O STF e o Cross Examination (art. 212 do CPP): Breve análise do HC 144.742/2020-SP

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Seria a violação do procedimento previsto pelo art. 212 do CPP uma hipótese de nulidade relativa? Precedentes do STF são no sentido de que se trata de vício a ser arguido em momento oportuno, sob pena de preclusão.

O Processo Penal contemporâneo deve ter a Constituição como fundamento de suas premissas, um verdadeiro “horizonte de aplicabilidade” (SILVA, 2017, p. 100). O Processo Penal constitucionalizado assenta-se no princípio acusatório, garantindo a presunção de inocência, o princípio do juiz natural e o contraditório e a ampla defesa, como corolários do devido processo legal. Este último, para Matheus Nunes e Patrícia Guimarães, é a gênese de todos os demais princípios que orientam este perfil de processo (NUNES; GUIMARÃES, 2014, p. 7-8).

Sucede que, apesar da predileção do constituinte de 1988 pelo sistema acusatório, a busca de uma celeridade e economia processual acarreta artifícios de cunho inquisitorial, mormente no campo da jurisprudência. É o que ocorre, por exemplo, com a relativização das nulidades; nas palavras de Ricardo Gloeckner, um “primado jurisprudencial em matéria de nulidades” (GLOECKNER, 2015, p. 282 apud SILVA, 2017, p. 101), enquanto Aury Lopes Junior considera, in verbis:

absurdas relativizações diariamente feitas por tribunais e juízes, muitas vezes meros repetidores do senso comum teórico, calcados na equivocada premissa da teoria geral do processo.

[...]

A jurisprudência brasileira nessa matéria é caótica, fruto de uma má sistemática legal e da indevida importação de categorias do processo civil, absolutamente inadequadas para o processo penal. (LOPES Jr., 2020, p. 1009-1010)

Por amor à didática, algumas considerações são relevantes. O entendimento dominante em doutrina é de que nulidade seria uma sanção que é aplicada pela autoridade judiciária, em razão de um ato processual viciado (MARQUES, 2016, p. 2; SILVA, 2017, p. 108). Em contraponto, defende-se que nulidade, por questão lógica, não pode ser sanção, pois conduz à ineficácia do ato, ou seja, é a “falta de efeito”, enquanto a sanção é um efeito (LOPES Jr., 2020, p. 1021-1027). Do mesmo modo,  Alexandre da Rosa entende que “a nulidade não é uma sanção (...) justamente porque o efeito convencional da regra procedimental do fair play exclui do âmbito dos efeitos válidos o ato realizado em desconformidade com a regra do jogo” (ROSA, 2016, p. 1).

A visão dicotômica das espécies de nulidades (absolutas e relativas) é de pensamento originário da estrutura dos atos jurídicos (direito civil), que foi “transplantado” para o Processo Penal. Basicamente, nulidades absolutas são “nítidas infrações ao interesse público, especialmente na condução do devido processo legal” (MARQUES, 2016, p. 3), e as nulidades relativas constituiriam violação de norma “que tutela um interesse essencialmente da parte, ou seja, um interesse privado” (LOPES Jr., 2020, p. 1013). A utilização e relativização dessas duas espécies culminam em manipulação discursiva nos Tribunais Pátrios e, consequentemente, no desrespeito a forma processual, em patente estratégia utilitarista que reduz o Processo Penal a instrumento de combate à impunidade.

O STF, julgando o HC 144.742/2020-SP, que teve como relator o Ministro Marco Aurélio, analisou, em sede de preliminar, pretensa violação à sistemática prevista no art. 212 do CPP, com redação dada pela Lei nº 11.690, de 2008, que pôs fim ao sistema presidencialista, de cariz inquisitorial, e – ressalvados os resquícios inquisitoriais de toda reforma neoliberal - aproximou o CPP do sistema acusatório e adversarial, ao modificar o rito de inquirição de testemunha, priorizando as partes como formuladoras diretas de perguntas, cabendo ao magistrado a tarefa de complementá-las, caso algo não seja esclarecido.

No caso em questão, o Juízo da Segunda Vara da Comarca de Campinas condenou o acusado nas penas dos arts. 33 e 35, da Lei n. 11.343/2006, e afastou a tese defensiva de inobservância do art. 212 do CPP, ao argumento de que não se evidenciou o prejuízo a viciar a inquirição das testemunhas. A Primeira Câmara Criminal do TJSP desproveu a apelação da defesa, considerando preclusa a nulidade invocada, posto que, concedida a palavra à parte, esta não manifestara inconformismo. Não logrou êxito, também, no STJ.

No julgado em comento, o relator, reproduzindo seu entendimento no HC n. 113.706, votou no sentido de que vício na ordem de inquirição de testemunhas implica nulidade relativa, a ser arguida em momento oportuno, sob pena de preclusão. A ordem foi denegada, por maioria, nos termos do voto do relator.

Há jurisprudência do STF vem seguindo esta linha, como se observa do julgamento do HC 112.446/SP, HC 114.512/RS e HC 134.217/PE, apenas para ilustrar.

Digna de nota, por afronta direta ao Processo Penal constitucionalizado, é a exigência de que a parte prejudicada prove a ocorrência de prejuízo. Nos questionamentos de Lopes Jr. “Como se faz essa prova? Ou, ainda, o que se entende por prejuízo?” (LOPES Jr., 2020, p. 1017-1018). À autoridade judiciária caberia demonstrar que tal atipicidade não prejudicou a finalidade do ato jurídico; é o que se espera do dever de motivação das decisões judiciais e da proeminência do status libertatis no sistema acusatório.

Outrossim, o entendimento em tela coloca as nulidades absolutas no mesmo campo de validação das nulidades relativas. A inobservância do procedimento previsto no art. 212 do CPP consiste em violação à forma prescrita para a inquirição de testemunhas. E forma é garantia, sobretudo do devido processo estruturado em bases constitucionais-convencionais. Trata-se, pois, de questão de ordem pública, alegável a qualquer tempo e podendo ser conhecida ex officio, raciocínio que não se coaduna com uma visão meramente utilitarista/punitivista, que insiste na instrumentalização do processo e da teoria das nulidades.

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REFERÊNCIAS

BRASIL. Superior Tribunal Federal. Habeas Corpus 103.525 Pernambuco. Brasília, 2010. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=613734>. Acesso em: 27 dez. 2020.

BRASIL. Superior Tribunal Federal. Habeas Corpus 112.446 São Paulo. Brasília, 2012. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=2122095>. Acesso em: 27 dez. 2020.

BRASIL. Superior Tribunal Federal. Habeas Corpus 114.512 Rio Grande do Sul. Brasília, 2013. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=4830371>. Acesso em: 27 dez. 2020.

BRASIL. Superior Tribunal Federal. Habeas Corpus 134.217 Pernambuco. Brasília, 2016. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=11139294>. Acesso em: 27 dez. 2020.

LOPES Jr., Aury. Atos Processuais Defeituosos e a Crise da Teoria das Invalidades (Nulidades). In: LOPES Jr., Aury. Direito Processual Penal. 17. ed., São Paulo: Saraiva Educação, 2020, cap. XV, p. 1009-1038. ISBN 978-85-536190-3-0.

MARQUES, S. S. O panorama das nulidades no processo penal brasileiro. Revista Científica Semana Acadêmica. Fortaleza, ano MMXVI, Nº. 000083, 2016. Disponível em: <https://semanaacademica.com.br/artigo/o-panorama-das-nulidades-no-processo-penal-brasileiro>. Acesso em: 27 dez. 2020.

NUNES, M. S.; GUIMARÃES, P. B. V. A Relativização Das Nulidades Absolutas No Processo Penal Brasileiro E O Princípio Do Devido Processo Legal: uma análise crítica. In: LAMY, E. A.; MARIN, J. D.; VILATTORE, M. A. (Org.). Processo e Jurisdição II. 1 ed., Florianópolis: CONPEDI, 2014. Disponível em: <http://arquivos.info.ufrn.br/arquivos/201414204240532040235446fd7324b81/A_RELATIVIZAO_DAS_NULIDADES_ABSOLUTAS_NO_PROCESSO_PENAL_BRASILEIRO_E_O_PRINCP.pdf>. Acesso em: 27 dez. 2020.

ROSA, A. M. da. O regime de nulidades no processo penal seria um privilégio? Leitura constitucional do jogo processual. In: BAYER, D. A. (org.).  Controvérsias Criminais: estudos de direito penal, processo penal e criminologia. v. 2, 1ª ed. Jaraguá do Sul: Editora Mundo Acadêmico, 2016, p. 1-6. ISBN 978-85-916599-1-3.

SILVA, L V. R. N. da. A distinção das nulidades em absolutas e relativas sob o olhar da instrumentalidade constitucional do processo penal. Revista da Esmam, v. 11, n. 12, 2019, p. 100-118. Disponível em: <https://revistaesmam.tjma.jus.br/index.php/esmam/article/view/58>. Acesso em: 27 dez. 2020.

Sobre os autores
Misael Neto Bispo da França

Professor de Direito Processual Penal e Prática Jurídica Penal da UFBA Doutor e Mestre em Direito pela UFBA Analista Jurídico do MPF

Randerson Haine de Souza Lopes

Graduando em Direito da UFBA

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Em coautoria com o aluno Randerson Lopes (graduando em Direito da UFBA)

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