O Processo Penal contemporâneo deve ter a Constituição como fundamento de suas premissas, um verdadeiro “horizonte de aplicabilidade” (SILVA, 2017, p. 100). O Processo Penal constitucionalizado assenta-se no princípio acusatório, garantindo a presunção de inocência, o princípio do juiz natural e o contraditório e a ampla defesa, como corolários do devido processo legal. Este último, para Matheus Nunes e Patrícia Guimarães, é a gênese de todos os demais princípios que orientam este perfil de processo (NUNES; GUIMARÃES, 2014, p. 7-8).
Sucede que, apesar da predileção do constituinte de 1988 pelo sistema acusatório, a busca de uma celeridade e economia processual acarreta artifícios de cunho inquisitorial, mormente no campo da jurisprudência. É o que ocorre, por exemplo, com a relativização das nulidades; nas palavras de Ricardo Gloeckner, um “primado jurisprudencial em matéria de nulidades” (GLOECKNER, 2015, p. 282 apud SILVA, 2017, p. 101), enquanto Aury Lopes Junior considera, in verbis:
absurdas relativizações diariamente feitas por tribunais e juízes, muitas vezes meros repetidores do senso comum teórico, calcados na equivocada premissa da teoria geral do processo.
[...]
A jurisprudência brasileira nessa matéria é caótica, fruto de uma má sistemática legal e da indevida importação de categorias do processo civil, absolutamente inadequadas para o processo penal. (LOPES Jr., 2020, p. 1009-1010)
Por amor à didática, algumas considerações são relevantes. O entendimento dominante em doutrina é de que nulidade seria uma sanção que é aplicada pela autoridade judiciária, em razão de um ato processual viciado (MARQUES, 2016, p. 2; SILVA, 2017, p. 108). Em contraponto, defende-se que nulidade, por questão lógica, não pode ser sanção, pois conduz à ineficácia do ato, ou seja, é a “falta de efeito”, enquanto a sanção é um efeito (LOPES Jr., 2020, p. 1021-1027). Do mesmo modo, Alexandre da Rosa entende que “a nulidade não é uma sanção (...) justamente porque o efeito convencional da regra procedimental do fair play exclui do âmbito dos efeitos válidos o ato realizado em desconformidade com a regra do jogo” (ROSA, 2016, p. 1).
A visão dicotômica das espécies de nulidades (absolutas e relativas) é de pensamento originário da estrutura dos atos jurídicos (direito civil), que foi “transplantado” para o Processo Penal. Basicamente, nulidades absolutas são “nítidas infrações ao interesse público, especialmente na condução do devido processo legal” (MARQUES, 2016, p. 3), e as nulidades relativas constituiriam violação de norma “que tutela um interesse essencialmente da parte, ou seja, um interesse privado” (LOPES Jr., 2020, p. 1013). A utilização e relativização dessas duas espécies culminam em manipulação discursiva nos Tribunais Pátrios e, consequentemente, no desrespeito a forma processual, em patente estratégia utilitarista que reduz o Processo Penal a instrumento de combate à impunidade.
O STF, julgando o HC 144.742/2020-SP, que teve como relator o Ministro Marco Aurélio, analisou, em sede de preliminar, pretensa violação à sistemática prevista no art. 212 do CPP, com redação dada pela Lei nº 11.690, de 2008, que pôs fim ao sistema presidencialista, de cariz inquisitorial, e – ressalvados os resquícios inquisitoriais de toda reforma neoliberal - aproximou o CPP do sistema acusatório e adversarial, ao modificar o rito de inquirição de testemunha, priorizando as partes como formuladoras diretas de perguntas, cabendo ao magistrado a tarefa de complementá-las, caso algo não seja esclarecido.
No caso em questão, o Juízo da Segunda Vara da Comarca de Campinas condenou o acusado nas penas dos arts. 33 e 35, da Lei n. 11.343/2006, e afastou a tese defensiva de inobservância do art. 212 do CPP, ao argumento de que não se evidenciou o prejuízo a viciar a inquirição das testemunhas. A Primeira Câmara Criminal do TJSP desproveu a apelação da defesa, considerando preclusa a nulidade invocada, posto que, concedida a palavra à parte, esta não manifestara inconformismo. Não logrou êxito, também, no STJ.
No julgado em comento, o relator, reproduzindo seu entendimento no HC n. 113.706, votou no sentido de que vício na ordem de inquirição de testemunhas implica nulidade relativa, a ser arguida em momento oportuno, sob pena de preclusão. A ordem foi denegada, por maioria, nos termos do voto do relator.
Há jurisprudência do STF vem seguindo esta linha, como se observa do julgamento do HC 112.446/SP, HC 114.512/RS e HC 134.217/PE, apenas para ilustrar.
Digna de nota, por afronta direta ao Processo Penal constitucionalizado, é a exigência de que a parte prejudicada prove a ocorrência de prejuízo. Nos questionamentos de Lopes Jr. “Como se faz essa prova? Ou, ainda, o que se entende por prejuízo?” (LOPES Jr., 2020, p. 1017-1018). À autoridade judiciária caberia demonstrar que tal atipicidade não prejudicou a finalidade do ato jurídico; é o que se espera do dever de motivação das decisões judiciais e da proeminência do status libertatis no sistema acusatório.
Outrossim, o entendimento em tela coloca as nulidades absolutas no mesmo campo de validação das nulidades relativas. A inobservância do procedimento previsto no art. 212 do CPP consiste em violação à forma prescrita para a inquirição de testemunhas. E forma é garantia, sobretudo do devido processo estruturado em bases constitucionais-convencionais. Trata-se, pois, de questão de ordem pública, alegável a qualquer tempo e podendo ser conhecida ex officio, raciocínio que não se coaduna com uma visão meramente utilitarista/punitivista, que insiste na instrumentalização do processo e da teoria das nulidades.
REFERÊNCIAS
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BRASIL. Superior Tribunal Federal. Habeas Corpus 114.512 Rio Grande do Sul. Brasília, 2013. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=4830371>. Acesso em: 27 dez. 2020.
BRASIL. Superior Tribunal Federal. Habeas Corpus 134.217 Pernambuco. Brasília, 2016. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=11139294>. Acesso em: 27 dez. 2020.
LOPES Jr., Aury. Atos Processuais Defeituosos e a Crise da Teoria das Invalidades (Nulidades). In: LOPES Jr., Aury. Direito Processual Penal. 17. ed., São Paulo: Saraiva Educação, 2020, cap. XV, p. 1009-1038. ISBN 978-85-536190-3-0.
MARQUES, S. S. O panorama das nulidades no processo penal brasileiro. Revista Científica Semana Acadêmica. Fortaleza, ano MMXVI, Nº. 000083, 2016. Disponível em: <https://semanaacademica.com.br/artigo/o-panorama-das-nulidades-no-processo-penal-brasileiro>. Acesso em: 27 dez. 2020.
NUNES, M. S.; GUIMARÃES, P. B. V. A Relativização Das Nulidades Absolutas No Processo Penal Brasileiro E O Princípio Do Devido Processo Legal: uma análise crítica. In: LAMY, E. A.; MARIN, J. D.; VILATTORE, M. A. (Org.). Processo e Jurisdição II. 1 ed., Florianópolis: CONPEDI, 2014. Disponível em: <http://arquivos.info.ufrn.br/arquivos/201414204240532040235446fd7324b81/A_RELATIVIZAO_DAS_NULIDADES_ABSOLUTAS_NO_PROCESSO_PENAL_BRASILEIRO_E_O_PRINCP.pdf>. Acesso em: 27 dez. 2020.
ROSA, A. M. da. O regime de nulidades no processo penal seria um privilégio? Leitura constitucional do jogo processual. In: BAYER, D. A. (org.). Controvérsias Criminais: estudos de direito penal, processo penal e criminologia. v. 2, 1ª ed. Jaraguá do Sul: Editora Mundo Acadêmico, 2016, p. 1-6. ISBN 978-85-916599-1-3.
SILVA, L V. R. N. da. A distinção das nulidades em absolutas e relativas sob o olhar da instrumentalidade constitucional do processo penal. Revista da Esmam, v. 11, n. 12, 2019, p. 100-118. Disponível em: <https://revistaesmam.tjma.jus.br/index.php/esmam/article/view/58>. Acesso em: 27 dez. 2020.