Proteção de Dados Pessoais e Lei Aplicável aos Contratos Eletrônicos de Pessoas em Países Diferentes

25/11/2020 às 19:44
Leia nesta página:

O artigo analisa as regras sobre a definição da lei aplicável aos contratos eletrônicos de pessoas localizadas em países diferentes nas relações jurídicas que abrangerem o tratamento de dados pessoais.

A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais contém regras de aplicação no espaço em seu art. 3º que adotam a territorialidade e a extraterritorialidade, motivo pelo qual a lei se aplica a atividades de tratamento de dados pessoais realizadas no território brasileiro e (em algumas situações) fora dele, de acordo com os seguintes critérios:

(a) se as operações de tratamento de dados pessoais ocorrerem no território nacional (territorialidade);

(b) se a atividade de tratamento de dados tiver entre os seus objetivos a oferta ou o fornecimento de bens ou serviços no Brasil, ou o tratamento de dados de indivíduos localizados no território nacional (extraterritorialidade);

(c) e se os dados pessoais objeto do tratamento forem coletados no território nacional (territorialidade e extraterritorialidade).

Diante dessa amplitude, e do diálogo das fontes que normalmente ocorre entre a LGPD e a lei incidente sobre a relação jurídica que compreende o tratamento ou a proteção de dados pessoais (como o Código de Defesa do Consumidor, a Lei do Cadastro Positivo e o Marco Civil da Internet), podem existir situações em que sejam aplicáveis, ao mesmo tempo, a LGPD e uma lei de outro país para resolver eventual conflito de direito material entre os contratantes.

Esses casos são muito comuns atualmente, em decorrência da grande quantidade de contratos eletrônicos que são firmados diariamente, principalmente com o uso da internet.

Para resolver as dúvidas e definir a lei aplicável (além da LGPD), deve ser buscada a solução nas normas de Direito Internacional Privado.

O Direito Internacional Privado possui normas chamadas de indiretas ou indicativas ("sobredireito"), que não normatizam condutas ou pacificam conflitos, mas se limitam a definir qual a norma aplicável ao caso concreto.

Apesar de sua denominação, trata-se de um ramo do Direito interno (e não internacional) que regulamenta a escolha da norma jurídica incidente sobre as relações internacionais entre pessoas de direito privado, a fim de solucionar conflitos de leis no espaço. Por essa razão, nos Estados Unidos e na Inglaterra também é chamado de "Conflict of laws".

No Brasil, a principal norma que trata da resolução de conflitos entre normas de diferentes países é a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei nº 4.657/42), em seus arts. 7º/13 e 16/17 (diretamente influenciados pelo “Código Bustamante”, que é a Convenção de Direito Internacional Privado firmada em 1928 por países das Américas do Sul e Central).

Há conflito de leis no espaço quando dois ou mais países têm normas jurídicas diferentes que recaem sobre um mesmo ato ou fato jurídico. Pode ser:

(a) positivo, se as normas de Direito Internacional Privado dos Estados preveem a aplicação das leis de seus próprios direitos internos;

(b) ou negativo, se as normas indicativas dos países apontam para a não incidência de suas leis internas, ou uma remete reciprocamente a solução para o ordenamento do outro (o duplo reenvio, que é vedado no Brasil pelo art. 16 do Decreto-Lei nº 4.657/42).

Entre os conflitos que podem ser resolvidos com base na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro está a contratação eletrônica por meio da internet, quando envolve pessoas situadas em países diferentes.

O art. 9º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro assim regulamenta a questão:

"Art. 9º Para qualificar e reger as obrigações, aplicar-se-á a lei do país em que se constituírem.

§ 1º Destinando-se a obrigação a ser executada no Brasil e dependendo de forma essencial, será esta observada, admitidas as peculiaridades da lei estrangeira quanto aos requisitos extrínsecos do ato.

§ 2º A obrigação resultante do contrato reputa-se constituída no lugar em que residir o proponente".

Duas situações diferentes decorrem dessa norma:

(a) como regra geral, sobre as obrigações decorrentes do contrato incide a lei do país do proponente

(b) excepcionalmente, a lei brasileira se aplica sobre as formalidades essenciais do contrato, caso haja obrigação a ser cumprida no país.

Ou seja, sempre deve ser aplicada a lei do Estado do proponente do contrato sobre as normas materiais das obrigações contratuais, podendo a lei brasileira ser utilizada apenas nas normas formais de obrigação executada no Brasil.

De forma similar, o art. 435 do Código Civil dispõe que "reputar-se-á celebrado o contrato no lugar em que foi proposto".

Porém, com base na Lei nº 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor), vários doutrinadores defendem que a incidência da lei estrangeira na venda de produto para consumidor domiciliado no Brasil, por meio da internet e por pessoa situada em outro país, causa desequilíbrio à relação jurídica.

Entre os argumentos utilizados para essa conclusão, destaca-se dois:

(1) tendo em vista que o contrato é aderido online pelo consumidor em seu computador, por meio da internet, o local de contratação deve ser reputado como tendo se efetivado no domicílio do consumidor (ou seja, no país de destino do produto);

(2) e a vedação, pelo art. 51, IV, da Lei nº 8.078/90, de cláusula que coloque o consumidor em desvantagem exagerada.

Contudo, o primeiro argumento ignora o fato de que o contrato de compra e venda concretizado por meio da internet normalmente é um contrato entre ausentes, ou seja, com a ocorrência de lapso temporal entre a proposta e a aceitação, e não leva em conta que o local de emissão da proposta é diferente do lugar da aceitação (e, invariavelmente, os contratantes estão em países distintos).

Ainda que o contrato não seja firmado entre ausentes, nos denominados contratos entre presentes em rede (por exemplo, por meio de programa de chat, ou com aplicativo de mensagens ou com o uso de webcam), não se modifica o fato de que o proponente e o aceitante estão em lugares diferentes, o que levaria à conclusão de que o contrato é feito com o computador, mas não por meio dele. Em outras palavras, a internet é um meio para a contratação, e não um local de celebração do contrato.

Acrescenta-se que a lei aplicável é aquela da residência do proponente, e não a do país de registro do domínio da página na internet, ou de seu provedor. Por exemplo, se um brasileiro domiciliado no Brasil compra um produto oferecido à venda por uma pessoa jurídica espanhola, cujo website é mantido por um provedor de Portugal e em domínio de internet na Inglaterra, incidirá no caso concreto a legislação da Espanha.

O segundo argumento desconsidera que a lei aplicável é determinada por lei, e não por cláusula contratual.

Se, de um lado, aparentemente existe fundamento para a aplicação da lei brasileira a compra feita por brasileiro domiciliado no país, por meio da internet, de produto vendido no exterior, por outro lado se ignora a situação extremamente desvantajosa que isso pode criar: o vendedor pode, com a venda de um mesmo produto para pessoas de diferentes países, ser obrigado a se submeter a leis brasileiras, portuguesas, argentinas, belgas, japonesas, chinesas, angolanas, guineenses, chilenas, canadenses, bolivianas, mexicanas, etc. Logo, um microempresário brasileiro que vende camisetas personalizadas pela internet e tem um faturamento mensal de R$ 3.000,00, pode ser obrigado a contratar uma assessoria permanente para adaptar seu contrato e produto a leis dos países de seus clientes, atuais e futuros. Em resumo, o vendedor-proponente ficaria em situação de desequilibro extremo, ao ser obrigado a conhecer as normas pertinentes de todos os países do mundo, enquanto ao comprador só se exige que se informe sobre as leis pertinentes do país do proponente.

Há, ainda, quem confunda a lei aplicável com a competência jurisdicional para a resolução da controvérsia. O fato de incidir lei estrangeira sobre compra de produto por pessoa domiciliada no Brasil não importará necessariamente na ausência de competência do Judiciário brasileiro para decidir litígio decorrente do contrato.

Sobre o assunto, e ainda que as regras de competência territorial do art. 46 do CPC iniciem pela sua fixação no foro de domicílio do réu, nas relações de consumo (arts. 2º e 3º da Lei nº 8.078/90) deve ser observada a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça que, com fundamento no direito de facilitação da defesa dos direitos do consumidor (art. 6º, VIII, do CDC) e na regra de competência prevista para as ações de responsabilidade do fornecedor de produtos ou serviços (art. 101, I, do CDC), estabelece a competência relativa do foro do domicílio do consumidor, que pode optar por demandar no foro de seu domicílio (ou em outro) e tem o direito de ser demandado no foro de seu domicílio (nesse sentido: AgInt no AREsp 1449023/SP, 3ª Turma, rel. Min. Nancy Andrighi, j. 20/04/2020, DJe 23/04/2020; AgInt no REsp 1347473/SP, 4ª Turma, rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 04/12/2018, DJe 10/12/2018; AgInt nos EDcl no CC 143516/RJ, 2ª Seção, rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 23/11/2016, DJe 01/12/2016; AgRg no CC 129294/DF, 2ª Seção, rel. Min. Ricardo Villas Bôas-Cueva, j. 24/09/2014, DJe 01/10/2014).

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Reitera-se que, nos contratos eletrônicos realizados à distância por pessoas em países diferentes, não se trata de cláusula contratual que gera vantagem desproporcional a uma das partes, mas sim de norma legal que resolve conflito entre leis de diferentes países.

Acrescenta-se que, apesar de posterior, o Código de Defesa do Consumidor não revogou o art. 9º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, norma especial (e indicativa) de Direito Internacional Privado, que determina qual a norma aplicável em situações determinadas.

Em consequência, nos contratos eletrônicos (entre presentes ou ausentes) firmados por pessoa domiciliada no Brasil (na condição de aceitante) com pessoa domiciliada em outro país (na qualidade de proponente), deve ser observado o art. 9º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, aplicando-se a legislação estrangeira ao caso concreto.

Logo, e considerando as regras vistas acima sobre a aplicação da LGPD, essa espécie de contrato pode ser regulada pela LGPD e por uma lei de outro país, ainda que a competência para processar e julgar eventual conflito seja do Judiciário brasileiro, com a aplicação das normas processuais do Brasil.

Por exemplo, se uma pessoa comprar um produto pela internet de uma empresa sediada na cidade de Palo Alto (no Estado da Califórnia, nos Estados Unidos), esse bem chegar em seu domicílio (na cidade de Florianópolis/SC, no Brasil) com alguma falha e o vendedor se recusar a trocá-lo ou a devolver o pagamento do comprador, pode ocorrer a seguinte hipótese: o consumidor pode propor a ação contra a vendedora do produto na Justiça Estadual em Florianópolis, porque o Judiciário brasileiro tem competência para processar e julgar as demandas de consumidores em seu domicílio (e eventual cláusula de eleição de foro que o impeça de exercer esse direito é considerada abusiva). Porém, a lei aplicável não será o Código de Defesa do Consumidor brasileiro, mas sim a Lei da Privacidade do Consumidor da Califórnia (California Consumer Privacy Act).

Porém, essa relação se torna mais complexa se houver o tratamento de dados e a necessidade de definição da lei aplicável. Se nessa demanda o autor também formular pedido relativo à eliminação de seus dados pessoais tratados pela empresa vendedora, incidirá a LGPD na parte da controvérsia que se referir ao tratamento de dados e à proteção dos dados do consumidor-titular (com fundamento no citado art. 3º, II e III, da LGPD).

Ou seja, em um processo em tramitação no Judiciário brasileiro, com a aplicação das leis processuais brasileiras, são aplicáveis duas leis de países diferentes (Lei do Consumidor californiana sobre as cláusulas contratuais e LGPD brasileira sobre as operações de tratamento de dados pessoais e o exercício dos direitos pelo titular) para resolver as questões de direito material controvertidas.

Desse modo, a LGPD possui regras diferenciadas sobre a sua aplicação territorial (e extraterritorial), o que deverá gerar dúvidas e controvérsias em sua utilização na prática.

Sobre o autor
Oscar Valente Cardoso

Professor, Doutor em Direito, Diretor Geral da Escola da Magistratura Federal do Rio Grande do Sul, Coordenador do Comitê Gestor de Proteção de Dados do TRF da 4a Região, Palestrante, Autor de Livros e Artigos, e Juiz Federal

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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