Bem dizia o poeta renascentista Camões ao compor, em um de seus sonetos: “mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”. Nesta senda, pode-se dizer que a mudança é tão contundente que chega a ser inexorável tal qual o próprio tempo. Aliás, a ideia de que nada permaneceria igual no decorrer da existência já estava presente no pensamento filosófico de Heráclito, ainda na Idade Antiga. Após esse ensejo poético, voltamo-nos às relações sociais para perceber que estas são dotadas de valores e interesses inerentemente mutáveis. Exemplo disso são as profundas mudanças de paradigmas impostas à sociedade diante do atual cenário pandêmico atribuído à disseminação da COVID-19, doença causada pelo vírus Sars-Cov-2, popularmente conhecido como o novo Coronavírus. Diante da constatação do aumento no surgimento de doenças que têm como origem zoonoses (como é o caso da COVID-19), torna-se necessária a implementação e o aperfeiçoamento de políticas sanitárias visando à adoção de estratégias eficazes de vacinação.
No contexto da premente pandemia, grupos científicos ao redor de todo o mundo se articularam, de modo que dezenas de vacinas encontram-se sendo distribuídas. Nessa esteira, tem se destacado a politização da imunização como principal fator norteador da implementação das campanhas de vacinação. No Brasil foi foco de polêmica o estabelecimento da obrigatoriedade de vacinação e está cada vez mais comum a judicialização de temas a respeito das consequências da recusa à vacinação. Inclusive, neste sentido tivemos um recente julgado da 2ª Vara do Trabalho de São Caetano do Sul firmando o entendimento de que a recusa em vacinar-se pode resultar em dispensa por justa causa.
Aliás, há que se acrescentar que a questão da vacinação compulsória tem aplicabilidade não apenas na contenção do avanço do Sars-Cov-2 – vírus causador da doença COVID-19 –, mas também na efetivação do Programa Nacional de Imunizações. A crescente queda nos índices de imunizações de crianças, o reaparecimento de enfermidades antes erradicadas no Brasil (tais como sarampo e poliomielite) e os surtos de algumas dessas doenças atestam a patente necessidade em se discutir a questão da obrigatoriedade da vacinação.
Recente entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal em 17 de dezembro de 2020 declarou a constitucionalidade da vacinação compulsória contra a Covid-19, prevista na Lei 13.979/2020, determinada pelo Estado, sendo afastadas medidas invasivas como o uso da força para exigir a imunização. Ademais, a Corte Suprema autorizou, por dez votos a um, a imposição de medidas restritivas para quem não se vacinar contra a Covid-19.
A institucionalização de políticas públicas voltadas à imunização contra enfermidades ocorreu com o advento da Lei nº 6.259/1975, que dispõe sobre a organização das ações de Vigilância Epidemiológica, sobre o Programa Nacional de Imunizações e estabelece normas relativas à notificação compulsória de doenças. Essa lei prevê, em seu art. 3°, a competência do Ministério da Saúde para elaborar o Programa Nacional de Imunizações, definindo o calendário de vacinações, inclusive as de caráter obrigatório.
A regulamentação básica da referida lei pela implementação do Programa Nacional de Imunizações ocorreu através do Decreto nº 78.231/1976. Esta norma determina a obrigatoriedade das vacinações estabelecidas pelo Ministério da Saúde, conforme consta a seguir:
“Art. 27. Serão obrigatórias, em todo o território nacional, as vacinações como tal definidas pelo Ministério da Saúde, contra as doenças controláveis por essa técnica de prevenção, consideradas relevantes no quadro nosológico nacional. Parágrafo único. Para efeito do disposto neste artigo o Ministério da Saúde elaborará relações dos tipos de vacina cuja aplicação será obrigatória em todo o território nacional e em determinadas regiões do País, de acordo com comportamento epidemiológico” (Decreto nº 78.231/1976, grifo nosso).
A obrigatoriedade em submeter-se à vacinação é reiterada no art. 29. deste mesmo dispositivo. Ademais, a dispensa de vacinação somente poderá ser admitida mediante comprovada existência de risco concreto, em que pese a contraindicação explícita à aplicação da vacina por meio de atestado médico (art. 29, parágrafo único). Depreende-se, portanto, que fatores atinentes à liberdade de consciência e de organização familiar não encontram respaldo legal para serem utilizados como excludentes de obrigatoriedade à vacinação. Ressalta-se que a referida obrigatoriedade ultrapassa à pessoa do cidadão, estendendo-se também aos menores dos quais tenha a guarda ou responsabilidade (art. 29, Decreto nº 78.231/1976).
“Art. 29. É dever de todo cidadão submeter-se e os menores dos quais tenha guarda ou responsabilidade, à vacinação obrigatória. Parágrafo único. Só será dispensada da vacinação obrigatória a pessoa que apresentar Atestado Médico de contra-indicação explícita da aplicação da vacina.” (Art. 29, Decreto nº 78.231/1976).
No que concerne à natureza mandatória da vacinação de infantes, cumpre acrescentar o disposto no artigo 14, § 1º do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90), que corrobora os ditames supramencionados na medida em que disciplina ser “obrigatória a vacinação das crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias”.
“Art. 14. O Sistema Único de Saúde promoverá programas de assistência médica e odontológica para a prevenção das enfermidades que ordinariamente afetam a população infantil, e campanhas de educação sanitária para pais, educadores e alunos. § 1º É obrigatória a vacinação das crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias. (...)” (Art. 14, Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90)
Uma vez sedimentado o entendimento de que a obrigatoriedade à vacinação encontra pleno respaldo no ordenamento jurídico, cumpre acrescentar que estão previstas penalidades para as condutas de descumprimento do dever estabelecido nos supracitados dispositivos. A desobediência aos ditames do art. 29. do Decreto nº 78.231/1976, por exemplo, implica em cometimento de infração sanitária, prevista no art. 10, VIII, da Lei 6.437/1977, que tipifica as infrações à legislação sanitária federal, estabelecendo sanções: “Art. 10. São infrações sanitárias: (...) VIII reter atestado de vacinação obrigatória, deixar de executar, dificultar ou opor-se à execução de medidas sanitárias que visem à prevenção das doenças transmissíveis e sua disseminação, à preservação e à manutenção da saúde: Pena advertência, interdição, cancelamento de licença ou autorização, e/ou multa; (...).”
Extrapolando os conceitos aqui abordados à seara penal, uma vez presente o elemento subjetivo dolo, caracterizador de infração penal, também poderia configurar, em tese, no tipo do artigo 268, do Código Penal: “Art. 268. Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa: Pena: detenção, de 1 (um) mês a 1 (um) ano, e multa” (TJ-SP. Apelação Cível nº 1003284-83.2017.8.26.0428. Rel. Des. Fernando Torres Garcia. D. J. 11/07/2019).
Em adição aos prelecionados dispositivos, cabe aqui uma análise conglobada do ordenamento jurídico, a fim de aferir a natureza mandatória da vacinação. A Constituição Federal de 1988, como expressão máxima da Ordem, assevera de forma clara em seu Artigo 227 a fundamental importância do papel da família juntamente à Sociedade e o Estado na preservação dos direitos dos infantes.
“Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.” (Art. 227, Constituição Federal/1988, grifo nosso).
Ademais, acerca da liberdade de crença religiosa ou de convicção filosófica, constata-se que estes evidentemente não têm caráter absoluto, haja vista exceção prevista no art. 5º, VIII da Carta Magna, segundo o qual “ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei”.
Desta feita, depreende-se a proteção do interesse coletivo, identificando-se na vacinação obrigatória não só a tutela individual dos cidadãos e dos menores sob sua guarda ou responsabilidade, mas, também, uma tutela indireta de toda a coletividade. Em outras palavras, a omissão dos cidadãos à vacinação traduz-se em risco à saúde não apenas deles próprios, mas de toda a coletividade.
Diante do exposto e, com base no princípio da proporcionalidade, torna-se patente que a liberdade filosófica e de crença não se sobrepõe ao direito à vida, especialmente quando este imiscui-se à tutela indireta de toda a coletividade.
Conforme aduz Cezar Roberto Bitencourt:
“O bem jurídico protegido é a incolumidade pública, particularmente em relação à saúde pública. A proteção que o legislador penal oferece à saúde pública, pela tipificação do crime de infração de medida sanitária preventiva, está estritamente vinculada ao dever assumido pelo Estado de atuar, mediante políticas públicas e ações concretas, para a redução do risco de doenças, de acordo com o art. 196. da Constituição Federal de 1988. Sob essa perspectiva, a criminalização de condutas infratores, descrita no art. 268, apresenta-se como um instrumento a mais de proteção da saúde, enquanto bem jurídico coletivo”. (Código penal comentado, 9ª ed., São Paulo: Saraiva, 2015, p. 1.144).
Não obstante a farta fundamentação legal concernente à vacinação mandatória, a jurisprudência se constitui de heterogêneos entendimentos, posicionados ora a favor, ora contra a questão em tela. No que tange aos entendimentos contrários à obrigatoriedade de vacinação, estes encontram-se pautados em princípios de liberdade filosófica e de crença, bem como na liberdade de consciência e de organização familiar e no direito à intimidade. Por outro lado, a inteligência dos julgamentos favoráveis à vacinação compulsória se mostram embasados na tutela da ordem pública, visando à incolumidade pública como bem jurídico protegido.
Neste sentido encontra-se a apelação interposta pelo Ministério Público do Estado de São Paulo ao Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em que o Desembargador Fernando Torres Garcia condenou os pais a providenciar a regularização da vacinação de menor sob sua guarda, determinando, em caso de descumprimento da decisão, a busca e apreensão da criança para a regularização das vacinas obrigatórias.
“Ante o exposto, pelo meu voto, dou provimento ao apelo do Ministério Público, a fim de condenar os apelados a procederem no prazo de 30 (trinta) dias corridos, contados da intimação da presente decisão, a ser feita por meio de seu defensor constituído à regularização da vacinação obrigatória da criança O.Z.C., junto a posto de saúde ou estabelecimento similar, sob pena de suspensão limitada do poder familiar para que o Conselho Tutelar, por meio de busca e apreensão, proceda à regularização ora determinada.” (TJ-SP. Apelação Cível nº 1003284-83.2017.8.26.0428. Rel. Des. Fernando Torres Garcia. D. J. 11/07/2019).
Diante do exposto, depreende-se que o tema concernente à obrigatoriedade de vacinação encontra-se regado por abundante heterogeneidade jurisprudencial, muito embora a legislação atinente se mostre clara e precisa. Destarte, remanesce inevitável a judicialização do tema.
A Constituição e as leis são a fonte de segurança jurídica de uma nação. No entanto, mesmo que o legislador tenha usado de adequado teor linguístico e semântico na elaboração das normas, essas são incapazes de prever todas as variantes de casos concretos. Diante disso, a nova ordem jurídica exige a interpretação das normas à luz de princípios de validade universal. Nesse contexto, tem recaído sobre o Judiciário questões de caráter político a serem desvendadas a partir de métodos interpretativos, como é caso da vacinação mandatória contra a COVID-19.
Por fim, a judicialização do tema em tela frente à Suprema Corte contribui para a expansão dos limites da compreensão das normas positivadas à luz de princípios e direitos fundamentais afixados na Carta Magna, respeitados os critérios de integração e interpretação das normas jurídicas estabelecidos na Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei nº 4.657/1942), concedendo ao tema em análise a justa deliberação.
REFERÊNCIAS
BARROSO, L. R. Judicialização. Entrevista ao canal Migalhas. 2011. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=2MAVouNqF8M&t=101s.
CABEZÓN, R. M. Nota pública sobre vacinação obrigatória de crianças (OAB/SP), 2018. Disponível em: https://crianca.mppr.mp.br/pagina-2158.html.
TEIXEIRA, M. Maioria do STF defende que Estado possa obrigar população a se vacinar. Folha de São Paulo. 26. out. 2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/10/maioria-do-stf-defende-que-estado-possa-obrigar-populacao-a-se-vacinar.shtml. Acesso em: 14/11/2020.
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apelação Cível nº 1003284-83.2017.8.26.0428. Relator Desembargador Fernando Torres Garcia. D. J. 11/07/2019.
Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário com Agravo n° 1267879. Relator Ministro Luís Roberto Barroso. Julgamento em 06/08/2020.
Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário com Agravo n° 1267879. Relator Ministro Luís Roberto Barroso. Julgamento em 17/12/2020.