O princípio do livre acesso à jurisdição e a sua relativização imposta pela Justiça Desportiva

The principle of free access to jurisdiction and its relativization imposed by desportive justice

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Este artigo apresenta uma análise da Justiça Desportiva à luz do princípio do Livre Acesso à Jurisdição.

Resumo

Este artigo apresenta uma análise da Justiça Desportiva à luz do princípio do Livre Acesso à Jurisdição, preceito fundamental presente no artigo 5º, inciso XXXV da Constituição Federal de 1988 (CF/88). O objetivo central é examinar se há decorrência de ilicitude na retirada do Poder Judiciário da apreciação de lesão ou ameaça do direito no âmbito esportivo, bem como realizar uma apreciação crítica dos aspectos da Justiça Desportiva, tendo em vista o princípio constitucional do livre acesso à jurisdição, no que tange à imposição quanto ao procedimento adotado nas ações desportivas. O caminho metodológico deste estudo se conduziu por uma consulta à bibliografia específica sobre o direito desportivo, a lei de arbitragem e aos princípios constitucionais.

Palavras chave: Acesso à justiça. Desporto. Justiça desportiva. Lei de Arbitragem. Princípios constitucionais.

Abstract

This article presents an analysis of sports justice in the light of the principle of free access to jurisdiction, a fundamental precept present in Article 5, item XXXV of the Federal Constitution of 1988 (CF/88). The central objective is to examine if some illegality happens when the Judiciary is removed from the assessment of injury or threat of the right in the sports field. Then, will be made a critical assessment of the aspects of sports justice, in view of the constitutional principle of free access to jurisdiction, with regard to the imposition of the procedure adopted in sports actions. The methodological path of this study was conducted by a consultation of the specific bibliography on sports law, arbitration law and constitutional principles.

Key-words: Access to justice. Sport. Desportive justice. Arbitration law. Constitutional principles.


1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O Desporto é um fenômeno que reúne diversos espectadores em escala mundial. Nesta seara, os esportes, em geral, arrecadam bilhões todos os anos em suas variadas competições. Tornando-se, portanto, alvo de investimentos gigantescos das mais diversas áreas econômicas. Para além da economia, o desporto possui extrema relevância social, atraindo atenção de todas as camadas sociais, gêneros, idades e etnias.

Em papel de destaque no âmbito desportivo, está o futebol, amplamente conhecido como esporte das multidões, haja vista tamanha popularidade na esfera desportiva. Enquanto alguns esportes são praticados somente pelas classes mais abastadas da sociedade, o futebol está no limbo, entre às elites e às camadas mais pobres, comprovando ser o esporte mais democrático, plural e cultural do mundo.

Desta forma, por toda amplitude socioeconômica, surgiu-se a necessidade de regulamentar as práticas esportivas, criar legislações para regrar o desporto, bem como para julgar e processar às lides desportivas, definindo seus direitos e deveres. Consoante a isso, o Direito Desportivo é um ramo do Direito defendido pelos doutrinadores, em suma, como autônomo, por possuir legislação própria que integra os códigos de Justiça Desportiva.

A Constituição Federal de 1988, por sua vez, em seu artigo 217, § 1º, dá autonomia à Justiça Desportiva, concedendo jurisdição própria para julgar e processar litigâncias no âmbito esportivo, possuindo autonomia administrativa e judicante. No que tange à apreciação do Poder Judiciário às questões envolvendo matérias de competência esportiva, determina a Constituição que só poderão ser revisadas tais matérias, após esgotarem-se todas as vias da Jurisdição Desportiva.  

Conquanto, a Carta Magna de 1988, no artigo 5º, inciso XXXV, preconiza que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”, sendo interpretado tal texto, pela doutrina, como princípio do acesso à justiça ou inafastabilidade da jurisdição. Trazendo proteção a qualquer direito inerente à pessoa, independentemente de ser pública ou privada.

Entretanto, o livre acesso à jurisdição, apesar de princípio constitucional, é mitigado em alguns casos, como, por exemplo, no Direito Desportivo. Sendo assim, essa pesquisa consiste na análise aprofundada da evolução histórica do desporto e seus principais aspectos, bem como apontamentos sobre o princípio do livre acesso à justiça na impossibilidade de ajuizamento das ações desportivas no Poder Judiciário.

Por fim, este artigo possui relevância histórica e doutrinária, uma vez que será analisada a evolução do desporto e o direito inerente a este, visto que o esporte é um instrumento social extremamente relevante para o desenvolvimento cultural e econômico, atingindo todas as esferas sociais.

2. EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA LEGISLAÇÃO DESPORTIVA NO BRASIL

No Brasil, durante muitos anos, pouco falou-se sobre legislação desportiva. Até o final dos anos 1930, não havia quaisquer registros de legislações específicas acerca da matéria. O esporte, ainda naquela época, era constituído como mera disciplina nas escolas. Havendo, portanto, apenas alguns decretos esparsos voltados ao âmbito estudantil.

No entanto, com o advento da profissionalização do futebol em perspectivas nacionais, no final da década de 1930, urgiu-se pela necessidade de regularizar tais práticas desportivas, que, anteriormente, não tinham suporte legal, tampouco regulamentação.

A história da participação mais efetiva do Estado na organização do esporte no Brasil teve início em 1937, e, por intermédio da Lei nº 378, de 13 de março de 1937, reorganizou-se o Ministério da Educação e criou-se a Divisão de Educação Física do Ministério da Educação e Cultura. Nascia, assim, uma nova era no Direito Desportivo Brasileiro. (CAVAZZOLA JUNIOR, 2014, p. 28).

Aos 19 de janeiro de 1939, o então Presidente do Brasil Getúlio Vargas, instituiu o Decreto-Lei nº 1.056, que instituía uma comissão denominada Comissão Nacional de Desportos, na qual cinco ministros designados pelo Presidente da República realizariam um estudo acerca das mazelas do desporto no país, e apresentariam ao Governo Federal um plano de regulamentação.

Alguns anos após o decreto de 1939, em 14 de abril de 1941, ainda durante o Governo Getulista, foi instituído o Decreto-Lei nº 3.199, no qual dispunha que o Ministério da Educação e Saúde, no âmbito do Conselho Nacional de Desportos, estabeleceria diretrizes para orientação, fiscalização e incentivos à prática do desporto em todo o território nacional. Considera-se, por muitos doutrinadores, como um momento importante para o direito desportivo no Brasil, haja vista ter sido a primeira vez em que o esporte era desvinculado da educação física, assuntos que sempre foram tratados em conjunto.

Em 1943, o Decreto-Lei nº 5.342 de 25 de março de 1943, atribuiu competência ao Conselho Nacional de Desportos para estabelecer modelos de estatutos para as federações especializadas de cada desporto, expedir alvarás para funcionamentos de entidades desportivas, registrar contratos entre atletas profissionais e entidades, entre outras atribuições.

Dec.-lei 5.342/43, que estabeleceu a competência do CND sobre a disciplina das atividades desportivas, reservando às entidades nacionais de cada esporte a competência para aplicação de penalidades às associações, atletas, auxiliares técnicos e árbitros. Esse decreto-lei instituiu o reconhecimento oficial da prática desportiva profissional no futebol, pois, dentre outros aspectos importantes, determinava que os contratos de jogadores e técnicos fossem registrados na Confederação Brasileira de Desportos – CBD. (BARREIROS NETO, 2010, p.25).

Após a Era Vargas, durante a ditadura militar no Brasil, na década de 1970, algumas leis foram instituídas. Conduto, tendo em vista o cenário político no qual o país encontrava-se, a legislação era pautada no autoritarismo e na intromissão do Estado nas questões que versavam sobre desporto.

Ainda no período da Ditatura Militar no Brasil, foi aprovada a Lei nº 6.354/76, intitulada “Lei do Passe”, que tratava da relação de trabalho dos atletas profissionais de futebol, trazendo consigo previsões relacionadas ao contrato de trabalho dos jogadores profissionais de futebol, entre outras disposições.

Lei 6.354/76, que dispôs sobre as relações de trabalho do atleta profissional de futebol, e que continua em vigor, naquilo em que não contraria a Lei Pelé, sendo aplicável, em diversos aspectos, aos contratos de trabalho de jogadores de futebol atualmente vigentes. A edição desta lei significou um grande marco na história do futebol brasileiro, pois dotou o esporte de um caráter profissional muito mais incisivo [...] (BARREIROS NETO, 2010, p. 26).

Com o fim do regime militar, urgiu-se pela necessidade de se criar uma Constituição que fosse pautada em direitos sociais, visando, acima de tudo, a redemocratização do país. Com isso, em 1988, foi promulgada a Constituição da República Federativa do Brasil, cujo texto trazia consigo as maiores ânsias da população pós-regime ditatorial, como os direitos sociais e individuais a liberdade, a segurança, ao bem-estar, ao desenvolvimento, a igualdade, e a justiça.

A promulgação da Constituição Federal de 1988, impactou diretamente o desporto, pois, este passou a ser regulamentado pelo texto Constitucional, que determinou a competência concorrente entre a União, os Estados e o Distrito Federal para legislarem sobre o desporto, conforme extrai-se do art. 24, inciso IX, da CR/88 “compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: educação, cultura, ensino, desporto, ciência, tecnologia, pesquisa, desenvolvimento e inovação”. A Carta Magna trouxe o dever estatal de fomentar as práticas esportivas.

A Constituição Federal de 1988, finalmente, colocou o Desporto como um Direito do cidadão, e, em seu art. 217, inciso I, deu “autonomia as entidades desportivas dirigentes e associações, quanto a sua organização e funcionalidade” (BRASIL, 1988).

O Desporto se tornou um ramo do Direito que regulamenta suas diversas modalidades. Neste sentido, Álvaro Melo Filho o conceitua como “o conjunto de técnicas, regras, instrumentos jurídicos sistematizados que tenham por fim disciplinar os comportamentos exigíveis na prática dos desportos em suas diversas modalidades” (MELO FILHO, 1986, p. 12):

Consoante a isso, no governo do Fernando Collor, primeiro presidente eleito por voto popular após a promulgação da Constituição de 1988, foi criada uma Secretaria Extraordinária de Esportes, na qual, o então Presidente República convidou o jogador Arthur Antunes Coimbra, amplamente conhecido com Zico, para ser Secretário Geral dos Esportes.

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Em 1993, o então secretário dos esportes, apresentou um projeto de Lei ao Congresso Nacional, que propôs diretrizes para organização das entidades de desporto e seus funcionamentos, a referida lei tratava de regulamentar o esporte. O referido projeto, denominado “Lei Zico”, foi aprovado pelo Congresso Nacional, revogando a lei instituída durante o regime militar, na década de 1970.

Contudo, em 1998, durante o governo do então Presidente Fernando Henrique Cardoso, foi escolhido Edson Arantes do Nascimento, o Pelé, como Ministro Extraordinário do Esporte. O Ministro Pelé elaborou um projeto Lei, popularmente conhecido como “Lei Pelé”, instituindo normas gerais sobre o desporto, que foi aprovado em 24 de março de 1998 e vigora até hoje.

3. A AUTONOMIA DO DIREITO DESPORTIVO E A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

No período anterior à Constituição de 1988, denominado período pré-constitucional, o direito desportivo era regido sob a ótica do intervencionismo estatal, marcado pela forte repressão político-social que se fez presente durante às décadas anteriores à promulgação da Carta Magna vigente.

Após o fim da ditadura militar, surgiu-se no ordenamento brasileiro a necessidade de se promulgar uma nova Constituição baseada em direitos sociais e liberdades individuais, haja vista tamanha repressão sofrida no período ditatorial. Além disso, o desporto tomou proporções astronômicas, tanto econômicas quanto sociais, urgindo-se à carência de se refinar o conceito outrora estabelecido, bem como de se regulamentar e organizar juridicamente o desporto.

Em virtude disso, a Carta Magna de 1988, atribuiu em seu artigo 24 a competência concorrente entre União, Estados e Municípios para legislarem sobre o desporto. Sendo assim, a União atuaria em detrimento das normas gerais acerca da matéria, enquanto os Estados e Municípios elaborariam regras específicas sobre o tema. A referida atribuição, foi vista como inovadora no ramo, vez que, anteriormente, a Constituição tão somente atribuía competência à União para legislar sobre desporto, diante do autoritarismo e da forte intervenção estatal presentes à época.

Ademais, ineditamente, o texto constitucional assegurou o desporto como direito fundamental tutelado pelo Estado, trazendo em seu artigo 217, a seguinte redação:

Art. 217. É dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não-formais, como direito de cada um, observados:

I - a autonomia das entidades desportivas dirigentes e associações, quanto a sua organização e funcionamento;

II - a destinação de recursos públicos para a promoção prioritária do desporto educacional e, em casos específicos, para a do desporto de alto rendimento;

III - o tratamento diferenciado para o desporto profissional e o não- profissional;

IV - a proteção e o incentivo às manifestações desportivas de criação nacional.

§ 1º O Poder Judiciário só admitirá ações relativas à disciplina e às competições desportivas após esgotarem-se as instâncias da justiça desportiva, regulada em lei.

§ 2º A justiça desportiva terá o prazo máximo de sessenta dias, contados da instauração do processo, para proferir decisão final.

§ 3º O Poder Público incentivará o lazer, como forma de promoção social.

Observe-se, portanto, que não mais haveria uma faculdade do Estado na fomentação das práticas desportivas, e sim, um dever imposto pelo Poder Constituinte. Deste modo, a obrigação estatal é, primordialmente, a de fomentar as prática desportivas, ou seja, garantir o progresso na seara desportiva, principalmente, no tocante ao repasse de recursos financeiros públicos ao desporto educacional, e, de forma secundária, ao desporto de alto rendimento.

O artigo 217 da CR/88 foi um marco histórico no ordenamento jurídico-desportivo, e, acerca disso, pontua Álvaro Melo Filho:

“Há de realçar-se ser irrecusável que o reconhecimento constitucional do desporto, que obtivemos especialmente com a inclusão do art. 217 na Constituição Federal de 1988, implica na sua conexão direta e imediata com o conjunto de direitos e liberdades fundamentais reconhecidos pela Lex Magna, entre os quais ressaem a autonomia desportiva e a liberdade de associação. Sobre esses postulados constitucionais assenta-se toda a estruturação e instrumentalização do ordenamento jurídico-desportivo brasileiro, como condição necessária e inarredável para a sua juridicidade e constitucionalidade.” (MELO FILHO, 2002, p 17)

Extrai-se, portanto, que o artigo 217 da CR/88 teve papel fundamental para o reconhecimento da autonomia desportiva, que, anteriormente à inovação constitucional, era tratado apenas como complementação educacional. Tão somente na Constituição Federal de 1988, é que se começou a dissociar o desporto e a educação, tratando-os como assuntos dispares.

A Constituição, por sua vez, assegurou autonomia às entidades desportivas no que tange à sua organização e funcionamento:

"é essencial garantir a aplicabilidade e o respeito à autonomia desportiva, com sede no art. 217, I, da Constituição Federal, de modo a propiciar uma plástica organização e um funcionamento mais flexível, sem nada de padronização ou feitio estereotipado, e, igualmente, afastando qualquer intromissão estatal autoritária ou paternalista nos assuntos interna corporis das entidades desportivas dirigentes e sociedades desportivas dirigidas." (MELO FILHO, 2002, p. 23)

A Justiça desportiva, portanto, é dotada de autonomia, não fazendo parte da composição do Poder Judiciário. Desta forma, a intervenção da Justiça Comum nas lides desportivas, é constitucionalmente limitada, e, à vista disso, os assuntos referentes ao desporto devem, inicialmente, submeterem-se à análise da Justiça Desportiva, e apenas após exauridas todas as instâncias administrativas, é que poderá buscar-se tutela no Poder Judiciário. Sendo assim, a intervenção da Justiça Comum se dá exclusivamente nos casos onde não haja satisfação do direito pleiteado.

Neste sentido, para Álvaro Melo Filho, a Justiça Desportiva:

 “Não acaba, mas limita e restringe a interferência do Poder Judiciário nos desportos, sem aniquilar a garantia constitucional que assegura o acesso das pessoas físicas e jurídicas à Justiça Comum para defesa de seus direitos. A fórmula obriga, apenas, o exaurimento das instâncias da Justiça Desportiva, como pressuposto temporário – 60 dias – antes de a parte interessada socorrer-se do Poder Judiciário. Era essa uma medida necessária, profilática e inibidora de despachos e decisões da Justiça Comum, com efeitos irreversíveis e danosos às competições e a disciplina desportiva, muitas vezes gerando insatisfações coletivas e desnaturando a função social e educativa do próprio desporto.” (MELO FILHO, 1995, p.166-167)

A criação da Justiça Desportiva se justifica pela busca da celeridade ocasionada pelas crescentes demandas nas lides desportivas, bem como pela necessidade de conhecimento técnico-jurídico, haja vista a ampla legislação que compõe o desporto. Ademais, ao que pese as competições se regularem através de ordenamentos próprios e específicos, eivados de elevado rigor, a promoção da celeridade nas ações desportivas se perfaz essencial para a satisfação dos direitos sem que haja quaisquer prejuízos oriundos da morosidade, concluindo-se os litígios em prazo hábil e satisfatório.

Com isso, percebe-se que a autonomia desportiva é um fator agregador que promove desempenho propício às competições, coadunando-se, perfeitamente, com os objetivos buscados pelas atividades desportivas, alcançando-se resultados eficientes.

A criação da Justiça Desportiva trouxe consigo diversos debates acerca da constitucionalidade desta, pois, a Constituição Federal de 1988, prevê em seu artigo 5º, inciso XXXV, no rol de direitos e garantias fundamentais, o princípio constitucional da Inafastabilidade da Jurisdição, ou, simplesmente, do Acesso à Justiça, dispondo que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito’’, e, consoante a criação da Justiça Desportiva, a lei mitigou o referido princípio, criando-se uma Justiça especializada, célere e dinâmica.

Sendo assim, o Poder Constituinte Originário, ao atribuir à Justiça Desportiva autonomia judicante, excepcionou o princípio constitucional da Inafastabilidade do Poder Judiciário e do Juiz Natural à análise das demandas desportivas, viabilizando, assim, uma justiça dotada de atipicidade, tendo em vista a especificidade da legislação desportiva e o dinamismo exigido pelas competições esportivas. Perfazendo-se, portanto, tão constitucional quanto qualquer outra previsão contida na Carta Magna.

Segundo Cesar Augusto Cavazzola Junior:

“A Justiça Desportiva, portanto, é uma forma de dar tratamento especializado e eficaz a demandas que demorariam excessivamente para serem julgadas pela Justiça Comum. Todavia, possui o prazo de 60 dias após a instauração do processo administrativo para se manifestar.” (CAVAZZOLA JUNIOR, 2014, p.142)

Assim, às inovações trazidas pela Constituição de 1988, bem como a autonomia concedida à Justiça Desportiva, demonstram uma evolução importante para o ordenamento desportivo, que passou a ser regulamentado por intermédio de diretrizes próprias, constituindo-se como ramo autônomo, com total capacidade resolutiva no que tange às demandas e interesses desportivos.

4. JUSTIÇA DESPORTIVA E SUAS FUNCIONALIDADES NO ÂMBITO DO DIREITO DESPORTIVO

O Direito Desportivo é caracterizado por sua especialidade, constituindo-se como ramo responsável pela regulamentação das relações jurídicas existentes nas atividades desportivas. Desta forma, com o crescimento constante do desporto e suas vastas competições, surgiu-se a necessidade de se regulamentar tais relações.

Consoante a isso, o marco inicial da Justiça Desportiva brasileira se deu com o advento da Carta Magna de 1988, na qual instituiu em seu artigo 217 o seguinte texto:

Art. 217. É dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não-formais, como direito de cada um, observados:

I - a autonomia das entidades desportivas dirigentes e associações, quanto a sua organização e funcionamento;

II - a destinação de recursos públicos para a promoção prioritária do desporto educacional e, em casos específicos, para a do desporto de alto rendimento;

III - o tratamento diferenciado para o desporto profissional e o não- profissional;

IV - a proteção e o incentivo às manifestações desportivas de criação nacional.

§ 1º O Poder Judiciário só admitirá ações relativas à disciplina e às competições desportivas após esgotarem-se as instâncias da justiça desportiva, regulada em lei.

§ 2º A justiça desportiva terá o prazo máximo de sessenta dias, contados da instauração do processo, para proferir decisão final.

§ 3º O Poder Público incentivará o lazer, como forma de promoção social.

A criação desta justiça especializada consolidou-se através da busca pela celeridade nas demandas desportivas, bem como na especificidade exigida pela matéria, vez que o desporto é composto por uma série de competições com duração e regulamentações próprias, que ensejaram a instauração de um órgão com possibilidade de atuação eficaz e célere.

Inicialmente, cumpre salientar que a Justiça Desportiva não possui juízes togados. E, estando ligada ao poder executivo, possui natureza administrativa e não judiciária, contando, para tanto, com instâncias autônomas e independentes responsáveis pelo julgamento e processamento das lides e demandas desportivas.

Contudo, nem sempre foi assim. Até o ano de 2005, os magistrados podiam participar como membros dos Tribunais Desportivos. No entanto, a resolução 10/2005 do Conselho Nacional de Justiça, firmando-se na interpretação do artigo 95, I, da Constituição Federal de 1988, que veda aos magistrados o exercício de quaisquer outro cargo ou função concomitantemente à magistratura, impediu a continuação destes frente aos Tribunais Desportivos.

Por sua vez, o Código Brasileiro de Justiça Desportiva traz em seu artigo 1° a seguinte redação:

Art. 1º A organização, o funcionamento, as atribuições da Justiça Desportiva brasileira e o processo desportivo, bem como a previsão das infrações disciplinares desportivas e de suas respectivas sanções, no que se referem ao desporto de prática formal, regulam-se por lei e por este Código. (Redação dada pela Resolução CNE nº 29 de 2009).

Neste sentido, as entidades que se submetem à jurisdição da Justiça Desportiva, são, praticamente, todas aquelas envolvidas com a prática desportiva, tais como as entidades nacionais e regionais de administração desportiva, as ligas nacionais e regionais, as entidades de prática desportivas, sejam elas filiadas ou não às entidades administrativas, os atletas profissionais ou não profissionais, os árbitros, assistentes e demais membros de equipe da arbitragem, e, até mesmo, pessoas naturais que exerçam empregos, cargos ou funções diretivos ou não, relacionados às modalidades esportivas.

Imperioso ressaltar que, assim como na jurisdição comum, a Justiça Desportiva também possui princípios que a norteiam, sendo alguns deles próprios do Direito Processual, como o contraditório, ampla defesa e a legalidade. No entanto, ela também é regida por princípios próprios, como a tipicidade desportiva, a prevalência, continuidade e estabilidade das competições (pro competione) e o espírito desportivo (fair play), que representa a busca constante pelo jogo justo, filosofia adotada no desporto que prima pela conduta ética nas competições.

Assim, a Justiça Desportiva é formada pelo Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD), que é o órgão máximo da Justiça Desportiva, estando acima dele apenas os órgãos internacionais de Jurisdição Desportiva, pelo Tribunal de Justiça Desportiva (TJD), cuja jurisdição é regional e municipal, e que, por analogia, pode ser comparado à segunda instância da Justiça Comum, e, por fim, seus Tribunais Plenos e Comissões Disciplinares, que podem ser comparados à primeira instância da Justiça Comum, esses analisam dissídios envolvendo competições interestaduais, nacionais e regionais ou municipais, a depender se estão inseridas no STJD ou TJD. Sua organização está prevista no art. 55 da Lei 9.6150/98, denominada Lei Pele.

Art. 55. O Superior Tribunal de Justiça Desportiva e os Tribunais de Justiça Desportiva serão compostos por nove membros, sendo:

I - dois indicados pela entidade de administração do desporto

II - dois indicados pelas entidades de prática desportiva que participem de competições oficiais da divisão principal

III - dois advogados com notório saber jurídico desportivo, indicados pela Ordem dos Advogados do Brasil

IV - 1 (um) representante dos árbitros, indicado pela respectiva entidade de classe;

 V - 2 (dois) representantes dos atletas, indicados pelas respectivas entidades sindicais.

“O Tribunal Pleno do STJD e dos TJD é composto por nove membros, denominados de auditores, nomeados em função de reconhecido saber jurídico desportivo e de reputação ilibada. As Comissões Disciplinares também são compostas de auditores, mas em menor número (cinco) e não pertencem ao respectivo Tribunal Pleno.” (CAVAZZOLA JUNIOR, 2014, p.147)

Os respectivos órgãos são dirigidos por um Presidente e um Vice-presidente eleitos pela maioria de votos dos membros do STJD, TJD e das Comissões Disciplinares. Entre as diversas atribuições elencadas no artigo 9° do CBJD, estão os deveres de zelar pelo perfeito funcionamento do Tribunal e fazer cumprir suas decisões, a de dar publicidade às decisões prolatadas (princípio da motivação), bem como a de criar comissões especiais e designar auditores para o cumprimento de funções específicas de interesse do Tribunal.

Outrossim, conforme disposto no parágrafo quarto do artigo supramencionado, os membros dos Tribunais de Justiça Desportiva poderão ser bacharéis em Direito ou pessoas de notório saber jurídico e de conduta ilibada.

No mais, o Código Brasileiro de Justiça Desportiva adotou o princípio da territorialidade para o processamento e julgamento dos litígios e matérias ligadas às variadas competições desportivas. Desta forma, o território é o critério majoritariamente utilizado para determinar os limites jurisdicionais dos órgãos da Justiça Desportiva.

Desta forma, observa-se que o Direito Desportivo coordena o desporto, buscando regulamentar todas as questões disciplinares envoltas no âmbito desportivo. Entendendo-se como questões disciplinares as condutas que, de alguma forma, violem o disposto nos Códigos de Justiça Desportiva. A exemplo disso, tem-se a aplicação de multas pelos descumprimentos de regras previstas em regulamentos próprios, ou até mesmo, a expulsão de determinado componente durante uma competição.

Contudo, cabe ressaltar que a Justiça Desportiva não é apta a dirimir questões trabalhistas, cíveis, consumeristas ou criminais que tenham como parte os atletas e qualquer outra pessoa, física ou jurídica. Ainda, há que se salientar, que a presença do advogado não é imprescindível, podendo a parte postular em causa própria.

No tocante à competência, a Justiça Desportiva somente apreciará e julgará ações referentes à competição, à disciplina desportiva, de maneira que se subme-tem ao Código Brasileiro de Justiça Desportiva as entidades nacionais e regionais de administração do desporto; as ligas nacionais e regionais; as entidades de prática desportiva filiadas às entidades de administração mencionadas anterior-mente; atletas, profissionais e não profissionais; os árbitros, assistentes e demais membros de equipe de arbitragem; pessoas naturais que exerçam quaisquer em-pregos, cargos ou funções, diretivos ou não, relacionados a alguma modalidade esportiva, em entidades aqui mencionadas, como, entre outros, dirigentes, admi-nistradores, treinadores, médicos ou membros de comissão técnica; todas as demais entidades compreendidas pelo Sistema Nacional do Desporto, bem como as pessoas naturais e jurídicas que lhes forem direta ou indiretamente vinculadas, filiadas, controladas ou coligadas.( VARGAS, ANGELO, 2017. p. 41)

Além disso, diferentemente da Justiça Comum, na jurisdição desportiva não há divisão por matérias, e sim, por modalidades das práticas esportivas, haja vista cada modalidade possuir um conjunto de regras distintas.

Dessa forma, percebe-se que toda organização e desempenho da Justiça Desportiva são primordiais para a evolução do desporto, tendo como finalidade a regulamentação das mais diversas atribuições conferidas, e tornando-se de suma importância para resolução dos litígios na seara desportiva.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do exposto, conclui-se que a Justiça Desportiva é dotada de autonomia, não fazendo parte da composição do Poder Judiciário, sendo, desta forma, a intervenção da Justiça Comum limitada constitucionalmente por força do artigo 217, I, da Carta Magna vigente.

Consoante a isso, tem-se a criação da referida Justiça Desportiva justificada pela necessidade de produção de resultados céleres, bem como pela especificidade das matérias abarcadas pelo ramo, vez que o desporto é composto por vasta legislação.

Nestes moldes, a Justiça Desportiva se consagra como uma exceção constitucional, vez que os assuntos referentes ao desporto devem, inicialmente, se submeterem à análise da Justiça Desportiva, e, apenas após exauridas todas as instâncias administrativas, é que se poderá buscar tutela frete ao Poder Judiciário.

A criação da referida Justiça especializada é um marco histórico, haja vista às inovações trazidas pela Constituição de 1988 que demonstraram uma evolução importante para o ordenamento desportivo, passando a ser regulamentado através de diretrizes próprias. Constituindo-se, portanto, como ramo autônomo dotado de capacidade resolutiva no que tange às demandas desportivas.

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICA

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado, 1988.

BARREIROS NETO, Jaime. Direito Desportivo. Curitiba: Juruá, 2010.

CAVAZZOLA JUNIOR, Cesar Augusto. Manual de Direito Desportivo. 1ª Ed. São Paulo: EDIPRO, 2014.

DIDIER JUNIOR, Freddie. Curso de Direito Processual Civil. 21ª Ed. Salvador: Editora Juspodivim, 2019.

LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado – 22ª Ed., ver., atual. e ampl. – São Paulo: Saraiva, 2018.

MELO FILHO, Álvaro. O Novo Direito Desportivo. São Paulo: Cultural Paulista, 2002.

VARGAS, Angelo “e col”. Direito e Legislação Desportiva. Rio de Janeiro: CONFEF, 2017

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