A qualidade e segurança dos produtos e serviços: informação e ‘recall’

24/12/2020 às 11:30
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Uma breve análise do instituto do 'recall' à luz dos deveres insculpidos no Código de Defesa do Consumidor, especialmente o dever de segurança e de informação.

Sumário: 1. Dever de segurança na seara consumerista. 2. Dever de informação como direito básico do consumidor. 3. Recall: o que é e como funciona. 4. Conclusões. 5.  Bibliografia.

1. O dever de segurança na seara consumerista

         Anote-se por primeiro, que a responsabilidade que o Código de Defesa do Consumidor impõe aos fornecedores, tanto de produtos quanto de serviços, além dos deveres de qualidade e de informação, é um dever de segurança. Isto quer dizer que aquele que coloca um produto ou um serviço no mercado tem a obrigação legal de ofertá-lo sem risco ao consumidor no que diz respeito à sua saúde, à sua integridade física e ao seu patrimônio (Lei n° 8.078/90, art. 8° a 10, 12 § 1° e 14 § 1°).

         Este dever de segurança não é absoluto porque o Código de Defesa do Consumidor não proíbe a colocação no mercado consumidor de produtos ou serviços potencialmente perigosos, em verdade tal dever ancora-se na idéia de defeito. De fato, a própria lei consumerista quando define o que seja produto ou serviço defeituoso explicita que são aqueles que não oferecem a segurança que legitimamente deles se espera, consideradas as circunstâncias de fornecimento tais como a apresentação, o uso e os riscos esperados e a época da colocação em circulação ou fornecido (Lei n° 8.078/90, art. 12, § 1° e 14, § 1°).

         Tanto é verdade que diversos produtos e serviços, naturalmente perigosos, estão colocados no mercado e são imprescindíveis aos seres humanos. Dentre exemplos clássicos podemos destacar “a quase totalidade dos medicamentos, (que) em razão de sua natureza, ostenta índice normal de nocividade que, com vista à responsabilidade do fornecedor, será tolerado quando vier acompanhado de bulas explicativas”.[1] Neste caso, a nocividade será ilidida desde que o produto seja acompanhado de explicações quanto à sua destinação e uso (bula) de tal sorte a afirmar que o dever de informação, que deverá ser ostensiva, é complementar ao dever de segurança. Significa dizer que se o consumidor for adequadamente informado sobre a nocividade ou periculosidade do produto e, se ainda assim promover o uso inadequado ou impróprio do mesmo, não poderá responsabilizar o fornecedor, pois estaremos diante de culpa exclusiva da vítima ou, eventualmente, de terceiro.

         Outro exemplo ilustrativo é o do inseticida agrícola que é eficaz para o combate de pragas, mas pode ser extremamente nocivo à saúde de quem estiver aplicando-o. Assim, se o produto traz informações quanto à sua nocividade e, além disso, informa que para ser aplicado o usuário deve utilizar-se de máscara, luvas e macacão como forma de proteção, o fornecedor terá se desincumbido do ônus da informação e, na eventualidade de acidente, estará isento do dever de indenizar.[2]

        Desta forma, temos que o dever de segurança está implícito em toda e qualquer relação de consumo tanto é assim que, conforme afirma Roberto Senise Lisboa, “a responsabilidade pelo fato do produto e serviço é embasada no dever de segurança que o fornecedor tem de exercer a sua atividade sem acarretar danos à vida, saúde ou outros direitos extrapatrimoniais do consumidor, sob pena de responder pela reparação do prejuízo oriundo de um acidente de consumo”.[3]

        É por essa razão que a jurisprudência pátria vem reconhecendo que acidentes de consumo ocorridos em shoppings centers e supermercados, para citar um exemplo, tanto no que diz respeito a segurança pessoal do consumidor, quanto a seus pertences, acarreta um dever indenizatório em face do dever de segurança ínsito na atividade negocial ali desenvolvida. Assim, o furto de veículo no estacionamento, seqüestro relâmpago do usuário, queda em razão de piso escorregadio, dentro outras, gera responsabilidade para o detentor da atividade em razão do dever de cuidado e vigilância que se espera seja fornecido.

          Se dúvida restar, vejamos recente decisão do Superior Tribunal de Justiça a respeito do tema: “a empresa que fornece estacionamento aos veículos de seus clientes responde objetivamente pelos furtos, roubos e latrocínios ocorridos no seu interior, uma vez que, em troca dos benefícios financeiros indiretos decorrentes desse acréscimo de conforto aos consumidores, o estabelecimento assume o dever - implícito em qualquer relação contratual - de lealdade e segurança, como aplicação concreta do princípio da confiança.[4]

         Assim, o elemento segurança é um dever implícito a toda e qualquer relação de consumo e o seu descumprimento pode acarretar a responsabilidade do fornecedor porquanto não se pode tolerar que um produto ou serviço viciado ou defeituoso seja colocado em circulação e, como conseqüência, cause danos ao consumidor.[5]

2. Dever de informação como direito básico do consumidor

         É direito básico do consumidor receber informações adequadas e claras, sobre os produtos e serviços disponibilizados no mercado de consumo, inclusive com especificação de quantidade, características, composição, qualidade e preço, além dos eventuais riscos que produtos ou serviços apresentem, para que ele possa exercer de forma livre e consciente a sua opção quanto a escolha e aquisição (Lei n° 8.078/90, art. 6°, III).

         Esse dever de informação pode se materializar de várias formas. As informações podem ser fornecidas nas embalagens e rótulos dos produtos, na propaganda veiculada por qualquer forma, na publicidade, nos impressos ou mesmo nos orçamentos.

         Ademais, este dever de informação está explícito no Código de Defesa do Consumidor que, em outras passagens, volta a exigir respeito ao dever de bem informar como, por exemplo, quando trata da obrigação de informação quanto aos produtos perigosos ou nocivos à saúde ou à segurança (art. 9°); quando trata da informação publicitária (art. 30 e 31); quando estabelece que o fornecedor de serviços é obrigado a entregar, previamente, orçamento detalhado ao consumidor (art. 40); quando trata dos bancos de dados e cadastros de consumidores, ao prever que é direito do consumidor, ser informado de que se está armazenado dados a seu respeito (art. 43, § 2°); quando trata das informações constantes dos contratos de consumo que não obrigarão os consumidores se não lhes for dada oportunidade de pleno conhecimento de seu conteúdo (art. 46); quando trata das informações quanto ao preço, juros e prestações, que devem preceder a outorga de crédito (art. 52); ou ainda, quando trata de defeitos de produtos e serviços dizendo que os fornecedores podem ser responsabilizados, inclusive, por informações insuficientes ou inadequadas quanto aos riscos de utilização (caput dos arts. 12 e 14, parte final).[6]

         Verificamos assim, que além do direito à informação quanto a fruidez, segurança, qualidade e preço, genericamente tratada no art. 6°, inciso III, o Código prevê outras hipóteses de obrigatoriedade de informação, inclusive com o vinculação da mesma ao contrato a ser firmado, de tal sorte que se pode afirmar que a informação, enquanto direito do consumidor, não se restringe à comunicação escrita, podendo ser verbal e, até mesmo, gestual.

         Como já dissemos, a informação tal qual prevista na lei consumerista pode ser veiculada por qualquer meio de comunicação como também pode ser representada pela fala do preposto da empresa no atendimento telefônico, no preço fornecido verbalmente pelo feirante ao comprador, no atendimento prestado pela recepcionista do hotel esclarecendo quais os equipamentos à disposição do hospede, nas informações verbais prestada pelo garçom do restaurante quando complementam as informações constantes do cardápio, nas informações verbais fornecidas pelo gerente do banco quanto aos benefícios de produtos ou financiamentos, dentre outras.[7]

         Discorrendo sobre a amplitude do conceito de informação, Claudia Lima Marques assevera que “da mesma maneira (que) os escritos particulares, por exemplo, pequenas promessas feitas por prepostos ávidos em vender (art. 34 do CDC), passam agora a integrar o contrato, como obrigações de fazer. A norma pode ser ampliada para atingir (sic) todos os anexos e documentos conexos contratuais. A medida amplia consideravelmente o conteúdo do contrato a ser firmado entre consumidor e fornecedor”.[8]

         A regra geral adotada pela lei consumerista, no que diz respeito às informações vinculadas ao produto ou serviço, resume-se ao “prometeu, cumpriu”.[9] A sanção para o não cumprimento da obrigação decorrente da informação vem expresso em diversas passagens. Por exemplo: com relação a informação/publicidade que obriga o fornecedor (art. 30), a sanção vem expressa no art. 35 que fornece ao consumidor instrumentos para exigir o cumprimento do prometido. Outras independem de expressa previsão como no caso dos contratos com informações insuficientes ou redigidos de forma dúbia (art. 46), a sanção decorre do próprio artigo porquanto em sua primeira parte é enfático ao preceituar que “os contratos que regulam as relações de consumo “não obrigarão” os consumidores, se não lhes for dada oportunidade de tomar conhecimento prévio de seu conteúdo. Logo, se as informações não forem clara, completas e de forma inteligível, o consumidor não estará obrigado ao seu cumprimento, podendo pleitear, judicialmente, a declaração de nulidade de cláusulas ou do contrato como um todo.

         Assim, a transparência enquanto maior clareza e veracidade a respeito de qualquer produto ou serviço, somente será alcançada através de uma maior troca de informações entre o fornecedor e o consumidor na fase pré-contratual, de tal sorte a se afirmar que o dever de informar é um reflexo do princípio da transparência.[10]

3. Recall: o que é e como funciona

       ‘Recall’ é a campanha feita por uma empresa nos meios de comunicação com a finalidade de informar o consumidor sobre a periculosidade de um produto ou serviço já introduzido no mercado. A campanha normalmente alerta sobre o defeito e os riscos do produto, além de trazer informações dos locais onde deve ser feita a reparação ou a troca.

         De acordo com o Código de Defesa do Consumidor, toda vez que um fornecedor souber que um produto ou serviço já colocado no mercado pode afetar a saúde ou segurança do consumidor, ele deve comunicar o fato à população, por meio de anúncios publicitários, bem como comunicar também às autoridades competentes (Lei n° 8.078/90, art. 10, §§ 1° e 2°).

        Disciplinando a matéria, a Portaria nº 618 do Ministério da Justiça e da Segurança Pública, de julho de 2019,[11] diz que a comunicação feita à Secretaria Nacional do Consumidor deverá indicar: a quantidade de consumidores atingidos em número e percentual, em termos globais e por unidade federava: justificava e medidas a serem adotadas em relação ao percentual de produtos ou serviços não recolhidos nem reparados, e identificação da forma pela qual os consumidores tomaram conhecimento do aviso de risco, dentre outras medidas.

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        A comunicação ao consumidor deve ser feita por meio de campanha publicitária em todos os locais onde haja consumidores deste produto ou serviço. Os anúncios devem trazer informações sobre o defeito que o produto ou serviço apresenta, bem como sobre os riscos decorrentes e as medidas preventivas e corretivas que o consumidor deve tomar, incluindo locais para reparo ou troca do produto. Além dos anúncios publicitários, a empresa pode comunicar o consumidor por meio de correspondência, anúncios via Internet e avisos por telefone, mas sem abrir mão da campanha publicitária.

4. Conclusões

       A função do recall é informar aos consumidores adquirentes daquele determinado produto ou serviço sobre os eventuais riscos, como forma de permitir que o vício do produto ou do serviço seja sanado.

       Importante deixar consignado que o fato do fornecedor chamar para o recall não o isenta de responsabilidade pelos danos que eventualmente o consumidor venha a sofrer, tendo em vista que a responsabilidade é objetiva, aplicando-se as regras instituídas nos artigos 12 a 14 da Lei n° 8.078/90.

         Tudo em perfeita harmonia com o que estabelece o art. 10 do CDC ao explicitar que  o fornecedor não poderá colocar no mercado de consumo, produto ou serviço que sabe (ou deveria saber) possa apresentar alto grau de nocividade ou periculosidade à saúde ou à segurança dos consumidores.

5.  Bibliografia

BENJAMIN, Antonio Herman de Vasconcelos et al. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor - Comentado pelos autores do anteprojeto, 4a. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1996.

DENARI, Zelmo et al. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor - Comentado pelos autores do anteprojeto, 4a. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1996.

MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor, 4a. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

MELO, Nehemias Domingos de. A defesa do consumidor em juízo. São Paulo: Atlas, 2010.

RIZZATTO NUNES, Luiz Antonio. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Saraiva, 2000.

SAAD, Eduardo Gabriel. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor, 5a. ed. São Paulo: LTr, 2002.

SENISE LISBOA, Roberto.  Responsabilidade civil nas relações de consumo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.


[1] DENARI, Zelmo. Código comentado pelos autores do anteprojeto, p. 96.

[2] SAAD, Eduardo Gabriel. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor, p. 218

[3] SENISE LISBOA, Roberto. Responsabilidade civil nas relações de consumo, p. 73-74.

[4] STJ - AgRg no AREsp 850198 RN 2016/0018763-0 (STJ), Rel. Ministro Marco Buzzi, T4 - Quarta Turma, Data de Publicação: DJe 15/09/2017.

[5] SENISE LISBOA, Roberto. Op.cit. p. 74-75.

[6] MELO, Nehemias Domingos de. Da defesa do consumidor em juízo, p. 35-37.

[7] RIZZATTO NUNES, Luiz Antonio. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor, p. 365.

[8] MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor, p. 640.

[9] BENJAMIN, Antonio Herman de Vasconcelos. Código comentado pelos autores do anteprojeto, p. 177.

[10] MARQUES, Claudia Lima. Op. cit. p. 646.

[11] Essa matéria foi regulada inicialmente pela Portaria n° 789, de 24 de agosto de 2001, que foi depois revogada pela Portaria no 789, de 24 de agosto de 2001.

Sobre o autor
Nehemias Domingos de Melo

Advogado em São Paulo, palestrante e conferencista. Professor de Direito Civil, Processual Civil e Direitos Difusos nos cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito na Universidade Paulista (UNIP). Professor convidado nos cursos de Pós-Graduação em Direito na Universidade Metropolitanas Unidas (FMU), Escola Superior da Advocacia (ESA), Escola Paulista de Direito (EPD), Complexo Jurídico Damásio de Jesus, Faculdade de Direito de SBCampo, Instituo Jamil Sales (Belém) e de diversos outros cursos de Pós-Graduação. Cursou Doutorado em Direito Civil e Mestrado em Direitos Difusos e Coletivos, É Pós-Graduado em Direito Civil, Direito Processual Civil e Direitos do Consumidor. Tem atuação destacada na Ordem dos Advogados Seccional de São Paulo (OAB/SP) onde, além de palestrante, já ocupou os cargos membro da Comissão de Defesa do Consumidor; Assessor da Comissão de Seleção e Inscrição; Comissão da Criança e do Adolescente; e, Examinador da Comissão de Exame da Ordem. É membro do Conselho Editorial da Revista Síntese de Direito Civil e Processual Civil (Ed.IOB – São Paulo) e também foi do Conselho Editorial da extinta Revista Magister de Direito Empresarial, Concorrencial e do Consumidor (ed. Magister – Porto Alegre). Autor de 18 livros jurídicos publicados pelas Editoras Saraiva, Atlas, Juarez de Oliveira e Rumo Legal e, dentre os quais, cabe destacar que o seu livro “Dano moral – problemática: do cabimento à fixação do quantum”, foi adotada pela The University of Texas School of Law (Austin,Texas/USA) e encontra-se disponível na Tarlton Law Library, como referência bibliográfica indicada para o estudo do “dano moral” no Brasil.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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