portanto, a defesa em processos judiciais e administrativos deve ser a mais vasta possível, respeitando a ampla defesa e seu subtipo contraditório, conforme previsão do Estado Democrático de Direito de aduzir a sua defesa da forma que mais lhe convém. Porém os princípios da cooperação, boa-fé e lealdade processual vedam a utilização da defesa para as partes praticarem atos procrastinatórios ou ilícitos, tendo como finalidade única desviar o objeto do processo, isto é, embaraçar o andamento do feito, estratégia chamada pela doutrina de abuso de direito de defesa.

            Ou seja, de acordo com o princípio da cooperação, tanto as partes quanto o juiz devem se comprometer a colaboração mútua em todo o trâmite processual, para que se atinja uma duração razoável do processo com certa efetividade, o que interessa a todos os agentes que compõem a relação processual no processo civil.

            Dessa forma, não é adequada a interpretação do referido princípio de que há condições de aduzir às partes um dever contrário a seus interesses, pois é inegável a atuação em benefício próprio. É ficção pensar a busca pela melhor tutela jurisdicional se dá de forma desinteressada. Portanto, a cooperação deve ser entendida como a boa-fé objetiva das partes para o andamento sadio do trâmite, evitando nulidades, prevenindo deficiências, e permitindo suas devidas correções.

            A boa fé objetiva - diferentemente da subjetiva, que se encontra no âmago de alguma das partes na relação contratual - pode ser caracterizada pelas condutas exteriores das partes, que dizem respeito a lealdade, retidão e probidade. Ou seja, tais condutas, quando exteriorizadas no processo, devem obediência aos mandamentos éticos esperados do homem médio.

            Entre os exemplos deste tipo de conduta estão aqueles em que os sujeitos não podem violar norma jurídica, ou criar vícios processuais com o intuito de tirar proveito no decorrer da tramitação. Logo, não poderão contrariar comportamento anterior, isto é, ter comportamentos contraditórios durante o trâmite. Dessa forma, reza o princípio da boa-fé e lealdade processual que é vedado às partes qualquer comportamento que configure abuso de direito.

            Ademais, todas as partes envolvidas em um processo judicial ou administrativo, além de toda a sociedade, devem ter a garantia de que os processos vão tramitar em tempo razoável, com a devida celeridade, como dispõe o princípio da duração razoável do processo disposto na Constituição da República, para o bem de toda a sociedade, conforme previamente mencionado.

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            O referido princípio impõe aos poderes públicos e às partes que ajam com habilidade e eficiência durante todo o trâmite processual, para que não haja lesão à nenhuma das partes ou a toda coletividade com a demora processual. Portanto, atos processuais negligentes não são bem vindos em um processo, podendo até ser considerada litigância de má-fé.

            Uma questão controversa que se coloca no referido princípio diz respeito a qual seria a duração razoável do processo com a devida entrega dos direitos dos litigantes. O certo é que todo processo deve seguir a todos os princípios descritos acima, para que se efetivem decisões mais justas, repelindo todo ato de má-fé das partes, sejam elas os jurisdicionados ou o próprio juiz.

3 ABUSO DE DIREITO

            Em relação ao termo abuso de direito, diz Paulo Nader diz que se trata de uma “[...] é espécie de ato ilícito, que pressupõe a violação de um direito alheio mediante conduta intencional que exorbita o regular exercício de direito subjetivo” (NADER, 2004, p. 553). Por outro lado, Planioul apud. Vilas Boas diz que o termo é impróprio, tendo em vista que, onde há abuso não há direito. Para ele, a expressão

[...] é uma logomáquia, porque se eu sou de meu direito o meu ato é lícito, e quando ele é ilícito, é que eu ultrapasso o meu direito e ajo sem direito. (...) É preciso não ser logrado pelas palavras: o direito cessa quando o abuso começa, e não pode haver “uso abusivo” de um direito, qualquer que seja, pela razão irrefutável de que um só e único ato não pode ser ao mesmo tempo conforme o direito e contrário ao direito. (PLANIOUL, ANO, p. XX)

            Nota-se que o autor não considera o abuso de direito como a utilização inadequada de um direito, mas como verdadeiro fato antijurídico, ilícito em si, dotado de ilegalidade. Fato é que a expressão “abuso de direito” é positivada pelo Código Civil (Lei n. 10.406/2002), por isso, é necessário compreendê-la. Francisco Amaral considera que

O abuso de direito consiste no uso imoderado do direito subjetivo, de modo a causar dano a outrem. Em princípio, aquele que age dentro do seu direito a ninguém prejudica. No entanto, o titular do direito subjetivo, no uso desse direito, pode prejudicar terceiros, configurando ato ilícito, e sendo obrigado a reparar o dano. (AMARAL, 2003, p. 550)

            Extrai-se dos referidos trechos, assim como do próprio conceito estabelecido pelo Código Civil, que, sendo o abuso de direito considerado um excesso ou não, deve ser combatido. O referido instituto tem origem no clássico caso Clément-Bayard julgado na França em 1912. Se trata do conflito entre dois vizinhos, em que, um deles com o intuito de adquirir o terreno do outro, construiu várias pilastras pontiagudas de ferro em madeira. Tendo em vista que Bayard, o proprietário, era construtor de dirigíveis, este teve a aterrissagem das aeronaves dificultada.

            A positivação do abuso do direito no Brasil foi instituída após forte influência da lei civil portuguesa, mais precisamente do art. 334 do Código Civil do país europeu, segundo a qual “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito” (PORTUGAL, 1966).

            Importante ressaltar que a redação trata da boa-fé, bons costumes, fim social ou econômico, valores que estão contidos no art. 187 do Código Civil brasileiro, que disciplina o abuso de direito. De acordo com o documento, “também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestadamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social pela boa-fé ou pelos bons costumes” (BRASIL, 2002).

            O abuso de direito está disciplinado no capítulo do Código Civil relacionado aos atos ilícitos, no mesmo artigo que cita este instituto (art. 187 do Código Civil). Portanto, o abuso de direito é considerado uma conduta voluntária, comissiva ou omissiva, feita com dolo, imprudência, negligência ou imperícia, causadora de dano a outrem, através de um nexo de causalidade.

            Porém o abuso de direito difere dos atos ilícitos comuns, pois quem o pratica é titular de um direito subjetivo. Por ser titular de um direito subjetivo, este sujeito, não raras vezes pensa que seu direito é absoluto, e acaba ultrapassando os limites, contrariando manifestadamente as barreiras impostas pelo seu fim econômico ou social pela boa-fé ou pelos bons costumes, através de uma conduta dolosa ou culposa, cometendo assim um ato ilícito por abuso de direito.

            A doutrina elenca alguns casos de possíveis abusos de direito, quais sejam, matar o gado alheio que pasta no campo; requerer busca e apreensão sem necessidade; revogação pelo mandante sem nenhuma razão plausível; exercício egoístico, anormal do direito, sem motivos legítimos; esgotar o proprietário as fontes em seu terreno por mera emulação, e em detrimento dos vizinhos, entre outros. Entre tantos exemplos, é possível que só um caso concreto pode demonstrar o que configura, ou não, abuso de direito.

            Por outro lado, outros manifestações de direitos subjetivos não são considerados abuso de direito, e devem ser consideradas exceções, como aquelas praticadas em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido; a deterioração ou destruição da coisa alheia, ou a lesão a pessoa, a fim de remover perigo iminente; o desforço imediato e o direito de retenção. Destarte, será analisada a seguir uma posição jurisprudencial acerca do abuso de direito.

            O primeiro caso, a Apelação Cível (AC) n. 1.0685.15.001261-3/001, foi julgado pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais. O órgão entendeu que os embargos ao devedor interposto pelo município de Teixeiras foi um ato meramente procrastinatório, considerando o recurso improcedente e aplicando multa ao apelante.

EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL - EMBARGOS DO DEVEDOR - EXECUÇÃO DE TÍTULO JUDICIAL - AUSÊNCIA DE CÓPIA DO TÍTULO EXECUTADO - PEDIDO DE DISTRIBUIÇÃO POR DEPENDÊNCIA AO PROCESSO PRINCIPAL - AUSÊNCIA DE NULIDADE - PRINCÍPIO DA BOA-FÉ - VIOLAÇÃO DOS DEVERES DE LEALDADE E COOPERAÇÃO - EMBARGOS PROTELATÓRIOS - LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ.

1. Resta patente que a conduta perpetrada pelo Município de Teixeiras ao opor Embargos do Devedor alegando tão somente a ausência de título executivo, em que pese ter tido plena ciência de todo o processo principal que originou o título judicial, viola o princípio da boa-fé objetiva, que tem por escopo impor aos litigantes uma conduta moral, ética e de respeito mútuo, a fim de garantir a justa composição e a paz social, além da razoável duração do processo.

2. O artigo 14, II, do CPC/73, aplicável ao caso em análise, já contemplava o dever da parte em proceder com lealdade e boa-fé, sendo vedado ao litigante procrastinar a demanda com incidentes sem fundamento, agindo sob erro inescusável

3. Não obstante a ausência de fundamento razoável para a reversão do mérito da sentença de primeiro grau, sobretudo diante do reconhecimento judicial do manifesto caráter procrastinatório dos embargos, em que pese ser o direito de recorrer constitucionalmente garantido, entendo que o abuso desse direito não pode ser corroborado pelo Judiciário, razão pela qual condeno o apelante ao pagamento de multa fixada em 1% sobre o valor atualizado da causa.

4. Recurso desprovido, condenando o apelante ao pagamento de multa por litigância de má-fé.

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Vistos etc., acorda, em Turma, a 8ª CÂMARA CÍVEL do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, na conformidade da ata dos julgamentos, em NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO, CONDENANDO O APELANTE AO PAGAMENTO DE MULTA POR LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ. (MINAS GERAIS, AC 1.0685.15.001261-3/001, 24 de novembro de 2016)

            Resta agora a realização de uma análise como tentativa de compreender mais profundamente o que é abuso de direito de defesa.

4 ABUSO DO DIREITO DE DEFESA

            O CPCP dispõe, em única passagem, sobre o abuso do direito de defesa com a seguinte redação:

Art. 311. A tutela da evidência será concedida, independentemente da demonstração de perigo de dano ou de risco ao resultado útil do processo, quando:

I - ficar caracterizado o abuso do direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório da parte. (BRASIL, 2015)

            Como é possível perceber, o abuso de direito de defesa é citado no capítulo sobre a tutela provisória, mais especificamente colocado em referência à tutela de evidência, que será abordada posteriormente com mais detalhes. Mas isso não exclui, em tese, a possibilidade de as partes praticarem abuso de direito previsto no Código Civil, desde que esteja caracterizado o dano, a conduta, e o nexo de causalidade, pressupostos da caracterização dos atos ilícitos. Caso isso ocorra, dentro do processo, pode ser aberta outra demanda de conhecimento para se verificar o ilícito, e se caberá reparação dos eventuais danos.

            Reza a doutrina que o manifesto propósito protelatório é mais abrangente que o abuso do direito de defesa. O manifesto propósito protelatório são atos ou omissões praticados pela parte fora do processo, ou até mesmo antes deste, porém tendo íntima relação com o processo.

            Já o abuso do direito de defesa seriam os abusos de direito relacionados à ampla defesa e o contraditório, ou os atos meramente protelatórios na órbita concreta do processo, ou seja, os atos praticados dentro do processo. Dessa forma, tal abuso pode ser manifestado não só na contestação, mas em qualquer etapa do trâmite, inclusive nas exceções.

            Sabe-se que, de acordo com o princípio da boa-fé processual, as partes devem se comportar o mais eticamente possível dentro de um processo, isto é, se comportarem conforme os mandamentos da boa-fé objetiva, ou seja, suas condutas exteriores devem se ater minimamente, e dizerem respeito à lealdade, à retidão e à probidade. Tais comportamentos éticos devem ser seguidos pelas partes, sob pena de se presumir que estão praticando litigância de má-fé. De acordo com o CPC,

Art. 80.  Considera-se litigante de má-fé aquele que:

I - deduzir pretensão ou defesa contra texto expresso de lei ou fato incontroverso;

II - alterar a verdade dos fatos;

III - usar do processo para conseguir objetivo ilegal;

IV - opuser resistência injustificada ao andamento do processo;

V - proceder de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo;

VI - provocar incidente manifestamente infundado;

VII - interpuser recurso com intuito manifestamente protelatório. (BRASIL, 2015)

            Dessa forma, percebe-se que existe uma íntima relação entre o abuso do direito de defesa e a litigância de má-fé. A melhor interpretação do referido artigo é a de que o rol é exemplificativo, ou seja, não é taxativo, e de que existem atos não tipificados que podem ser configurados como litigância de má-fé, e, consequentemente, como abuso do direito de defesa. Porém estes atos devem ser verificados em cada caso concreto, tendo em vista que o abuso do direito de defesa é um conceito jurídico indeterminado.

            Como exemplo de atos processuais meramente protelatórios, parte-se do pressuposto de que o prazo preclusivo para a parte arrolar testemunhas é de 15 dias, que após a apresentação do rol ocorre preclusão, sendo que o advogado não poderá modificar o rol de testemunhas, salvo nos casos de falecimento, enfermidade, e não localização desta. Neste cenário, pode ocorrer um fato de deslealdade processual quando o advogado é intimado para arrolar testemunhas no prazo legal, e o faz com testemunhas fictícias, para quando estas, claro, não forem localizadas, o advogado tenha oportunidade de arrolar outra testemunha.

            Outro exemplo de abuso de direito de defesa acontece quando a parte tenta questionar a suspeição do perito depois de ser expedido o laudo pericial, tentando criar um obstáculo ao processo quando o laudo é desfavorável ao interessado. A suspeição só pode alegada no primeiro momento em que a parte falar nos autos após a indicação do perito.

            Felizmente, o Supremo Tribunal de Federal (STF) entende que não cabe a exceção de suspeição após ser expedido o laudo perícia. O julgado do STF dispõe que ainda que a ampla defesa não pode justificar o abuso do direito de defesa.

AGRAVO REGIMENTAL EM MANDADO DE SEGURANÇA. APLICAÇÃO DA SISTEMÁTICA DA REPERCUSSÃO GERAL A RECURSO EXTRAORDINÁRIO. IRRESIGNAÇÃO DA PARTE VENCIDA COM O RESULTADO DO JULGAMENTO.

O cabimento de mandado de segurança contra ato jurisdicional é hipótese excepcionalíssima e limitada a situação de flagrante teratologia, não verificável no caso. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é reiterada no sentido de que o princípio da ampla defesa não pode justificar o abuso no direito de recorrer diante do mero inconformismo da parte com resultado de julgamento desfavorável. Agravo regimental conhecido e não provido.

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Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em Sessão Plenária, sob a Presidência do Senhor Ministro Ricardo Lewandowski, na conformidade da ata de julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade e nos termos do voto da Relatora, em conhecer e negar provimento ao agravo regimental. Ausentes, justificadamente, o Ministro Celso de Mello e, neste julgamento, os Ministros Gilmar Mendes, Dias Toffoli e Luiz Fux. (AG.REG. EM MANDADO DE SEGURANÇA 32.714 MATO GROSSO DO SUL, 11 de setembro de 2014)

            Diante do exposto, o abuso do direito de defesa pode ser conceituado como atos ou omissões praticados por uma parte do processo, amparada pelo princípio da ampla defesa em um processo administrativo ou judicial litigioso, nos limites deste processo, com o fim de procrastinação ou protelação do mesmo, caracterizando-se, dessa forma, litigância de má-fé tipificada ou não em lei, e podendo tal ato se caracterizar ato ilícito.

5 LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ

            A litigância de má-fé é caracterizada pelo exercício abusivo dos direitos processuais, que se dá quando as partes voluntariamente agem de forma a criar empecilhos ao processo, fatalmente desrespeitando os princípios da cooperação e da boa-fé que regem o processo civil.

            Dessa forma, apresentar mentiras em juízo e requerer produção de provas não necessárias para a demanda são alguns dos exemplos que norteiam a questão da litigância de má-fé. Isto é, mesmo tendo a parte o direito a produzir eventuais atos processuais, eles podem ser ilícitos se não estiverem em acordo com o princípio da boa-fé. A ocorrência destes atos processuais pode caracterizar a propositura de outra demanda para se discutir eventuais danos, ou a parte pode, ainda, sofrer uma sanção no mesmo processo. De acordo com o CPC,

Art. 81. De ofício ou a requerimento, o juiz condenará o litigante de má-fé a pagar multa, que deverá ser superior a um por cento e inferior a dez por cento do valor corrigido da causa, a indenizar a parte contrária pelos prejuízos que esta sofreu e a arcar com os honorários advocatícios e com todas as despesas que efetuou.

§ 1º Quando forem 2 (dois) ou mais os litigantes de má-fé, o juiz condenará cada um na proporção de seu respectivo interesse na causa ou solidariamente aqueles que se coligaram para lesar a parte contrária.

§ 2º Quando o valor da causa for irrisório ou inestimável, a multa poderá ser fixada em até 10 (dez) vezes o valor do salário-mínimo.

§ 3º O valor da indenização será fixado pelo juiz ou, caso não seja possível mensurá-lo, liquidado por arbitramento ou pelo procedimento comum, nos próprios autos. (BRASIL, 2015)

            Nota-se que a parte prejudicada pode requerer a incidência da litigância de má-fé, assim como o próprio juiz, capaz de condenar a parte de ofício. A sanção, como se vê, é pecuniária, por meio de multa, que, em regram deve ser superior 1% e inferior a 10% do valor corrigido da causa, a indenizar a parte contrária pelos prejuízos que esta sofreu e a arcar com os honorários advocatícios e com todas as despesas que efetuou. No mais, o julgado da 18ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais entendeu por aplicar multa no agravante por litigância e má-fé.

EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO - CUMPRIMENTO DE SENTENÇA - PRELIMINARES - NÃO CONHECIMENTO DO RECURSO - AFASTADA - COISA JULGADA - ACOLHIMENTO - EXISTÊNCIA DE TÍTULO CERTO - LÍQUIDO E EXIGÍVEL - PENHORA DE QUOTAS SOCIAIS - MEIO PROCESSUAL INADEQUADO - LITIGÊNCIA DE MÁ-FÉ - VERIFICADA - MANIFESTO INTUITO PROTELATÓRIO NA INTERPOSIÇÃO DO RECURSO.

- Embora inegável que o agravante tenha levantado exaustivas razões, em sua peça recursal é possível aferir os pontos de irresignação, bem como os pedidos de reforma da decisão agravada, razão pela qual deve ser rejeitada a preliminar de não conhecimento do recurso. - O reconhecimento da coisa julgada impede a análise da matéria atinente a majoração da verba honorária. - Restando evidente a existência de título executivo judicial, sendo este certo líquido e exigível, afasta-se a alegação da agravante. - Não há que se falar em análise da hipótese de penhora de quotas do agravado, já que a via da impugnação ao cumprimento de sentença se revela inadequada para postular cumprimento de obrigação imposta ao exequente na ação originária. - Estando presente qualquer das hipóteses discriminadas no art. 80 do CPC, é imperativa a condenação da agravante em litigância de má-fé. AGRAVO DE INSTRUMENTO-CV Nº 1.0024.10.148337-8/006 - COMARCA DE BELO HORIZONTE - AGRAVANTE(S): HIDROLUX EMPREENDIMENTOS GERAIS LTDA - AGRAVADO(A)(S): PAULO ERNESTO VIEIRA FERNANDES

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Vistos etc., acorda, em Turma, a 18ª CÂMARA CÍVEL do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, na conformidade da ata dos julgamentos, em REJEITAR A PRELIMINAR DE NÃO CONHECIMENTO DO RECURSO, NÃO CONHECER DE PARTE DO RECURO, EM RAZÃO DA COISA JULGADA E, NO MÉRITO, NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO E APLICAR MULTA À AGRAVANTE POR LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ. (MINAS GERAIS, AI 1.0024.10.148337-8/006, 2020)

            Cabe destacar que existem alguns requisitos para que a sanção possa ser aplicada. O primeiro é de que a conduta deve ser amoldada a algumas das hipóteses descritas no art. 80 do CPC, regra que admite exceções, pois tal rol e exemplificativo; o segundo requisito consiste no fato de que a conduta lesiva da parte deve implicar em algum dano à outra; e o terceiro requisito prevê que, à luz do direito do contraditório que rege o processo, a parte deve ter garantido o direito de defesa sobre a suposta litigância de má-fé. Assim sendo, a multa é convertida para a parte contrária, que suportou os danos causados ao processo.

6 CONCLUSÃO

            O desenvolvimento deste trabalho possibilitou uma visão mais ampla acerca do abuso do direito de defesa, a partir de um entendimento mais problematizado sobre a questão. O tema é de suma importância, já que por muitas vezes o abuso de direito de defesa é responsável pela morosidade nos processos litigiosos no Poder Judiciário, ainda que não se perca de vista o princípio da ampla defesa, disposto no dispostos no art. 5º da Constituição da República, por meio de um contraponto entre eles.

            Como já exposto, alguns tribunais adotam medidas para coibir a prática do abuso do direito de defesa penalizando pecuniariamente a parte que o exerce de forma meramente protelatória, causando algum dano a outra parte e ferindo o princípio da boa-fé e cooperação.

            Portanto, dada a importância do assunto tratado, conclui-se que é necessária a imposição de sanções pecuniárias mais gravosas aos litigantes de má-fé, quando ficar evidente que o ato é caracterizado como abuso do direito de defesa, evitando assim práticas protelatórias, em face do princípio da duração razoável do processo, também disposto no art. 5º da Constituição da República.

REFERÊNCIAS

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