1. A IMPENHORABILIDADE DO BEM DE FAMÍLIA
A Lei 8.009 instituiu a impenhorabilidade do bem de família como instrumento de tutela do direito de moradia, e dispõe a impossibilidade da penhora nos casos de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários ou que nela residam.
A impenhorabilidade do bem de família, de fato, reflete o princípio da dignidade da pessoa humana o qual constitui um dos principais fundamentos da Constituição Federal de 1988 e que também possui diversas outras emanações e desdobramentos
Tal previsão existe, pois embora a satisfação da dívida seja prioridade para o ordenamento brasileiro, essa não pode ser realizada a ponto de ferir a dignidade do devedor a ponto de deixá-lo na miséria. Por causa desse motivo, o legislador elencou os bens impenhoráveis, que são entendidos como essenciais à subsistência de qualquer ser humano.
Portanto, a execução não pode atingir as situações elencadas no artigo 833 do Código de Processo Civil.
Ali se diz:
São impenhoráveis:
I - os bens inalienáveis e os declarados, por ato voluntário, não sujeitos à execução;
II - os móveis, os pertences e as utilidades domésticas que guarnecem a residência do executado, salvo os de elevado valor ou os que ultrapassem as necessidades comuns correspondentes a um médio padrão de vida;
III - os vestuários, bem como os pertences de uso pessoal do executado, salvo se de elevado valor;
IV - os vencimentos, os subsídios, os soldos, os salários, as remunerações, os proventos de aposentadoria, as pensões, os pecúlios e os montepios, bem como as quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e de sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal, ressalvado o § 2º;
V - os livros, as máquinas, as ferramentas, os utensílios, os instrumentos ou outros bens móveis necessários ou úteis ao exercício da profissão do executado;
VI - o seguro de vida;
VII - os materiais necessários para obras em andamento, salvo se essas forem penhoradas;
VIII - a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família;
IX - os recursos públicos recebidos por instituições privadas para aplicação compulsória em educação, saúde ou assistência social;
X - a quantia depositada em caderneta de poupança, até o limite de 40 (quarenta) salários-mínimos;
XI - os recursos públicos do fundo partidário recebidos por partido político, nos termos da lei;
XII - os créditos oriundos de alienação de unidades imobiliárias, sob regime de incorporação imobiliária, vinculados à execução da obra.
§ 1º A impenhorabilidade não é oponível à execução de dívida relativa ao próprio bem, inclusive àquela contraída para sua aquisição.
§ 2º O disposto nos incisos IV e X do caput não se aplica à hipótese de penhora para pagamento de prestação alimentícia, independentemente de sua origem, bem como às importâncias excedentes a 50 (cinquenta) salários-mínimos mensais, devendo a constrição observar o disposto no art. 528, § 8º, e no art. 529, § 3º.
§ 3º Incluem-se na impenhorabilidade prevista no inciso V do caput os equipamentos, os implementos e as máquinas agrícolas pertencentes a pessoa física ou a empresa individual produtora rural, exceto quando tais bens tenham sido objeto de financiamento e estejam vinculados em garantia a negócio jurídico ou quando respondam por dívida de natureza alimentar, trabalhista ou previdenciária.
2. AS EXCEÇÕES À IMPENHORABILIDADE DO BEM DE FAMÍLIA
Mas há exceções a impenhorabilidade do bem de família:
Pagamento de dívida do próprio imóvel;
Pagamento de dívida de pensão alimentícia;
Execução de hipoteca do próprio imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou pela unidade familiar;
Por ter sido adquirido com produto de crime ou para execução de sentença penal condenatória a ressarcimento, indenização ou perdimento de bens;
Pagamento de alugueres resultante de fiança concedida em contrato de locação.
Nessas hipóteses, no cotejo entre os bens jurídicos envolvidos, o legislador preferiu defender o ofendido por conduta criminosa ao autor da ofensa, conforme nota a doutrina: “essas exceções significam que a Lei do Bem de Família teve a intenção de balancear valores, privilegiando o valor moradia, mas ressalvando que o bem de família será penhorável em benefício dos credores por alimentos, ou por verbas devidas aos trabalhadores da própria residência, ou por garantia real constituída pelo devedor residente no imóvel etc", como ensinou Cândido Rangel Dinamarco(Instituições de Direito Processual Civil. Vol. 4. 2. ed. São Paulo: Malheiros, p. 358).
Interessa-nos para o caso em discussão a possibilidade de exceção à impenhorabilidade de bem família Por ter sido adquirido com produto de crime ou para execução de sentença penal condenatória a ressarcimento, indenização ou perdimento de bens.
A interpretação que deve ser dada a tal situação é a restrita, pois se trata de matéria de ordem pública.
Daí porque essa condenação penal que se fala envolve aquele transitada em julgado na esfera penal que possibilita a execução civil.
CIVIL. RECURSO ESPECIAL. EXECUÇÃO. EXECUÇÃO. EMPRÉSTIMO. BEM DE EMPRESA OFERECIDO LIVREMENTE POR ELA, EM GARANTIA REAL HIPOTECÁRIA DE OUTRA PESSOA JURÍDICA. PENHORA DO IMÓVEL. VALIDADE DA HIPOTECA. EXCEÇÃO À REGRA DA IMPENHORABILIDADE DO BEM DE FAMÍLIA. INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA. IMÓVEL DE PROPRIEDADE DE PESSOA JURÍDICA QUE NUNCA FOI SEDE DE EMPRESA FAMILIAR. PENHORABILIDADE DO BEM. VALIDADE DA HIPOTECA OFERECIDA LIVREMENTE POR EMPRESA PARA GARANTIR MÚTUO DE OUTRA PESSOA JURÍDICA. RECURSO ESPECIAL NÃO PROVIDO.
1. A proteção legal conferida ao bem de família pela Lei nº 8.009/1990, ao instituir a sua impenhorabilidade, objetiva a proteção da própria família ou da entidade familiar, de modo a tutelar o direito constitucional fundamental da moradia e assegurar um mínimo para uma vida com dignidade dos seus componentes.
2. A lei estabelece, de forma expressa, as hipóteses de exceção à regra da impenhorabilidade do bem de família, o que reflete o seu caráter excepcional, evidenciando que ela é insuscetível de interpretação extensiva.
3. A jurisprudência desta egrégia Corte Superior, em caráter excepcional, confere o benefício da impenhorabilidade legal, prevista na Lei nº 8.009/1990, a bem imóvel de propriedade de pessoa jurídica, na hipótese de pequeno empreendimento familiar, cujos sócios são seus integrantes e a sua sede se confunde com a moradia deles. Precedentes. Hipótese não configurada.
4. É consolidado o entendimento de que a impenhorabilidade só não será oponível nos casos em que o empréstimo contraído foi revestido em proveito da entidade familiar, o que se verificou no caso.
5. É válida a hipoteca prestada por empresa que livremente ofereceu imóvel de sua propriedade para garantir empréstimo de outra pessoa jurídica. 6. Recurso especial não provido.
(REsp 1422466/DF, TERCEIRA TURMA, DJe 23/05/2016).
3. O REsp 1823159
Observo o que foi dito no julgamento do REsp 1823159.
A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) entendeu que a penhora do bem de família baseada na exceção do artigo 3º , VI, da Lei 8.009/1990 (execução de sentença penal que condena o réu a ressarcimento, indenização ou perdimento de bens) só é possível em caso de condenação definitiva na esfera criminal. Para o colegiado, não se admite interpretação extensiva dessa previsão legal.
A relatora do recurso do ex-gestor no STJ, ministra Nancy Andrighi, lembrou que a Lei 8.009/1990 instituiu a impenhorabilidade do bem de família com a finalidade de resguardar o direito fundamental à moradia, essencial à composição do mínimo existencial para uma vida digna.
Ela destacou, porém, que a impenhorabilidade possui limites de aplicação, não sendo oponível – por exemplo – na hipótese de imóvel adquirido com produto de crime ou na execução de sentença penal condenatória que imponha ressarcimento, indenização ou perdimento de bens. "Nessas hipóteses, no cotejo entre os bens jurídicos envolvidos, o legislador preferiu defender o ofendido por conduta criminosa ao autor da ofensa", declarou a ministra.
A ministra Nancy Andrighi salientou que existe nos autos uma discussão que envolve a relação entre as esferas civil e penal, visto que também houve processo criminal, cujo resultado foi a prescrição. "É fato notório que certas condutas ensejam consequências tanto pela aplicação do direito civil quanto do direito penal", disse ela.
A ministra explicou que a sentença condenatória criminal, em situações como essa, produz também efeitos extrapenais, tanto genéricos quanto específicos, sendo a obrigação de reparar o dano um dos efeitos genéricos, em conformidade com o que rezam os artigos 91 , I, do Código Penal e 935 do Código Civil.
Tem-se, então, de que pode um bem de família ser objeto de penhora, em execução civil, por conta de ressarcimento de danos por crime praticado.
4. O ARTIGO 91, I, DO CÓDIGO PENAL
Estamos diante de efeitos genéricos e específicos da condenação penal.
O efeito genérico é efeito automático, que não necessita ser expressamente pronunciado pelo juiz na sentença condenatória e destina-se a formar título executivo judicial para a propositura de ação civil ex delicto. Para tanto ensinou Frederico Marques (Tratado de direito penal, volume III, pág. 377): “Se a sentença penal reconhece que o fato típico não é ilícito em virtude da ocorrência de uma das justificativas do artigo 23 do Código Penal, ilicitude também não existe no Direito Civil, e isto em face do próprio artigo do Código Civil, que exclui a antijuridicidade do ato danoso quando há legítima defesa, exercício regular de direito e o estado de necessidade. Todavia, apesar do estado de necessidade, o ato agressivo se considera licito, eximido não se encontra o seu autor de indenizar os prejuízos causados. Vigora aí o princípio, segundo expõe Alceu Cordeiro Fernandes, de que, “embora lícito o ato, isto é, praticado de conformidade com o direito, cria, não obstante, para o agente a obrigação de indenizar, por isso que causa dano, diminui o patrimônio de outrem. A aplicação dos artigos 929 e 930 do Código Civil, depois de absolvido criminalmente o acusado em virtude do estado de necessidade, não significa violação do artigo 62 do Código de Processo Penal. O juiz civil aceitou, como não poderia deixar de acontecer, o que reconheceu o juiz penal; todavia, mesmo em estado de necessidade, mesmo praticando um ato lícito, o causador do prejuízo deve repará-lo, porque assim o determina o Código Civil”.
Nesse caso, a sentença penal faz nascer o título executório, sem mais discussão sobre a culpa (an debeatur), restando a análise do valor da indenização (quantum debeatur) em sede de liquidação de sentença.
A sentença absolutória, por certo, não serve de título executivo, aplicando-se, entretanto, o disposto no artigo 64 e 66 do Código de Processo Penal.
Quando houver anistia, permanece o dever de indenização na esfera civil.
No caso de prescrição da pretensão executória, mantém a sentença a sua força de título executório, o mesmo não ocorrendo com a prescrição da pretensão punitiva. Nessa situação, deve a vítima discutir, no civil, a culpa do réu, como ensinou Guilherme de Souza Nucci(Código penal comentado, 8ª edição, pág. 500).
Para tanto, reza o artigo 91, I, do Código Penal:
I – tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime;
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Veja-se bem: a condenação penal a partir do momento em que se torna irrecorrível, faz coisa julgada, no civil, para fins de reparação do dano. Tem a natureza de título executório, permitindo ao ofendido reclamar a indenização civil sem que o condenado, pelo delito possa discutir a existência do crime ou a sua responsabilidade por ele.
O que não pode é o juiz civil reabrir a questão sobre a responsabilidade civil pelo fato reconhecido como crime por sentença com trânsito em julgado (STJ RTJ 91/253).