CENSURAR A OBRA DE MONTEIRO LOBATO É UMA TOLICE

27/12/2020 às 12:19
Leia nesta página:

O ARTIGO DISCUTE SOBRE A TENTATIVA DE CENSURA À OBRA DE MONTEIRO LOBATO.

CENSURAR A OBRA DE MONTEIRO LOBATO É UMA TOLICE 

Rogério Tadeu Romano 

O ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal (STF), negou pedido de liminar para suspender a distribuição, em escolas públicas, do livro Caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato, obra publicada em 1933. O ministro rejeitou pedido do Instituto de Advocacia Racial (Iara), por entender que não cabe ao Supremo julgar mandado de segurança contra ato do Ministério da Educação (MEC). O instituto alegou que a publicação apresenta conteúdo racista. 

O caso começou a tramitar no Supremo em 2011. Uma audiência de conciliação chegou a ser feita pelo ministro, mas não houve consenso entre o MEC e o instituto. 

Em 2010, o Conselho Nacional de Educação (CNE) determinou que a obra Caçadas de Pedrinho não fosse mais distribuída às escolas públicas, por considerar que ela realmente apresentava conteúdo racista. Em seguida, o MEC recomendou que o CNE reconsiderasse a determinação. O conselho decidiu, então, anular o veto. 

Em decisão recente, o ministro Toffoli determinou que os autos fossem enviados ao STJ para julgamento.  

Fala-se hoje na reedição da obra “A Menina do Narizinho Arrebitado” pela bisneta do autor.  

Não se nega a importância da obra de Monteiro Lobato, que perpassa várias gerações.  

A revisão de Cleo Monteiro Lobato procurou alterar ou suprimir “passagens problemáticas”, como a que se referia a Tia Nastácia como “negra de estimação”. 

Bastou para que Sérgio Camargo, o presidente da Fundação Palmares que fez de sua marca a oposição ao movimento negro, fosse às redes sociais para denunciar aquilo como uma “mutilação politicamente correta”. Foi seguido por Mario Frias, secretário da Cultura, que achou a mudança uma vergonha. 

Será importante fazer essa censura em trechos considerados racistas numa obra? 

O exercício é fútil. A literatura tem, entre suas funções, a de documento histórico de uma época e do pensamento de seu autor. Alterar trechos, não importa por qual motivo bem-intencionado, causará inevitável distorção do conteúdo. 

Não se pode destruir um legado intelectual.  

Se assim fosse estaríamos, no Brasil, a destruir, de forma bárbara, músicas como “O seu cabelo não nega”, dentre outras, de Lamartine Babo. Então não vou ler a obra de Heideger porque ele admirava ideias nazistas? Ora, isso é bestial.  

Não se pode analisar o passado com olhar do presente.  

Deve-se se examinar a obra com o olhar dos tempos para a qual foi escrita, dentro de uma visão democrática.  

Na democracia há a permanente realidade dialógica. No totalitarismo rompe-se o diálogo, aniquilam-se as liberdades. Desconhecem-se direitos. 

Num Estado democrático de direito, cuja Constituição libertária proíbe a censura, não se pode falar em proibição de divulgação de obra, voltando-se aos tempos de um Estado Autocrático. 

Tal seria afrontar a liberdade de pensamento e exposição de uma obra artística. 

A liberdade de manifestação de pensamento constitui um dos aspectos externos da liberdade de opinião. A Constituição Federal, no artigo 5º, IV, diz que é livre a manifestação de pensamento, vedado o anonimato, e o art. 220 dispõe que a manifestação do pensamento, sob qualquer forma, processoou veiculação, não sofrerá qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição, vedada qualquer forma de censura de natureza política, ideológica e artística.

Cortar trechos de uma obra histórica a pretexto de defender a sociedade do racismo é exercer um ato que confronta a democracia.  

No Brasil, Lobato é atacado desde a década de 1940, quando seus livros eram classificados como propaganda comunista. “Diziam que, com o sítio, ele queria criar o Estado Stalinista”, diz Ilan Brenman, pesquisador da obra de Monteiro Lobato. Segundo ele, Lobato foi acusado até de deformar o caráter das crianças. Condenado a seis meses de prisão durante a ditadura de Getúlio Vargas, Lobato foi perseguido pelo então procurador da Província de São Paulo, Clóvis Cruel de Morais, que pediu ao Estado que apreendesse todos os exemplares da obra Peter Pan. “Alegou-se que a texto incutia um sentimento de inferioridade nas crianças brasileiras porque falava bem da Inglaterra”, diz Brenman. Emília era vista como uma ameaça à família brasileira, por subverter a hierarquia numa sociedade patriarcal, em que um menor jamais podia contestar os adultos. A desaforada Emília era a imagem da rebeldia. “Se não tomarmos cuidado, Emília corre o risco de se tornar uma Barbie bem-comportada, de aparência impecável, ou, simplesmente, de ser calada para sempre”, diz Brenman. 

Exercer essa patrulha cultural em temos de uma constituição-cidadã, de 1988, é uma tolice, repita-se.  

É mais do que isso: é um exercício de “analfabetismo histórico”.  

É bom recordar a feliz manifestação da Academia Brasileira de Letras sobre o tema:  

“Cabe aos professores orientar os alunos no desenvolvimento de uma leitura crítica. Um bom leitor sabe que tia Anastácia encarna a divindade criadora dentro do Sítio do Picapau Amarelo. Se há quem se refira a ela como ex-escrava e negra, é porque essa era a cor dela e essa era a realidade dos afro-descendentes no Brasil dessa época. Não é um insulto, é a triste constatação de uma vergonhosa realidade histórica”. 

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É preciso ter cuidado com o politicamente correto que pode nos dar amarras que sejam intoleráveis. Aliás, essa onda poderá nos levar ao abismo, pois nos leva à fuga do razoável.  

 

 

 

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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