Introdução
A atividade econômica e as decisões dos agentes do mercado são matérias importantes para a toda a sociedade. Sendo muitas vezes o próprio Estado um agente importante para a Economia, podendo intervir de forma direta e de forma indireta.
Nesse sentido, esse breve artigo tem o objetivo de analisar as formas de intervenção indireta do Estado permitidas pela Constituição da República de 1988. A preocupação do constituinte de abordar o direito econômico não é uma novidade. Nesse sentido, pondera Gonçalves Fernandes[1]:
No Brasil, o primeiro texto constitucional a dispor sobre a Ordem Econômica foi a Constituição de 1934, sob isso não pode ser confundido como um inicio de “socialização”, já que em momento algum se perdeu de vista o fato de que a ordem jurídica brasileira era eminentemente capitalista (apoiada na propriedade privada dos meios de produção). (FERNANDES, 2019, p. 1916)
Assim, a Constituição de 1934 inova ao pretender transformar o projeto econômico, diferente das ordens constitucionais anteriores que se limitavam a garantir a liberdade econômica, em especial o direito fundamental a propriedade.
Na Constituição de 1937 existiu um capítulo denominado de “DA ORDEM ECONÔMICA” em que é possível verificar expressamente, uma tendência ao intervencionismo estatal, como se verifica em seu artigo 135 [2]:
Art. 135 - Na iniciativa individual, no poder de criação, de organização e de invenção do indivíduo, exercido nos limites do bem público, funda-se a riqueza e a prosperidade nacional. A intervenção do Estado no domínio econômico só se legitima para suprir as deficiências da iniciativa individual e coordenar os fatores da produção, de maneira a evitar ou resolver os seus conflitos e introduzir no jogo das competições individuais o pensamento dos interesses da Nação, representados pelo Estado. A intervenção no domínio econômico poderá ser mediata e imediata, revestindo a forma do controle, do estimulo ou da gestão direta
Nas cartas constitucionais que se seguiram é possível constatar a continuidade do modelo capitalista e a manutenção de um cenário nacionalista e intervencionista por parte do Estado. A Constitucional atual inova, pois, inaugura uma tendência liberal.
A análise do texto constitucional evidencia a clara opção pelo regime capitalista, na medida em que se respeita a propriedade privada dos meios de produção e a livre iniciativa. Além disso, pela primeira, vez, utiliza-se da expressão “ordem econômica e financeira em substituição a até então utilizada, “ordem econômica e social”. Por fim, como se verá adiante, as emendas constitucionais que alteram o texto de 1988, representam, claramente, entre nós, a consagração do modelo de Estado Regulador. (VILELA ,2018, p.46)[3]
A ordem econômica é especialmente tratada a partir do artigo 170 e seguintes da Constituição de 1988. São positivados nesses artigos os princípios gerais da atividade econômica, quais sejam: da soberania nacional, propriedade privada, função social da propriedade, livre concorrência, defesa do consumidor, defesa do meio ambiente, redução das desigualdades regionais e sociais, busca do pleno emprego e tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras. Assim, passamos a uma análise constitucional da possibilidade de intervenção indireta do Estado na Ordem Econômica.
INTERVENÇÃO INDIRETA NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
A possibilidade de intervenção indireta na economia por parte do Estado está expressa no artigo 174 da Constituição de 1988. Nessa lógica, trazemos os ensinamentos de (RAMOS, TAVARES, 2011, p.301-302)
Ao Estado, portanto, na seara econômica, é permitido atuar como agente normativo e regulador e, por meio dessas posições, exercer a tríplice função: fiscalizadora, incentivadora e planejadora, embora esta última encontre-se minimizada quanto ao seu caráter impositivo para o setor privado, não se admitindo, portanto, o controle nos termos indicados[4] (RAMOS, TAVARES, 2011, p.301-302)
A respeito da intervenção indireta cabe trazer ao debate o entendimento fixado pelo Supremo Tribunal Federal. Foi formulado o entendimento de que a intervenção estatal pode gerar inclusive o direito de indenização por dano material ao particular. Ou seja, quando o ente contraria os princípios constitucionais fere o seu poder/ dever de atuação na ordem econômica. Pela importância colamos a ementa na integra:
Ementa: AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. ADMINISTRATIVO. INTERVENÇÃO DO ESTADO NO DOMÍNIO ECONÔMICO. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO. FIXAÇÃO PELO PODER EXECUTIVO DOS PREÇOS DOS PRODUTOS DERIVADOS DA CANA-DE-AÇÚCAR ABAIXO DO PREÇO DE CUSTO. DANO MATERIAL. INDENIZAÇÃO CABÍVEL. 1. A intervenção estatal na economia como instrumento de regulação dos setores econômicos é consagrada pela Carta Magna de 1988. 2. Deveras, a intervenção deve ser exercida com respeito aos princípios e fundamentos da ordem econômica, cuja previsão resta plasmada no art. 170 da Constituição Federal, de modo a não malferir o princípio da livre iniciativa, um dos pilares da república (art. 1º da CF/1988). Nesse sentido, confira-se abalizada doutrina: As atividades econômicas surgem e se desenvolvem por força de suas próprias leis, decorrentes da livre empresa, da livre concorrência e do livre jogo dos mercados. Essa ordem, no entanto, pode ser quebrada ou distorcida em razão de monopólios, oligopólios, cartéis, trustes e outras deformações que caracterizam a concentração do poder econômico nas mãos de um ou de poucos. Essas deformações da ordem econômica acabam, de um lado, por aniquilar qualquer iniciativa, sufocar toda a concorrência e por dominar, em conseqüência, os mercados e, de outro, por desestimular a produção, a pesquisa e o aperfeiçoamento. Em suma, desafiam o próprio Estado, que se vê obrigado a intervir para proteger aqueles valores, consubstanciados nos regimes da livre empresa, da livre concorrência e do livre embate dos mercados, e para manter constante a compatibilização, característica da economia atual, da liberdade de iniciativa e do ganho ou lucro com o interesse social. A intervenção está, substancialmente, consagrada na Constituição Federal nos arts. 173 e 174. Nesse sentido ensina Duciran Van Marsen Farena (RPGE, 32:71) que "O instituto da intervenção, em todas suas modalidades encontra previsão abstrata nos artigos 173 e 174, da Lei Maior. O primeiro desses dispositivos permite ao Estado explorar diretamente a atividade econômica quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei. O segundo outorga ao Estado, como agente normativo e regulador da atividade econômica. o poder para exercer, na forma da lei as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo esse determinante para o setor público e indicativo para o privado". Pela intervenção o Estado, com o fito de assegurar a todos uma existência digna, de acordo com os ditames da justiça social (art. 170 da CF), pode restringir, condicionar ou mesmo suprimir a iniciativa privada em certa área da atividade econômica. Não obstante, os atos e medidas que consubstanciam a intervenção hão de respeitar os princípios constitucionais que a conformam com o Estado Democrático de Direito, consignado expressamente em nossa Lei Maior, como é o princípio da livre iniciativa. Lúcia Valle Figueiredo, sempre precisa, alerta a esse respeito que "As balizas da intervenção serão, sempre e sempre, ditadas pela principiologia constitucional, pela declaração expressa dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, dentre eles a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa" (DIÓGENES GASPARINI, in Curso de Direito Administrativo, 8ª Edição, Ed. Saraiva, págs. 629/630, cit., p. 64). 3. O Supremo Tribunal Federal firmou a orientação no sentido de que “a desobediência aos próprios termos da política econômica estadual desenvolvida, gerando danos patrimoniais aos agentes econômicos envolvidos, são fatores que acarretam insegurança e instabilidade, desfavoráveis à coletividade e, em última análise, ao próprio consumidor.” (RE 422.941, Rel. Min. Carlos Velloso, 2ª Turma, DJ de 24/03/2006). 4. In casu, o acórdão recorrido assentou: ADMINISTRATIVO. LEI 4.870/1965. SETOR SUCROALCOOLEIRO. FIXAÇÃO DE PREÇOS PELO INSTITUTO DO AÇÚCAR E DO ÁLCOOL – IAA. LEVANTAMENTO DE CUSTOS, CONSIDERANDO-SE A PRODUTIVIDADE MÍNIMA. PARECER DA FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS – FGV. DIFERENÇA ENTRE PREÇOS E CUSTOS. 1. Ressalvado o entendimento deste Relator sobre a matéria, a jurisprudência do STJ se firmou no sentido de ser devida a indenização, pelo Estado, decorrente de intervenção nos preços praticados pelas empresas do setor sucroalcooleiro. 2. Recurso Especial provido. 5. Agravo regimental a que se nega provimento. (RE 632644 AgR, Relator(a): LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 10/04/2012, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-091 DIVULG 09-05-2012 PUBLIC 10-05-2012)
Pela simples leitura do julgado fica evidente que a intervenção indireta do Estado é possível através de uma atuação do Poder Executivo. Assim o papel de regulador e normatizador recai sobre esse poder, especialmente para que possa responder as situações econômicas com agilidade.
Por este motivo, a função de planejamento ganha especial relevo, afinal “(...) representa um mecanismo jurídico por meio do qual o administrador executa sua atividade governamental buscando estabelecer as condições necessárias ao desenvolvimento econômico” (VILELA ,2018, p. 202).
ESTADO REGULADOR
O Estado no papel de interventor no domínio econômico não é um assunto novo nem para a economia, muito menos para o direito. Mas com a Constituição de 1988 iniciou um novo tratamento. Na doutrina o tema de intervenção era abordado sob o viés do poder de polícia. Além desse viés, a regulação no direito ganhou maior destaque a partir da Reforma Administrativa dos anos de 1990 que, dentre outros aspectos, criou as agências reguladoras independentes e redefiniu as relações entre Direito e o Mercado no Brasil. (VILELA ,2018, p. 204).
As reformas iniciadas pela lei 8031/90, que estabeleceu o Programa Nacional de Desestatização, tiveram grande relevo social. Dessa forma, no final do século XX a reforma do Estado Brasileiro se concentrou na extinção de determinadas restrições ao capital estrangeiro; flexibilização dos monopólios estatais; e privatizações. Pode-se resumir que nesse contexto o Estado, por não contar com recursos suficientes, transfere a prestação de determinados serviços públicos para o setor privado.
Vislumbra-se, nesse modelo, o princípio da subsidiariedade da atuação estatal na economia, na medida em que o Estado passa a ser mero garantidor e regulador de diversos serviços públicos, deixando de prestá-los diretamente. (VILELA ,2018, p. 207).
Nesse norte, tendo como inspiração o direito norte americano, são introduzidas no ordenamento pátrio, as popularmente chamadas agências reguladoras.
As agências reguladoras independentes brasileiras são autarquias de regime especial, dotadas de considerável autonomia frente à Adminis- tração centralizada, incumbidas do exercício de funções regulatórias e dirigidas por colegiado cujos membros são nomeados por prazo determinado pelo Presidente da República, após prévia aprovação pelo Senado Federal, vedada a exoneração ad nutum. (ARAGÃO, 2013, p.481)
Dentro do texto constitucional a competência para tratar de Direito Econômico é definida no art. 24, I, CF/88, que é competência concorrente da União, dos Estados e do Distrito Federal legislar concorrentemente sobre direito econômico. Assim, podem existir diversas agências reguladoras em diferentes entes federados.
Por todo o exposto, a intervenção indireta na economia tem contornos bem definidos na Constituição de 1988 e tem como norte a garantia dos princípios econômicos constitucionais. Entretanto, o contexto histórico da formação do Estado Regulador se modificou drasticamente. Diante do contexto político e social da pandemia de COVID-19, novos rumos serão tomados pelo Direito Econômico e com a possível modificação das formas de intervenção indireta na Economia. Entanto, ainda é relevante o estudo do texto constitucional sobre o tema.
REFERÊNCIAS
ARAGÃO, Alexandre S. Agências Reguladoras e a Evolução do Direito Administrativo Econômico, 3ª edição. Grupo GEN, 2013
BRASIL. Constituição de 1934. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao34.htm. Acesso em 03 de dezembro de 2020.
BRASIL. Constituição de 1937. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao37.htm . Acesso em 03 de dezembro de 2020.
BRASIL. Constituição de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 03 de dezembro de 2020.
BRASIL. Lei 8031/90. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8031.htm. Acesso em: 04 de dezembro de 2020.
FERNANDES, B. G.; PEDRON, F. B. Q. Curso de direito constitucional. 11ª. ed. rev., e atual. Salvador: Juspodivm, 2019.
VILELA, Danilo Vieira. Direito Econômico. 3ª ed. Salvador: Juspodivm, 2018.
SCHAPIRO, M. G. Direito econômico regulamentório. [recurso eletrônico]. [s. l.]: Saraiva, ISBN 9788502141896. Disponível em: http://search.ebscohost.com/login.aspx?direct=true&db=cat06909a&AN=sib.5004913&lang=pt-br&site=eds-live. Acesso em: 2 dez. 2020
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, RE 632.644 AgR, rel. min. Luiz Fux, j. 10-4-2012, 1ª T, DJE de 10-5-2012. Disponível em http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=1978810. Acesso em: 3 dez. 2020
Ramos, TAVARES, A. Direito Constitucional Econômico, 3ª edição. Grupo GEN, 2011.
[1] FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Direito constitucional. 2019, p. 1916.
[2] BRASIL. Constituição de 1937. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao37.htm . Acesso em 03 de dezembro de 2020.
[3] VILELA, Danilo Vieira. Direito Econômico. 3ª ed. Salvador: Juspodivm, 2018. p 46.
[4] Ramos, TAVARES, A. Direito Constitucional Econômico, 3ª edição. Grupo GEN, 2011.p 301-302.