Notas sobre sociologia jurídica e o ensino do direito no Brasil

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A Sociologia do Direito desde a perspectiva crítica deve se servir das ferramentas teórico metodológicas da Sociologia.

“Acreditar que nada na sociedade precisa mudar, que a injustiça social que aí está é atávica, que a pobreza existirá sempre, que o trabalho será sempre explorado, enterramos a própria sociologia do direito, e, de resto, enterramos também a razão de ser do jurista. A sociologia do direito perecerá, porque ela só existe para poder exprimir que as injustiças são sociais, e não da conta da natureza ou de Deus ou de qualquer atavismo. Ora, tudo o que é social é contingente, mutável, aberto à transformação. E enterramos a própria razão última de ser jurista porque, sendo pessoas devotadas ao justo, ao constatarmos que a sociedade é profundamente injusta, se renunciarmos à transformação renunciamos à nossa responsabilidade mais alta. O mundo plenamente justo deve ser o ideal do jurista. Estudar a sociedade para conhecer a fundo suas estruturas, e conhecer para transformar, esta é a razão de ser da formação teórica do jurista”. (MASCARO, Alysson. "Lições de Sociologia do Direito". Ed. Quartier Latin).

Como se sabe, no ensino jurídico brasileiro prevalece o interesse pelas disciplinas ditas dogmáticas em detrimento das matérias zetéticas. As primeiras dizem respeito ao direito em sua relação mais íntima com a norma jurídica (direito civil, direito processual civil, direito penal, etc.), e constata-se aqui a hegemonia da orientação do positivismo jurídico na formação dos juristas, quase sempre relegando ao segundo plano reflexões interdisciplinares do direito.

Sintomática é a designação da obra máxima de Hans Kelsen, principal expoente do positivismo jurídico, “Teoria Pura do Direito”: constata-se um esforço de delimitar o fenômeno jurídico da política, dos fatos sociais, de sua conformação na história, de molde a criar uma ciência jurídica fincada nos seus próprios pressupostos e escalonada desde a constituição partindo de uma metafísica premissa, a Norma Fundamental, uma espécie de imperativo categórico que não se encontro no mundo dos fatos mas que serve como justificativa lógico formal em termos idealistas.

De uma certa maneira os próprios alunos ingressantes nos cursos jurídicos acabam tendo interesse especial pelas matérias dogmáticas deixando em segundo plano Introdução ao Estudo do Direito, Filosofia do Direito ou Sociologia do Direito. Necessidades da vida: quase todos estes alunos serão examinados pelo Exame da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) que não buscará em suas provas analisar a capacidade crítica dos bacharéis acerca das relações entre estado, direito, poder e relações econômicas. Trata-se de provas que envolvem leitura e memorização da letra de lei. Assim ganham montantes de dinheiro cursinhos preparatórios semelhantes aos cursos para os vestibulares que até preparam canções e “macetes” de memorização, como o famoso Telefone do Direito Constitucional (3530-2118)[1]. Tais extravagancias revelam uma concepção de direito desvinculada de uma orientação que tenha um olhar crítico do mundo, que revele as contradições da sociedade cingida em classes e particularmente em face dos problemas sociais brasileiros e latino-americanos. Este jurista médio em poucos dias após a aprovação do concurso na OAB ou qualquer certame esquecerá o enorme volume de informações decoradas, desde os atos privativos do advogado até as diferenças entre um substabelecimento com ou sem reservas de poderes (o que numa atividade profissional prática poderia ser atendido numa demanda a partir de uma simples consulta a um Vade Mecum) e provavelmente irá reproduzir em sua vida profissional práticas reiteradas sem ao menos cogitar acerca do problema do justo, dos vínculos entre e literalidade da lei e a sua conformação na história tanto do Brasil quanto particularmente do capitalismo, das imbricações entre o direito e o poder, das exorbitantes arbitrariedades do próprio poder judiciário em países de periferia como o Brasil, a despeito da lei e do Estado Democrático de Direito. Será mais um jurista médio a reproduzir o senso comum.

É nestes marcos que esta obra do professor de Filosofia da USP Alysson Leandro Mascaro ganha relevo. Trata-se de uma compilação de suas aulas de sociologia ministradas na pós-graduação em Direito do Mackenzie. Certamente, se já há dificuldades de romper os muros do positivismo jurídico numa perspectiva de uma teoria crítica do direito, o que envolve a revitalização das matérias zetéticas, dentre estas matérias é a Sociologia do Direito, no Brasil, a que mais carece de desenvolvimento, em especial no nível mais teórico.

O autor inicia o livro expondo que há duas maneiras de se desenvolver um curso de Sociologia do Direito. O primeiro e mais difícil se baseia na reflexão geral acerca do problema da sociedade e suas interfaces com o direito: compreender sociologicamente o direito, considerando que a sociologia enquanto disciplina autônoma é um fenômeno do século XIX desde Durkheim, Marx e Webber. Uma segunda linha de estudos seria mais empírica e aplicada a questões jurídicas, seja através dos estudos de políticas públicas e o institucionalismo, as linhas de pesquisa que envolvem análises de criminalidade e demais fatos sociais que darão embasamento para a formulação da legislação penal, processual penal, etc. O livro de Mascaro segue a primeira orientação, mas partindo da pré-sociologia a partir dos Gregos, já com Platão e Aristóteles.

O que é mais interessante na leitura destas lições é como a exposição sintética de cada pensador envolve as suas contribuições específicas para pontos convergentes entre sociedade, direito, política e poder. E nesta descrição há uma espécie de desenvolvimento histórico subjacente que revela as contradições de classes, a conformação econômica de base, o modo de produção de cada época histórica e os momentos de transição, seja a partir do renascimento, dos estados absolutistas, da revolução francesa e posteriormente da revolução russa, como chave explicativa materialista para se compreender cada autor e as razões pela qual pensarem o mundo em seu tempo e suas ideias ganharam relevo.

Por exemplo, acerca do renascimento:

“Se as ferramentas da explicação social medieval levavam a crenças teológicas, agora, no início do capitalismo, é preciso repensar a sociedade a partir das relações reais e efetivas que nela ocorrem. O comércio e o lucro não se explicam mais a partir de velhas teologias. Assim sendo, deu-se uma espécie de volta ao passado teórico, como forma de buscar um trampolim melhor ao presente. Dante Alighieri, no final da Idade Média, retoma algumas questões políticas da Idade Antiga e dos Clássicos. Maquiavel estudará a política romana. Nesse mesmo tempo, em outra esfera intelectual – a literatura -, Luís de Camões, em Os Lusíadas, não fala do santo medieval nem da figura do Deus medieval, mas sim dos deuses clássicos e de sua mitologia. Daí chamar-se esse movimento de renascentista, porque faz renascer as ideias do mundo clássico greco-romano”.

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Outrossim, em dado momento histórico Hobbes que propugna a ficção do Contrato Social, a noção de que o homem é o lobo do homem e um Estado Absolutista para criar as condições de sociabilidade humana, formulou uma concepção histórica que atendia aos interesses da burguesia de unificação dos Estados Nacionais em face da fragmentação política que caracteriza o período medieval. Num segundo momento, o Iluminismo se insurgirá contra os privilégios do Antigo Regime que exclui a classe burguesa em detrimento da nobreza e da Igreja e outros pensadores se projetam como Voltaire e Rousseau - atacam o absolutismo e a noção de que o monarca é um representante de Deus na Terra.

Teoria Crítica do Direito

Certamente, serão os autores associados à tradição marxista aqueles que terão uma visão de longo alcance acerca do problema do direito. Alysson Mascaro refere-se desde Marx e Engels, à Escola de Frankfurt com importante crítica à razão instrumental que de certa forma dialoga com o tipo de conhecimento jurídico mencionado no começo desta resenha; há menções há autores do marxismo ocidental como Lukács e Bloch, um autor marxistas heterodoxo com interesse ao direito, pouco conhecido no Brasil.

No que se refere ao Direito e Marxismo, pode-se falar numa teoria crítica do direito, matéria inaugurada como disciplina optativa eletiva na Faculdade de Direito da USP desde o 2º Semestre de 2016. Certamente o materialismo histórico e dialético revelará a forma jurídica como uma forma especificamente capitalista, derivada da forma mercantil. Pachukanis no contexto da Revolução de 1917 em sua “Teoria Geral do Direito e Marxismo” levou adiante um estudo em que se afere como o direito se revela não como mera projeção superestrutural do modo de produção capitalismo, mas se encontra no próprio DNA deste modo de produção:

“Uma crítica à jurisprudência burguesa, do ponto de vista do socialismo científico, deve tomar como modelo a crítica à economia política burguesa, como o fez Marx. Para isso ela deve, antes de tudo, adentrar no território inimigo, ou seja, não deve deixar de lado as generalizações e as abstrações que foram trabalhadas pelos juristas burgueses e que se originaram de uma necessidade de sua própria época e de sua própria classe, mas, ao expor a análise dessas categorias abstratas, revelar seu verdadeiro significado, em outras palavras, demonstrar as condições históricas da forma jurídica.”PASHUKANIS, Evguiéni B. “Teoria Geral do Direito e Marxismo”. Boitempo Ed. Pg. 80.

No capitalismo, o trabalho converte-se em mercadoria dando forma a uma sociabilidade específica (não mais escravagista e feudal). Ganha expansão a noção jurídica de sujeito de direito a partir da qual pessoas que se consideram livres e iguais entre si compram e vendem força de trabalho: erige-se uma relação de equivalência entre produção e circulação que as fazem ,trabalhador e burguês, serem tomados como sujeitos de direito, ancorados a partir de um vínculo contratual garantido pelo Estado. Vê-se aqui como há um refinamento teórico superior a uma certa escolástica de uma leitura superficial de Marx[2] que coloca o direito como mera projeção superestrutural da economia política, mera configuração ideológica, etc.

A Sociologia do Direito desde a perspectiva crítica deve se servir das ferramentas teórico metodológicas da Sociologia. Mesmo conceitos fora do marxismo como “tipo ideal” de Webber ou as discussões sobre micropoder de Foucault podem e devem ser apropriadas quando ajudam a esclarecer a realidade ou criar melhores condições para agir e lutar.

As reflexões acerca da miséria da sociabilidade capitalista e as possibilidades e horizontes no sentido de uma sociedade não mais cingida em classes sociais, não mais baseada na propriedade privada da riqueza, baseada na mais profunda igualdade, na justiça em sua totalidade, tal sociedade almejada tem o nome, na nossa modesta opinião, de comunismo.


[1] Correspondendo a idade mínima para elegibilidade conforme a Constituição Federal. 35 anos Presidente, Vice-Presidente e Senador; 30 anos Governador e Vice-Governador; 21 anos para Deputado Federal e Estadual, Prefeito e Vice-Prefeito; 18 anos Vereador

[2] Ver “Contribuição à Crítica da Economia Política”. Marx, K. Ed. Expressão Popular.

Sobre o autor
Paulo Henrique de Oliveira Marçaioli

Graduado em Direito pela Faculdade de Direito da USP - FDUSP - Turma 183 Graduado em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero Especialista em Direito Digital.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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