RESUMO
O presente trabalho discorre sobre a possibilidade de receitas culinárias serem protegidas pelo ramo do Direito Autoral. É apresentado o conceito de obra intelectual, objeto protegido pela Lei nº 9.610/98 (Lei de Direitos Autorais) e as características necessárias para uma obra receber tal classificação, demonstrando o raciocínio de diversos doutrinadores sobre o tema. Os chefs de cozinha criam pratos únicos e pessoais derivados de um processo criativo próprio, desta forma as pessoas que acompanham os seus trabalhos se surpreendem com os resultados e realizam a divulgação dos mesmos. Esta originalidade e criatividade tornam estas receitas culinárias aptas a serem protegidas pelo Direito Autoral em tese, uma vez que cumprem os requisitos de uma obra intelectual. Além disto, é apresentado uma análise de um julgamento para exemplificar como seria possível conceder esta proteção ao novo tipo de criação culinária.
Palavras-Chave: Direito Autoral, obra intelectual, receitas culinárias.
ABSTRACT
The present work discusses the possibility of culinary recipes being protected by the branch of Copyright. The concept of intellectual work is presented, an object protected by Law No. 9,610 / 98 (Copyright Law) and the characteristics necessary for a creation to receive such a classification, demonstrating the reasoning of several scholars on the subject. The current gastronomic market has undergone great changes with the popularity and profitability derived from the innovative dishes of professionals in this area, making the cuisine no longer have the sole objective of nutrition itself and becoming of great importance in terms of aesthetics and creativity. Kitchen chefs create unique and personal dishes derived from their own creative process, so people who follow their work are surprised by the results and publicize them. This originality and creativity make these culinary recipes able to be protected by Copyright in theory, since they fulfill the requirements of an intellectual work. In addition, an analysis of a trial is presented to exemplify how it would be possible to grant this protection to the new type of culinary creation.
Keywords: Copyright, intellectual work, culinary recipes.
INTRODUÇÃO
O Direito Autoral pode ser definido como o conjunto de direitos do criador de uma obra intelectual sobre a sua própria criação. Tais direitos possuem previsão legal em diversos tratados e convenções internacionais, além de que no ramo nacional estão previstos tanto na Constituição Federal quanto na Lei nº 9.610/98, a chamada Lei de Direitos Autorais e principal fonte desta matéria.
Nota-se que a Lei de Direitos Autorais conta com mais de 20 (vinte) anos de vigência, sendo que durante este tempo a mesma sofreu apenas uma reforma que tratou de dispositivos relacionados à gestão coletiva de direitos autorais.
Com a complexidade da vida contemporânea, novas obras foram surgindo com o intuito de satisfazer os novos comportamentos sociais. Derivado desta própria complexidade, a gastronomia nos dias atuais não se trata mais de mera necessidade alimentícia da sociedade, se tornando alvo de grande exploração econômica e também de entretenimento.
Dentro deste cenário, surgiu o debate se receitas culinárias poderiam serem objetos protegidos pela Lei de Direitos Autorais, sendo caracterizadas como obras intelectuais e com isto, resguardando-se os direitos do autor sobre a sua criação.
Este trabalho visa analisar esta possibilidade de receitas culinárias serem objetos de proteção pela Lei de Direitos Autorais. Observando-se principalmente entendimentos doutrinários, busca-se verificar se seria possível expandir a proteção do direito autoral para este tipo de objeto.
1 DIREITO AUTORAL E OBRAS INTELECTUAIS
O Direito Autoral ou Direito do Autor, pode ser estabelecido como as normas presentes na legislação atual que regem as relações entre o criador e a sua criação, seja ela artística, cientifica ou literária.
A Constituição Federal, em seu Art. 5º inciso XXVII garante ao autor o direito de publicação, utilização ou reprodução de suas obras. Esses são os chamados direitos exclusivos do autor ressaltados pela nossa Constituição, garantindo ao criador de uma obra o direito de escolher e permitir a forma de utilização, publicação ou reprodução de seu material. Vale ressaltar que esses direitos por estarem no Art. 5º da Constituição Federal são considerados direitos fundamentais, sendo inerentes à pessoa humana e essenciais à vida digna na sociedade.
Atualmente o Direito Autoral possui a Lei 9.610/98 como sua principal fonte, recebendo o nome de Lei de Direitos Autorais (LDA). Os direitos autorais em si são divididos entre morais e patrimoniais, porém ambos são garantidos ao criador da obra intelectual.
Com isto, fica claro que o objeto a ser protegido por este ramo do direito é a criação ou obra intelectual. O Art. 7º da LDA traz um rol de obras protegidas pelo direito autoral:
Art. 7º São obras intelectuais protegidas as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro, tais como:
I - os textos de obras literárias, artísticas ou científicas;
II - as conferências, alocuções, sermões e outras obras da mesma natureza;
III - as obras dramáticas e dramático-musicais;
IV - as obras coreográficas e pantomímicas, cuja execução cênica se fixe por escrito ou por outra qualquer forma;
V - as composições musicais, tenham ou não letra;
VI - as obras audiovisuais, sonorizadas ou não, inclusive as cinematográficas;
VII - as obras fotográficas e as produzidas por qualquer processo análogo ao da fotografia;
VIII - as obras de desenho, pintura, gravura, escultura, litografia e arte cinética;
IX - as ilustrações, cartas geográficas e outras obras da mesma natureza;
X - os projetos, esboços e obras plásticas concernentes à geografia, engenharia, topografia, arquitetura, paisagismo, cenografia e ciência;
XI - as adaptações, traduções e outras transformações de obras originais, apresentadas como criação intelectual nova;
XII - os programas de computador;
XIII - as coletâneas ou compilações, antologias, enciclopédias, dicionários, bases de dados e outras obras, que, por sua seleção, organização ou disposição de seu conteúdo, constituam uma criação intelectual
Importante ressaltar que o rol presente neste artigo é meramente exemplificativo, uma vez que na sua própria redação é usado a expressão “tais como”, gerando o entendimento que aquelas hipóteses não são taxativas. Logo, existe a possibilidade de outras obras serem consideradas como obras intelectuais para fins de aplicação da LDA.
Com a evolução tecnológica e social, os novos meios de comunicações ampliaram o acesso e as formas sob as quais uma obra pode se apresentar, gerando a necessidade constante de aprimoramentos à proteção dos direitos autorais. Contudo, a LDA sofreu apenas em 2011 uma alteração significante sobre o tema de gestão coletiva de direitos e desde então, apenas ajustes pontuais foram feitos na legislação.
O reflexo desta situação, foi que novos tipos de obras surgiram e as dúvidas se tais criações seriam obras intelectuais protegidas pelo Direito Autoral não possuíam respostas na legislação vigente.
Para a doutrina majoritária, existem certas premissas para que uma obra seja considerada uma obra intelectual e possa receber a devida proteção.
Eduardo Vieira Manso conceitua o que seria uma obra intelectual da seguinte maneira:
O objeto do Direito Autoral, assim, é a própria obra intelectual, manifestação inteligente de seu criador, qualquer que seja a sua forma de expressão, seu valor artístico, literário ou cientifico e sua destinação, contanto que tal obra se revista de originalidade (quanto a sua forma externa, com relação ao seu “corpus mechanicum”), ou de criatividade (quanto à sua forma interna, com referência ao seu “corpus mysticum”), merecendo proteção (...)
(MANSO,1980, p. 10)
Otávio Afonso também discorre sobre o que a criação deve possuir para ser considerada uma obra intelectual:
A criação do espírito, a originalidade e a forma sensível são elementos considerados por uns e outros autoralistas como necessários para que uma obra intelectual tenha proteção autoral. Não há um consenso quanto aos requisitos exigíveis para caracterizar uma obra intelectual passiva de proteção, mas, de qualquer forma, parece haver concordância de que, para gozar da proteção do direito de autor, a obra deve ser uma criação original.
(AFONSO,2009, p.12)
Carlos Alberto Bittar ressalta uma característica importante para as obras intelectuais:
A exigência fundamental para a proteção da lei autoral é que a obra seja revestida de um mínimo de criatividade, pouco importando a sua qualidade. (BITTAR,1994, p. 20).
Conclui-se que uma obra intelectual será todo e qualquer produto resultante de uma criação do espírito (fruto do talento da inteligência). Não importa o gênero da obra, desde que seja resultante do talento do homem e possuindo suporte material qualquer, sendo revestida do caráter da originalidade.
O requisito da originalidade se demonstra como o mais importante e complexo para uma obra intelectual, resultando em diversos debates nas situações fáticas se uma suposta criação estaria cumprindo esta exigência. Nas palavras do jurista brasileiro Henry Jessen:
A originalidade é condição sine qua non para o reconhecimento da obra como produto da inteligência criadora. Só a criação permite produzir com originalidade. Não importa o tamanho, a extensão, a duração da obra. Poderá ser, indiferentemente, grande ou pequena; suas dimensões no tempo ou no espaço serão de nenhuma importância. A originalidade, porém, será sempre essencial, pois é nela que se consubstancia o esforço criador do autor, fundamento da obra e razão da proteção. Sem esforço do criador não há originalidade, não há obra, e, por conseguinte, não há proteção.
(JESSEN, 1967. p.54.)
1.1 A Originalidade como condição para a proteção pelo Direito Autoral
É possível notar que para que uma nova obra, como por exemplo uma receita culinária, seja protegida pelo ramo do Direito Autoral, deve cumprir o requisito da originalidade. Este é o primeiro desafio a ser enfrentado pelo criador caso queira que sua criação seja considerada uma obra intelectual.
Esta originalidade não deve ser confundida com novidade, uma vez que este requisito demanda apenas que a obra tenha características próprias suficientes para que seja possível diferenciá-la de qualquer outra criação de outro autor do mesmo gênero. Desta forma, não necessariamente o produto deve ser algo nunca antes visto, mas sim conter uma característica pessoal do seu criador que torne tal obra diferente das demais e única de certa maneira, podendo ser mais relacionada com o aspecto da criatividade em apresentar um resultado singular e não ordinário.
A originalidade é ligada à sua individualidade, não sendo necessário que este conceito esteja na exteriorização apenas, mas podendo estar em um traço específico do produto em que seja possível notar o toque indiscutível de um autor próprio. Este requisito exige que a obra deve conter a intepretação pessoal do seu criador, não sendo apenas uma aplicação mecânica de conhecimentos alheios.
Ótavio Afonso explica sobre a condição da originalidade:
A terceira condição, como já vimos, indica que a originalidade da obra, no sentido do direito de autor, aponta para a sua individualidade, e não à novidade. Exige que o produto criativo, pela sua forma de expressão, tenha características próprias suficientes para distinguir de uma obra de qualquer outra do mesmo gênero, diferente da cópia, parcial ou total (o que tipificaria um plágio) (...)
(AFONSO,2009, p.15)
José Carlos Costa Netto discorre sobre a subjetividade deste requisito:
A expressão utilizada por Henri Desbois é a “originalidade da forma”, que explica: “A forma, sob a qual a ideia é apresentada, confere uma exclusividade, uma condição de ser original”. Mas, como se infere do entendimento desse célebre jurista francês, não se deve confundir originalidade com novidade. O termo “originalidade da forma” deve ser entendido de maneira subjetiva, tendo em vista as características próprias à modalidade da obra intelectual em questão. Já a “novidade”, requisito, principalmente, para obtenção de privilégios no campo da propriedade industrial, em que um modelo, desenho ou invenção tem que, necessariamente, trazer uma característica inovadora, é uma concepção de natureza objetiva.
(NETTO, 2019. p.160)
Para Sílvio de Salvo Venosa, uma obra dotada do caráter da originalidade deve ser:
(...) integrada de componentes individualizadores, de tal sorte a não se confundir com outra preexistente.
(VENOSA, 2005. p.636)
Por fim, cabe destacar as palavras de José de Oliveira Ascensão:
(...) pela criatividade, pelo que, se não houver uma base de criatividade, nenhuma produção pode franquear os umbrais do Direito de Autor.
(ASCENSÃO,1997, p.5.)
Logo, o caráter da originalidade deve ser observado para que a criação receba a proteção do Direito Autoral. Esta originalidade seria a presença de uma característica pessoal do autor em sua obra a tornando distinguível de outras criações e com isso sendo única de certa maneira, deixando de ser uma mera junção de elementos ordenados e se tornando um produto integralmente original.
É possível existirem diversos produtos do mesmo gênero anteriormente criados, mas este em específico decorre de um esforço criativo por parte do autor, necessitando que novo produto tenha uma qualidade única em sua forma em que está sendo expressado ou em sua própria estrutura. Assim, é possível a identificação do seu criador através desta assinatura, podendo diferenciar sua criação de qualquer outra obra pré-existente.
Para haver proteção autoral, não pode se tratar de uma cópia disfarçada de outra obra e sim conter um mínimo de originalidade por parte do criador. Não basta apenas um mero toque pessoal, é necessário que a obra possua características próprias que a diferencie de outras criações preexistentes. A criação deve possuir caracteres próprios decorrentes de um trabalho intelectual pelo autor, sendo única de certa maneira.
Observado isto, tal criação estará cumprindo a exigência da originalidade podendo ser considerada uma obra intelectual e recebendo a proteção do Direito Autoral em sua totalidade.
Em um contexto fático, a importância da originalidade para o reconhecimento de uma criação como obra intelectual é demonstrada pelo fato que a proteção autoral independe de um registro, sendo opção do autor querer registrar ou não a sua obra por meio do órgão público corresponde à natureza de sua criação. O Art. 18 da Lei de Direitos Autorais deixa a claro a não necessidade de registro da obra, uma vez que tal ato teria natureza apenas declaratória dos direitos já existentes.
Assim, no momento da criação da obra revestida de originalidade, o autor já tem os seus direitos sob a criação resguardados, não sendo um registro o requisito para a proteção autoral e sim a criação de uma obra derivada do esforço criativo do autor.
1.2 Rol exemplificativo obras intelectuais e a possibilidade de inclusão de novas criações
A Lei de Direito Autorais (9.610/98), em seu artigo 7º, elenca um rol de criações consideradas como obras intelectuais. Atenção ao caput do referido dispositivo transcrito abaixo:
Art. 7º São obras intelectuais protegidas as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro, tais como:
Nota-se que o legislador visa proteger as produções de espírito, independente da forma em que se materializem, atuais ou criadas no futuro. A expressão “tais como”, neste contexto demonstra que o rol listado nos incisos deste presente artigo é de caráter meramente exemplificativo, sendo possível a interpretação que outras espécies de obras sejam protegidas pelo Direito Autoral e não apenas as citadas.
O objetivo deste artigo é deixar claro que a obra intelectual deve ser uma criação de espírito, podendo ser expressa de qualquer forma. Claramente o legislador não visava elencar todas as possíveis criações dignas de receberem a proteção do direito autoral, uma vez que seria impossível prever todas as categorias que as invenções do futuro podem abranger.
O que se buscava ao listar determinadas classes nos incisos deste artigo era demonstrar exemplos de obras que podem serem consideradas como intelectuais, e não contornar um limite fixo sobre este tema.
Nas palavras de Otávio Afonso:
A lei brasileira enumera, de forma exemplificativa, as formas de exteriorização das criações do espírito que são amparadas, entre as quais estão os livros, folhetos, conferências, obras dramáticas, coreográficas, audiovisuais, fotográficas, desenhos e ilustrações, adaptações e traduções, entre outras.
(AFONSO,2009, p.12)
Para José Carlos Costa Netto:
A regra geral – tanto em relação à legislação interna brasileira quanto
às normas internacionais – é que não deve haver um elenco que inclua as diversas modalidades de obras intelectuais protegidas em caráter restritivo.
(NETTO, 2019. p.193)
Luiz Gonzaga da Silva Adolfo, comenta sobre como a evolução da sociedade gera reflexos nas novas modalidades de obras intelectuais:
O progresso da técnica, principalmente visualizado na Internet, no acesso mais rápido, mais amplo e mais eficaz de criações intelectuais dos mais variados gêneros representou um verdadeiro tsunami no Direito Autoral, que absolutamente não pode mais ser estudado e trabalhado com os meios e procedimentos (jurídicos) do século passado.
(ADOLFO,2008, p. 227)
Carlos Alberto Bittar ressalta a dificuldade de se prever todas as criações futuras afim de se criar um rol taxativo:
(...) as transformações sofridas na vida social em nosso tempo e aquelas que ainda estão por advir conferirão à posição dos homens em nosso planeta dimensões ainda nem sequer cogitadas pela grande maioria da população, não afeita a pesquisas científicas e à evolução que a conjugação entre a informática e as comunicações tem proporcionado.
Ora, o jurista deve, para que o Direito se ajuste à realidade social, estar atento a esses movimentos, na busca de equilíbrio entre o progresso material e a preservação dos valores naturais ínsitos na pessoa humana, em particular seu corpo, sua mente e as emanações de sua inteligência. Nessa ordem de ideias é que vimos trabalhando para o contínuo aperfeiçoamento dos sistemas jurídicos de proteção dos direitos da personalidade e dos direitos intelectuais, em especial os direitos autorais.
(BITTAR, 1999, p.25).
Ao analisar a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça entre o intervalo de tempo de 01 de janeiro de 2010 e 09 de agosto de 2020, foram encontrados os seguintes julgados, e em suas decisões os relatores discorrem sobre o tema:
(...) De qualquer modo, o rol de obras protegidas pela lei é claramente exemplificativo, tanto que o caput do artigo 7º manifesta intuito de resguardar as “criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido como ou que se invente no futuro”, finalizando com a expressão “tais como”, consubstanciando consagrada técnica legislativa que permite definição do sentido e alcance da norma mediante interpretação analógica.
(STJ – Resp: 1473392 SP 2013/0377818-9, Relator: Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Data de Julgamento: 11/10/2016, T4 – QUARTA TURMA, Data de Publicação DJe 21/11/2016)
(...) Ademais, também não assiste razão à Agravante no que se refere à alegada violação do artigo 842, § 3º, do Código de Processo Civil, porquanto, de acordo com o bem asseverado Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, “ O dispositivo legal somente requer observância quando os bens objeto da contratação estiverem compreendidos entre aqueles protegidos por direito autoral ou direitos conexos ao de autor, ou seja, no caso de contratação de obras intelectuais, artísticas e científicas relacionadas de modo exemplificativo nos incisos do artigo 7º da Lei nº 9.610/98. ”.
(STJ- AREsp: 205199 SP 2012/0148668-0, Relator: Ministro SIDNEI BENETI, Data de Publicação: DJ 08/11/2012)
(...) Como sabido, a lei de regência dos direitos de autor – Lei n. 9.610/1998 – ao tratar do objeto de proteção autoral, previu, de forma exemplificativa, obras expressamente protegidas (art. 7º) e aquelas que não serão objeto de proteção (art. 8º) (...).
(STJ- REsp: 1322325 DF 2011/0026518-1 Relator: Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Data de Julgamento 12/02/2014, T4 – QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 14/03/2014).
Logo, deve-se considerar as obras presentes no rol do Art. 7º da LDA como meros exemplos de obras intelectuais. Caso uma nova criação surja e possua os requisitos já citados anteriormente para se classificar como uma obra intelectual, o autor terá os seus direitos autorais resguardados, pois os objetos de proteção do Direito Autoral não são taxativos e podem abranger novas produções de espírito.
Desta forma, a inclusão de novas obras intelectuais é totalmente viável conforme uma sociedade avança no tempo, gerando novas situações e com elas novas invenções. Não apenas a popularidade e a ampla divulgação possuem relevante valor, mas também a própria profissionalização de uma certa área pode gerar a criação de novas produções de espírito, uma vez que irá ocorrer paulatinamente o surgimento de novas obras originais.
Conforme a sociedade se modifica no tempo, novas espécies de criações surgirão e o direito deve acompanhar esta evolução. Colocar uma restrição inflexível no que pode ser conceituado como uma obra intelectual seria desrespeitar a relação existente entre o Direito e as necessidades advindas da evolução da sociedade.
Antônio Luiz Machado Neto comenta sobre este aspecto da Sociologia Jurídica e a necessidade de adaptação entre o direito e a realidade social:
Norma social que é, o direito não surge à toa na sociedade, mas para satisfazer as imprescindíveis urgências da vida. Ele é fruto das necessidades sociais e existe para satisfazê-las, evitando, assim a desorganização.
(NETO,1984, p. 412.)
2 RECEITAS CULINÁRIAS
Percebe-se que, para uma criação ser considerada uma obra intelectual e conseguir receber a devida proteção pela Lei de Direitos Autorais, é necessário a presença de alguns requisitos, e entre eles a originalidade.
A própria lei e respectiva interpretação demonstram que é possível novas espécies de criações serem classificadas como obras intelectuais, mesmo que não estejam expressamente previstas na legislação, desde que os requisitos necessários sejam devidamente observados, conforme fora demonstrado anteriormente.
Antes de realizar a análise sobre a possibilidade de receitas culinárias possuírem tal traço característico para serem consideradas obras intelectuais, serão feitos alguns levantamentos sobre o mercado gastronômico em si atualmente.
2.1 Uma nova forma de se ver a gastronomia
Com o crescimento do mercado gastronômico, da internet e do entretenimento, as receitas culinárias não mais são utilizadas apenas para fins de nutrição em si, passando a se revelarem como uma maneira extremamente rentável de produzir conteúdo para as novas mídias e até mesmo na televisão.
Conforme pesquisa da revista Época, somente na categoria de reality show culinário, foram constatados na última década 112 (cento e doze) programas diferentes, entre eles a versão brasileira do MasterChef da Band e o Cozinha sob Pressão do SBT.
A novela Império, produzida e exibida pela Rede Globo na TV aberta entre os anos de 2014 e 2015, possuía a participação dos chefs Joaquim Lopes e Rafael Cardoso, que atuavam também como chefs de cozinha em um dos núcleos da novela. A televisão utiliza a popularidade da gastronomia para atrair o público e melhorar a sua audiência.
De acordo com levantamento feito pelo INEP/MEC, as faculdades especializadas em gastronomia cresceram em 64% (sessenta e quatro porcento) entre os anos de 2010 e 2016. Percebe-se claramente o crescimento do número de pessoas que desejam se tornar profissionais desta área.
É possível perceber um aumento dos perfis culinários em redes sociais devido a esta alta popularidade do tema, diversos chefs de cozinha e até mesmo cozinheiros amadores ganham cada vez mais notoriedade pelas suas criações que causam admiração pelos seus seguidores, que acompanham e compartilham os inusitados pratos.
Um exemplo desta popularidade é o chef de cozinha e jurado do programa MasterChef Brasil, Henrique Fogaça, que possui na sua conta do Instagram 03 (três) milhões de seguidores atualmente. Outro exemplo é a chef de cozinha Roberta Sudbrack, eleita em 2015 como a melhor chef mulher da América Latina pela revista inglesa Restaurant, que possui em sua conta do Instagram 212 (duzentos e doze) mil seguidores. Estes profissionais são apenas alguns entre os diversos deste mercado que possuem alta visibilidade em suas redes sociais.
Conforme pesquisa da ABRASEL (Associação Brasileira de Bares e Restaurantes), a expansão anual do setor de alimentação fora de casa é em torno de 10% (dez por cento), gerando aproximadamente 450.000 (quatrocentos e cinquenta mil) novos empregos por ano. A gastronomia se mostrou uma ótima área de investimentos, havendo esse crescimento exponencial de pessoas trabalhando na área.
Com toda essa atenção das novas mídias e o crescimento do mercado, a competição e a profissionalização dos trabalhadores desta área aumentaram conforme o público aumentava também. Os profissionais se empenham cada vez mais para conseguirem criarem receitas cada vez mais criativas e originais, não apenas para a degustação, mas também para a estética de suas criações serem diferentes daquilo a que o público já está acostumado.
Este mercado se demonstrou como uma ótima forma de investimento financeiro, se iniciando uma grande exploração econômica desta nova forma de gastronomia. A final de um programa de televisão de competição culinária chamado MasterChef que ocorreu no ano de 2019, chegou a garantir 4.1 pontos de média de IBOPE na Grande São Paulo, sendo o dobro da média comum que a emissora Band registrava no horário. Tal programa não foi apenas um sucesso pelo número de telespectadores, uma vez que esta edição do programa superou um recorde de inscrições ultrapassando a marca de 27 mil candidatos. Outro programa de televisão que demonstrou grande sucesso foi o Cozinha sob pressão, que em 2014 deu ao SBT o terceiro lugar na TV aberta, com 5.2 pontos de audiência, aumentando em dois pontos o que a emissora possui de audiência antes do programa.
Além disto, dados da CIELO mostram o crescimento de 3.2% (três ponto dois porcento) da receita de bares e restaurantes em 2019, sendo um dos setores responsáveis pela evolução da economia do país.
Cabe-se destacar que é cada vez mais comum os grandes restaurantes e centros gastronômicos contratarem grandes chefs para preparem pratos especiais para o estabelecimento.
Nos tempos atuais, é muito comum a divulgação nas próprias redes sociais de pratos preparados nas competições de que esses chefs participam, ou até mesmo das suas obras criadas para os restaurantes em que eles trabalham. Tais pratos superaram a noção básica de receitas culinárias, uma vez que por ser um mercado altamente competitivo, os chefs sempre se esforçam para superarem os seus trabalhos e proporcionarem novos pratos que causem uma experiência gastronômica superior em todos os sentidos e não apenas no gosto, mas também na própria estética.
Danilo Simões, coordenador do curso de gastronomia do Centro Universitário Estácio de Belo Horizonte, em entrevista ao jornal Estado de Minas comenta sobre o profissional de gastronomia nos tempos atuais:
É aquele perfil de profissional que só pensa na área, que mexe muito com a criatividade e a inovação (...) O tempo inteiro estamos criando, seja nos pratos e nas apresentações, seja na forma de ofertar o serviço.
Com visuais cada vez mais exóticos, as novas criações destes profissionais são admiradas por muitos, e com isso o próprio público consegue descrever os pratos do seu chef favorito pois cada um possuí a sua própria maneira ou assinatura de confeccionar um prato. Mesmo que os profissionais desta área utilizem os mesmos ingredientes para realizar uma receita, a maneira em que será apresentado o resultado final do prato será diferente conforme a especialidade de cada chef, existindo um caráter artístico e inovador próprio daquele profissional em si.
O professor Charles Spence, psicólogo experimental da Universidade Oxford, comenta sobre um estudo relacionado a apresentação de um prato:
A aparência da comida e a forma como ela está disposta no prato têm grande impacto porque geram expectativas. Nosso cérebro imagina o gosto, e isso influencia a experiência (...) Damos a todos a mesma comida, mas para metade deles o produto vem simples num prato. Os demais recebem os mesmo elementos, mas artisticamente dispostos para parecer uma pintura de Kandinsky. Os que recebem o alimento com uma imagem melhor dão uma nota maior ao sabor e estão dispostos a pagar mais pelo prato
2.2 A originalidade das novas receitas culinárias
Observada essa nova visão aplicada para as receitas culinárias devido ao crescimento do mercado culinário, deve-se observar se os requisitos para que uma criação se caracterize como uma obra intelectual estão presentes.
Em relação aos livros que contêm receitas culinárias não há dúvidas, pois tratam-se de obras literárias, logo possuem a devida proteção pelo Direito Autoral. Conforme comenta Eliane Y. Abrão:
A publicação marca a etapa final do processo de criação, é o momento de a obra vir ao conhecimento de uma ou mais pessoas, com as mesmas características com que via ganhar o grande público. A partir daí, autor é um nome, porque a obra passa a ter vida própria.
(ABRÃO, 2002, p.74)
Sobre esta questão, cabe-se ressaltar que apenas o teor do livro em si está sendo protegido e não as descrições de suas receitas, sendo que as mesmas podem serem objetos de comercialização por quaisquer pessoas ou restaurantes. A proteção do direito autoral no caso dos livros de receitas culinárias é aplicada apenas na obra literária em si, não possuindo relação com as receitas ali descritas em seu conteúdo. Embora, caso o entendimento adotado seja que uma receita possui o critério da originalidade e seja uma obra intelectual, ela também será protegida pelo direito autoral de forma individualizada, devendo o autor do livro de receitas fazer a devida referência ao criador da receita.
Agora o desafio é a receita de um alimento em si receber essa proteção, uma vez que seria necessária a comprovação de que tal criação não seria apenas uma junção de elementos sem esforço criativo.
Ao analisar os requisitos para uma obra intelectual notamos que o objeto deve ser uma manifestação inteligente de seu criador, independe da forma, contanto que tal obra se revista de originalidade. Com isto, notamos que a princípio não haveria nenhum problema receitas culinárias adentrarem no rol de proteção do Direito Autoral, desde que comprovada a originalidade de criação em si.
De fato, a maior parte das receitas culinárias criadas tradicionalmente não poderiam serem consideradas obras intelectuais por serem meramente uma lista de ingredientes ordenados. Mas ao analisar o novo mercado gastronômico, notamos o surgimento de receitas que desenvolvem um caráter artístico próprio, até mesmo em relação a suas estéticas.
Diversos chefs criaram uma identidade própria para os seus pratos, desta maneira as suas criações teriam traços únicos daquele autor em específico. Isto exige todo um processo criativo para que seja possível criar uma identidade visual em algo meramente alimentício, é necessário um esforço por parte do criador para que o produto gerado possua características suficientes para se diferenciar de qualquer outra forma de expressão já feita, atraindo assim mais notoriedade para o seu trabalho.
Essa seleção única de aspectos que o chef apresenta em sua obra, torna capaz de se identificar sua criação entre as demais, tornando-se a receita gastronômica única e causando grande diferença quando da escolha de um prato culinário pelo outro. Devido a isso, é sensato que os grandes restaurantes priorizem contratarem profissionais que possuem estes pratos únicos, pois assim a clientela apenas encontrará tal produto naquele estabelecimento.
O argumento que essas novas receitas culinárias não poderiam ser consideradas obras intelectuais pois configuram uma mera repetição de algum outro prato tradicional, não merece prosperar. Tal linha de raciocínio ignora o fato que mesmo que suposta receita tenha como base um prato já popularmente conhecido, houve ali um trabalho por parte do autor de desenvolver um produto criativo, contendo aspectos próprios daquele chef. Conforme já mencionado neste trabalho, a originalidade não pode ser confundida com a novidade, uma obra intelectual deve ser capaz de externar o modo pessoal do autor sobre aquele objeto apenas. José Carlos Costa Netto menciona um exemplo de Henry Desbois sobre o tema:
Há dois pintores, que sem estar combinados e sem apoio mútuo, fixam um depois do outro, sobre suas telas, a mesma paisagem, dentro da mesma perspectiva e sob a mesma claridade. A segunda dessas paisagens não é nova no sentido objetivo da palavra, já que, por hipótese, a primeira teve por tema a mesma paisagem. Mas a ausência de novidade não coloca obstáculo à constatação da originalidade: os dois pintores, efetivamente, desenvolveram uma atividade criativa, tanto um como outro, tratando, independentemente, o mesmo tema. Pouco importa que, se eles pertencem à mesma escola (estilo), que suas respectivas telas apresentem semelhanças entre si. Ambas se constituirão obras absolutamente originais.
(NETTO, 2019. p.160)
O requisito da originalidade na prática pode ser algo difícil de se constatar no caso de receitas culinárias, porém com todo o crescimento do mercado gastronômico, começaram a surgir pratos que são extremamente expressivos e não mais uma mera combinação de gostos ou ingredientes.
As receitas culinárias possuem a possibilidade de serem consideradas como obras intelectuais, caso seja observado o requisito da originalidade, sendo uma real expressão do autor e não uma mera junção de elementos.
Cada vez mais, pratos únicos são criados pelos chefs de cozinha afim de satisfazerem a clientela e elevarem o nível de seus trabalhos. Algumas destas criações superaram a finalidade da degustação em si e se tornaram verdadeiras produções artísticas, com suas estéticas únicas e toques pessoais próprios do autor.
Como já demonstrado neste trabalho, a doutrina trabalha com a subjetividade do conceito de originalidade, basta que a obra possua características exclusivas do esforço daquele autor, sendo possível diferenciá-la das produções de outros criadores.
Desta forma, as obras gastronômicas que ultrapassam a mera junção de ingredientes e possuem todo um processo criativo por trás da estética e elaboração do prato em si, em tese estariam observando o requisito da originalidade e seriam dignas de receberem a proteção pelo Direito Autoral.
A reinvenção da gastronomia se tornou algo extremamente rentável com o chamado food design, que seria a criação de pratos esteticamente desafiadores, estabelecendo novas relações entre pessoas e alimentos. A apresentação de pratos visualmente exóticos e inusitados proporciona para os clientes uma experiência diferente de consumo, fazendo com que a demanda deste tipo de produção aumente cada vez mais e com isso, novos desafios surgem para os chefs de melhorarem suas obras com uma criatividade única.
Cada vez mais a culinária moderna se mostrou capaz de produzir criações criativas e ousadas, sendo a própria exteriorização do prato um espetáculo à parte. Com a estética se tornando uma parte essencial para a receita, o design de cada prato é elaborado através de um árduo processo criativo por parte do chef.
Uma obra culinária em si possuí como elemento principal uma característica dotada de originalidade, se diferenciando de quaisquer outras criações ordinárias. Essa característica pode se demonstrar através de uma estética única, decorrente de um processo criativo próprio do autor, sendo uma criação distinta de qualquer outra existente e não sendo mais uma mera junção ordenada de ingredientes conhecidos, tornando um produto original apresentado por uma ótica própria daquele autor. Outra característica que pode conferir essa originalidade é o caso de uma receita inovadora desde a sua criação, sendo uma obra individual em que os próprios ingredientes e a forma de apresentação nunca foram utilizados de certa maneira, proporcionando um prato realmente a parte de tudo já criado na gastronomia antes.
Essa situação trata-se de uma criação intelectual resultante do próprio esforço humano, revestida de originalidade e criatividade sendo exteriorizada na forma material de uma receita culinária. Os requisitos para a caracterização de uma obra intelectual estão presentes nestas receitas inovadoras em tese, sendo possível uma proteção por parte do Direito Autoral.
3 ANÁLISE DO CASO “ALOHA ALIMENTOS LTDA ME x SWELL SUCOS E SALADAS”
Com o intuito meramente exemplificativo, será feita uma análise sobre o caso envolvendo a empresa Aloha Alimentos LTDA ME e a lanchonete Swell Sucos e Saladas.
EMENTA APELAÇÃO CÍVEL. INOCORRÊNCIA DE VIOLAÇÃO DE DIREITOS AUTORAIS. AUSÊNCIA DE CARÁTER CRIATIVO DAS RECEITAS GASTRONÔMICAS QUESTIONADAS. APLICAÇÃO DE MÉTODO DE ESCOLHA E ORGANIZAÇÃO DE INGREDIENTES COMUNS. 1. A Autora propôs ação ordinária a fim de obter tutela jurídica, alegando violação dos seus direitos autorais, tendo em vista que a Ré, supostamente, teria copiado 3 (três) saladas do seu cardápio, quais sejam, Salada de Tilápia, Rosbife ao Pesto e Salmão. 2. A sentença proferida pelo Juízo a quo foi de parcial procedência, a fim de condenar a Ré-Apelante ao pagamento de indenização a título de danos morais, além de determinar a retirada das 3 (três) saladas do cardápio da Ré, proibindo, para tanto, que estas fossem comercializadas em seu estabelecimento. 3. A referida pretensão não merece prosperar, pois as saladas controvertidas não podem ser consideradas obras gastronômicas intelectuais, passíveis da tutela dos direitos do autor. 4. Compreende-se que uma obra intelectual gastronômica é assim conceituada por representar a exteriorização da criatividade, captável através dos sentidos. Portanto, quando a ideia toma a sua forma, ou seja, quando se materializa numa receita ou prato, tem-se uma verdadeira obra gastronômica.5. Convém observar que para que prato ou uma receita culinária sejam conceituados como obra gastronômica, devem conseguir exprimir as vontades e subjetividades do seu autor, revelando-se legítimas formas de expressão cultural e humana, assim como é a pintura, fotografia, obra dramática, audiovisual, dentre outras expressões artísticas. 6. As saladas postas em questão representam a união de ingredientes comumente utilizados em diversas outras receitas deste gênero que podem, inclusive, ser encontradas em receitas de internet e livros. Representam, portanto, um método de escolha e organização de ingredientes comuns, não podendo ser consideradas produtos de uma expressão artística autêntica. 7. Frente à ausência do caráter criativo das receitas questionadas compreende-se que o direito autoral, regulamentado pela Lei nº 9.610/1998, não pode prestar-se a protegê-las, pois não se revelam verdadeiras criações de espírito. 8. Recurso conhecido e provido. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Desembargadores da Primeira Câmara Cível, por unanimidade, CONHECER e DAR provimento ao apelo, nos termos do voto do Relator. Vitória/ES, de de 2017. PRESIDENTE RELATOR.
(TJ/ES - APL 00153824620118080035, Relator: Jorge Henrique Valle dos Santos, Data de Julgamento: 18/07/2017, Primeira Câmara Cível, Data de Publicação: 24/7/2017).
Trata-se de um recurso de apelação interposto pela lanchonete Swell Sucos e Saladas condenada ao pagamento de indenização a título de danos morais, no valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais) além de ser obrigada a retirar 03 (três) saladas do seu menu, uma vez que tais pratos supostamente teriam sidos confeccionados pela Aloha Alimentos LTDA ME antes mesmo da inauguração do seu estabelecimento. A empresa teria contratado um profissional da área gastronômica para criar as referidas saladas e após a abertura do estabelecimento, a lanchonete em questão teria começado a comercializar pratos praticamente idênticos.
Com isto, o magistrado de primeiro grau entendeu que era caso de violação ao direito autoral, reconhecendo que a criação das referidas receitas culinárias era dotada de originalidade e se caracterizava como uma criação de espírito, desta forma tais obras seriam protegidas pelo direito do autor. Logo, a lanchonete Swell Sucos e Saladas interpôs o recurso de apelação contra a sentença condenatória.
Percebe-se que o próprio magistrado a quo já reconheceu neste caso a possibilidade de uma receita culinária ser considerada uma obra intelectual para fins de proteção pelo direito autoral, tese que de modo algum foi afastada pelo juízo ad quem.
O tribunal reformou a sentença, declarando a inexistência de violação ao direito autoral, acolhendo os argumentos apresentados pela lanchonete. Porém, cabe-se analisar o voto do relator neste caso concreto pois algumas observações importantes foram feitas.
Em seu voto, o relator afirma que o rol presente no Art. 7º da Lei de Direito Autoral é um rol meramente exemplificativo. Visto isto, seria debatível se receitas culinárias podem ser protegidas pelo direito autoral.
Superada esta questão, o relator discorre sobre como o mercado gastronômico se comporta atualmente, enfatizando a busca dos profissionais desta área em confeccionar novos pratos com o aprimoramento de suas técnicas e visuais gastronômicos. Através das próprias palavras do Relator Jorge Henrique Valle dos Santos em seu voto do referido processo:
Portanto, cozinhar, muita as vezes, deixa de ser uma mera repetição de técnicas e receitas, passando a representar a expressão do artista – o cozinheiro –, a qual tem como produto a sua obra gastronômica, e embora muitos não a considerem uma legítima obra artística, o seu caráter criativo é inegável. Assim sendo, compreende-se que um prato ou uma receita culinária podem ser conceituados como obras gastronômicas do seu autor, relevando-se legítimas formas de expressão cultura e humana, assim como é a pintura, fotografia, obra dramática, audiovisual, dentre outras expressões artísticas.
Observa-se que o magistrado reconhece que na gastronomia moderna, diversos chefs criam pratos únicos que possuem uma assinatura própria daquele autor. Tais obras resultam de um processo criativo e não de uma mera junção de elementos, sendo até mesmo comparadas com obras artísticas pelo relator. O que está sendo destacado aqui é a presença da originalidade, requisito este essencial para uma produção ser considerada um obra intelectual, como já fora demonstrado neste trabalho.
O relator em seu voto demonstra expressamente o entendimento que, observado essa exteriorização da originalidade e não se configurando uma repetição de receitas ou uma mera inovação de técnicas de montagem, um prato pode sim se configurar como uma obra intelectual digna da proteção pelo direito autoral.
Assim sendo, ainda que a legislação brasileira não aborde expressamente as obras gastronômicas como sendo passíveis de receber a tutela dos direitos autorais, compreende-se como verdadeiras criações de espírito.
Portanto, superado o entendimento de que obras gastronômicas podem e devem ser tuteladas pelos direitos autorias, analisar-se-á o referido tema sob a ótica do caso concreto.
O caso em análise não reconheceu a violação do direito autoral pelo fato que os 03 (três) pratos de saladas comercializados pela lanchonete não se configurariam como obras gastronômicas por não possuírem o requisito da originalidade.
Tal conclusão decorre que como fora demonstrado nos autos, tanto o apelante quanto o apelado contrataram profissionais para confeccionarem certas receitas, com isto ambos produzirem para os seus respectivos contratantes pratos que possuíam os mesmos ingredientes e uma forma de preparo comum, não havendo por parte de nenhum dos profissionais um processo criativo para uma criação de espírito, e sim uma mera junção de elementos de forma ordenada. Nas palavras do relator em seu voto:
As referidas saladas representam, portanto, um método de escolha e organização de ingredientes comuns, não podendo ser consideradas produtos de uma expressão artística autêntica. Ademais, ainda que não seja possível encontrar outra salada idêntica a que foi confeccionada pela Autora-Apelada, os principais ingredientes das 03 (três) saladas contestadas estão presentes na maioria das receitas de diversas saladas. Portanto, o que se tem é uma simples variação dos demais ingredientes.
Conforme mencionado no início deste trabalho, a discussão envolvendo a proteção das receitas culinárias pelo direito autoral não se aplica às receitas tradicionais, pois estas configuram uma mera junção de ingredientes através de um processo repetitivo. O que deve ser discutido é o caso das novas receitas culinárias decorrentes do mercado gastronômico atual, que explora cada vez mais os pratos exóticos criados por diversos chefs através de um processo criativo para expressar o sentimento daquele autor, gerando um produto com uma experiência extraordinária não só no sabor, mas até mesmo na estética do resultado final.
Mesmo que este julgado tenha afastado a violação do direito autoral, está claro que uma obra gastronômica que possua o requisito da originalidade pode ser protegida pelo direito autoral. A gastronomia moderna impulsiona a criação destes novos tipos de receitas pois é uma área altamente rentável e louvável, com isto o direito autoral deve ter os seus entendimentos evoluídos para abrangerem como obra intelectual estas novas criações de espíritos que estão surgindo no mundo das receitas culinárias.
CONCLUSÃO
O direito autoral possuí como objeto as chamadas obras intelectuais, que são criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro. As obras intelectuais possuem como característica essencial a originalidade, ela sendo a presença de componentes individualizadores que tornem a obra distinguível de todas as outras criações do mesmo gênero.
A Lei de Direito Autorais possui uma lista exemplificativa de obras que podem ser consideradas como obras intelectuais, no entanto este rol não é taxativo e outras espécies de criações podem vir a receberem a proteção pelo direito autoral.
O mercado gastronômico atual por ser extremamente admirável e ao mesmo tempo rentável, criou um vasto público que acompanha frequentemente os pratos feitos pelos os seus chefs favoritos. Os profissionais desta área, criam novas receitas culinárias para tentarem acompanhar a competitividade deste mercado e agradarem os fãs com pratos exóticos, feitos através de um processo criativo para expressar os sentimentos daquele autor, gerando um produto com uma experiência extraordinária não só no sabor, mas até mesmo na estética do resultado final.
Estas novas obras gastronômicas podem ser consideradas obras intelectuais desde que observado o critério da originalidade, não se tratando de uma mera junção de elementos, mas sim um produto totalmente criativo e único. O direito deve sempore acompanhar os interesse da sociedade, e com o crescimento do mercado gastronômico, os chefs criadores desta nova espécie de obra intelectual possuem o direito de gozarem da proteção autoral para as suas obras.
Conclui-se que caso a receita culinária não seja mais um prato ordinário, e seja o caso de uma obra criativa decorrente de um esforço por parte de seu criador para gerar um produto original, a sua criação deverá ser reconhecida como uma obra intelectual e receber a devida proteção autoral.
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