Fornecimento do CPF em Farmácias e Proteção dos Dados Pessoais

04/12/2020 às 14:32
Leia nesta página:

O artigo examina a Lei nº 17.301/2020, do Estado de São Paulo, que regula o fornecimento de CPF em farmácias e drogarias, a partir da competência legislativa e da proteção de dados pessoais.

Os dados pessoais protegidos pela Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais se dividem em dados pessoais (em sentido estrito) e em dados pessoais sensíveis (art. 5º, I e II, da LGPD).

Os dados pessoais em sentido estrito são aqueles relacionados a uma pessoa natural, identificada ou identificável e compreendem, em regra, os dados biográficos e os cadastrais, tais como o nome, a nacionalidade, a data de nascimento, o estado civil, o número de documento (RG, CPF, CNH etc.), o domicílio, entre outros. Contudo, esse enquadramento deve ser feito por exclusão, porque os dados biográficos e cadastrais só podem ser definidos como dados pessoais propriamente ditos quando, na situação concreta, não se encaixarem na definição legal de dados pessoais sensíveis.

Por exemplo, a foto de uma pessoa é, em regra, um dado pessoal. Porém a foto de um candidato em concurso público para vagas de cotas raciais é um dado pessoal sensível.

Da mesma forma, o CPF é um dado pessoal, mas, em determinadas situações pode se tornar um dado pessoal sensível.

A principal situação em que isso ocorre no Brasil está na exigência do CPF para a realização de compras (e, muitas vezes, para a obtenção de um desconto ou promoção) em farmácias e drogarias. Ao relacionar o CPF de uma pessoa às compras de medicamentos e outros produtos ou serviços relacionados à sua saúde, esse dado passa a ser enquadrado no conceito de dado pessoal sensível do art. 5º, II, da LGPD.

Por isso, nesse caso há uma proteção diferenciada do CPF, o que compreende inclusive a necessidade da indicação pelo controlador (farmácia ou drogaria) de uma base legal prevista no art. 11 (e não no art. 7º) da LGPD.

A Lei nº 17.301/2020, do Estado de São Paulo, em vigor desde o dia 02 de dezembro de 2020, possui duas regras sobre esse tema em seu art. 1º:

(a) em regra, proíbe as farmácias e drogarias de exigir o número do CPF de seus clientes, como condição para o ato de compra de produtos e serviços ou para a concessão de promoções (como o desconto no valor do produto comprado ou de outros);

(b) excepcionalmente, autoriza as farmácias e drogarias localizadas no território do Estado a solicitar aos clientes o seu número de CPF, desde que (b.1) prestem informações prévias adequadas e claras acerca da abertura de cadastro ou de registro com os dados pessoais, (b.2) e esclareçam que o seu não fornecimento não impede a concessão de promoções aos consumidores.

O descumprimento dessas regras é sancionado com multa administrativa, que pode ser aplicada em dobro na hipótese de reincidência.

Além disso, o art. 2º da Lei estadual nº 17.301/2020 inclui uma obrigação acessória às farmácias e drogarias, de fixar avisos contendo a frase "Proibida a exigência do CPF no ato da compra que condiciona a concessão de determinadas promoções", em tamanho de fácil leitura e em local de passagem e fácil visualização nos estabelecimentos.

Essa lei estadual de São Paulo pode ser analisada sob dois aspectos.

Em primeiro lugar, em um aspecto formal, é preciso verificar a competência – ou não – do Estado para regular o assunto.

A matéria regulada pela lei estadual envolve questões de Direito Civil (personalidade e dados pessoais) e Comercial (regras de exercício de atividade empresarial), o que se enquadra na competência legislativa privativa da União (art. 22, I, da Constituição).

Porém, também trata de Direito do Consumidor (relação entre as farmácias e drogarias e seus consumidores) e de proteção da saúde, o que se enquadra na competência legislativa concorrente da União, dos Estados e do Distrito Federal (art. 24, V, VIII e XII, da Constituição).

Na análise de leis específicas (estaduais e municipais) sobre as atividades de drogarias e farmácias, o STF possui os seguintes entendimentos:

- Os Municípios têm competência legislativa para regular o horário de funcionamento de farmácias e drogarias, com fundamento no interesse local (Súmula Vinculante nº 38; Rcl 35075 AgR, 1ª Turma, rel. Min. Roberto Barroso, j. 27/09/2019, DJe 09/10/2019; AI 629125 AgR, 1ª Turma, rel. Min. Dias Toffoli, j. 30/08/2011, DJe 11/10/2011; RE 408373 AgR, 2ª Turma, rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 23/05/2006, DJ 16/06/2006);

- Os Estados têm competência legislativa para regular a comercialização de artigos de conveniência e outros produtos por drogarias, com fundamento no art. 24, XII, da Constituição, que prevê a competência legislativa concorrente sobre a defesa da saúde (ADI 4955, Pleno, rel. Min. Dias Toffoli, j. 24/09/2014, DJe 14/11/2014; ADI 4954, Pleno, rel. Min. Marco Aurélio, j. 20/08/2014, DJe 29/10/2014);

- Os Estados não têm competência legislativa para regular a concessão obrigatória de descontos, por farmácias e drogarias, a determinadas pessoas (como os idosos), por violar o princípio constitucional da livre iniciativa (RE 418458, decisão monocrática, rel. Min. Cármen Lúcia, j. 09/12/2014, DJe 12/12/2014; RE 585453, decisão monocrática, rel. Min. Dias Toffoli, j. 14/09/2012, DJe 21/09/2012).

Assim, primeiro é preciso definir um enquadramento legislativo da matéria, para definir a competência – ou não – do Estado para a sua regulação.

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Em segundo lugar, em um aspecto material, apesar de a lei estadual de São Paulo não ser propriamente uma norma de proteção de dados (mas reguladora de uma atividade empresarial por determinadas pessoas jurídicas), a LGPD já regula de forma ampla essa e outras relações de consumo que compreendam a coleta de dados do consumidor pelo fornecedor na prestação de um serviço ou no fornecimento de um produto.

Na situação específica de farmácias e drogarias, a informação do número do CPF deve ter uma base legal, que, por envolver um dado pessoal que se torna sensível no caso, deve ser prioritariamente o consentimento do titular (art. 11, I, da LGPD).

Por isso, o consentimento deve ser informado, expresso (manifestação positiva da vontade do titular), realizado por escrito, é revogável e deve constar de uma cláusula exclusiva, com finalidade específica e limitada (tendo em vista que não há poder absoluto e genérico para o tratamento dos dados pessoais), de acordo com o art. 8º da LGPD.

Logo, não é mais suficiente a mera declaração oral do CPF no ato da compra, mas depende de um registro escrito. Ainda, o consentimento não deve ser uma condição para assinatura do contrato, tampouco pode ser imposto como uma cláusula de “tudo ou nada”, ou seja, que a sua prestação seja indispensável para a prestação de um serviço ou o fornecimento de um bem ao titular dos dados pessoais (o que pode caracterizar a abusividade da cláusula).

A utilização de outra base legal do art. 11 deve ser acompanhada da comprovação de sua indispensabilidade. Por exemplo, a exigência do CPF como meio para o cumprimento do contrato de compra e venda de medicamentos é uma base legal adequada e justifica a dispensa do consentimento?

Além disso, o titular tem o direito de conhecimento do que será feito com o seu CPF e outros dados pessoais e a finalidade do tratamento (será informado para outras farmácias e drogarias – da mesma rede ou de outras –, os seus hábitos de comora serão repassados para os laboratórios farmacêuticos e para os planos de saúde, ou será usado apenas para a obtenção de descontos e promoções?). Da mesma forma, o consumidor titular de dados pessoais tem o direito de ser informado sobre o seu direito de não fornecer o consentimento para informar o número do CPF e sobre as consequências da negativa (art. 18, VIII, da LGPD).

Portanto, o fornecimento de CPF para a realização de compras em farmácias e drogarias passou a ter uma regulação nova (e as empresas precisam se adequar a ela) desde a entrada em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais.

Sobre o autor
Oscar Valente Cardoso

Professor, Doutor em Direito, Diretor Geral da Escola da Magistratura Federal do Rio Grande do Sul, Coordenador do Comitê Gestor de Proteção de Dados do TRF da 4a Região, Palestrante, Autor de Livros e Artigos, e Juiz Federal

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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