Contar com melhores serviços públicos, ver a corrupção ser combatida de modo imparcial e eficaz, sentir os avanços de um Brasil que possa se desenvolver economicamente com inclusão social e poder ser protegido contra violências, poluições, venenos, doenças e mortes evitáveis é mais que um sonho de todo brasileiro, é um direito que a Constituição Federal traz escrito, mas que precisa ser melhor dito e efetivamente materializado.
O programa constitucional pactuado em 1988 é o de garantir ao povo brasileiro dignidade, cidadania, igualdade e justiça sociais, em ambiente democrático e solidário que propicie o bem comum e o desenvolvimento nacional. Essas são as bases da rigorosa sinalização do caminho que a República está obrigada a seguir, conforme determina a Constituição Federal logo em seus artigos 1º e 3º.
Seguindo nessa estrada, nesse programa constitucional, o artigo 6º da mesma Carta afirma, literalmente, que saúde, educação, alimentação, moradia, segurança e assistência, dentre outros, são direitos assegurados à população. Neste ponto, vale lembrar que todas as vezes em que são garantidos direitos ao povo, assim como os são os direitos sociais do art. 6º da CF/88, o dever de materializá-los recai sobre o Estado e toda a sociedade (indivíduos ou entidades, pessoas naturais ou jurídicas).
E essa efetivação, essa transformação da letra da norma em realidade prática e palpável em benefício de todos, é exatamente a razão de ser e de funcionar do Estado Social Fiscal explicitamente desenhado na Constituição Federal. Sendo exatamente por isso - para garantir essa nobre missão social do Estado brasileiro em ambiente de liberdade - que o artigo inaugural da Carta Magna estabelece como fundamento a livre iniciativa.
Assim, nessa esteira de liberdade de iniciativa, todos têm o direito de operar atividades profissionais e produtivas sem qualquer planificação estatal ou ingerência nas escolhas laborais e de produção, cabendo ao poder público tributar as respostas econômicas provindas dessa livre iniciativa para conseguir os recursos que precisam custear todos os serviços públicos essenciais ao povo, como também balizar e regulamentar as atividades em segurança da população, do meio ambiente, da sustentabilidade econômica e dos próprios empreendedores.
Essa perfeita conjugação de a) liberdade privada para atuar na economia com b) serviços públicos custeados pelos tributos pagos por todos e prestados a toda a sociedade revela a precisão e a inteligência do Estado Social Fiscal que escrevemos no texto constitucional. E a materialização desse Estado ocorre através dos serviços públicos que são prestados pelos entes federados de acordo com a natureza de cada necessidade (urgentes ou agendados; locais, regionais ou nacionais; perenes ou pontuais; ofertados ou a pedidos). Até os que moram em bairros bem estruturados e assistidos podem imaginar o quanto é difícil passar dois ou três dias sem coleta de lixo ou iluminação pública, por exemplo.
Como empreender e produzir ficou, no Brasil, a cargo do setor privado, a prestação dos serviços essenciais é da responsabilidade do setor público. Isso para a sorte dos dois setores, pois a iniciativa privada precisa auferir lucros, e o poder público precisa garantir vida digna em sociedade (saúde, educação, segurança pública, mobilidade, dentre outros serviços, bem como inspeção e fiscalização que assegurem a integridade natural das pessoas, a qualidade do ar, água, alimentos, medicamentos e cosméticos, como também as boas práticas que os privados precisam cumprir para manter limpo, competitivo, leal e próspero o mercado produtivo).
Nesse sentido de atuação que muito importa ao Estado, à população a ou próprio setor privado, por exemplo, tem-se a missão constitucional do Fisco: arrecadar os recursos necessários à manutenção do Estado e que custeiam todos os serviços públicos prestados à sociedade, bem como combater e coibir a sonegação, para que ela não seja usada como “insumo financeiro” para a prática de concorrência desleal em favorecimento injusto dos que não pagam corretamente os tributos.
Nesse contexto, diversas outras áreas de atuação do Estado importam a toda a sociedade, e seu bom funcionamento é fator decisivo para a existência e manutenção de serviços e produtos indispensáveis a todos. São órgãos e entidades públicas que cuidam, por exemplo, da preservação da saúde, da vida, dos recursos naturais e do meio ambiente. E logo se percebe quando não estão funcionando da forma prevista na legislação, pois os efeitos negativos da invasão do interesse privado no campo da necessidade pública, bem como as ingerências políticas não demoram a provocar perdas e danos.
E essas ingerências políticas - que apressam a urgência da aprovação de uma Reforma Funcional, que garanta a devida autonomia aos serviços, impedindo interferências de políticos e grupos econômicos - têm sido uma prática tão utilizada no tempo atual, em indiscutível assédio do político sobre o funcional, que parece até ser normal.
Nessa prática do assédio do político sobre o funcional, o governo federal tem ofertado exemplos negativos de ingerências, todas com prejuízos contabilizados nas diversas áreas. No Inpe, o governo escolheu combater os dados e não as causas do desmatamento; no ICMbio e no Ibama, o governo criou obstáculos para as inspeções e cobranças de multas. Os resultados prejudiciais à saúde, à formação das chuvas, aos animais, à economia e à própria preservação do meio ambiente não tardaram: o desmatamento na Amazônia, segundo o Observatório do Clima, já cresceu 70% em relação à média dos últimos 10 anos, e o Pantanal já queimou cerca de 30% de sua área só em 2020, conforme informações no Inpe.
Outra área em que a ausência de uma Reforma Funcional, que impeça a intromissão autoritária e as medidas tomadas mediante rompantes políticos, tem gerado bastantes prejuízos à saúde, ao meio ambiente e à aceitação dos produtos brasileiros no mercado estrangeiro é a da inspeção, liberação e controle dos agrotóxicos. Equivocadas mudanças no funcionamento de setores da Anvisa, Ibama e Ministério da Agricultura aceleraram a liberação de venenos que são aplicados nas plantações e que chegam aos rios e lençóis freáticos. Só em 2019, foram liberados 479 novos venenos (a média anual até então era de 140 aprovações). Muitos desses venenos agora aprovados já são proibidos na Europa há anos por causarem doenças sérias, dentre elas: câncer. Neste ano de 2020, mesmo durante uma pandemia, o que colocaria a Anvisa bem mais voltada aos assuntos ligados à Covid-19 e sua vacinação, até o dia 28 de novembro, já foram liberados mais 405 novos agrotóxicos, segundo dados do próprio governo.
É justamente para garantir mais segurança à saúde, à vida, ao meio ambiente e à própria economia que o Brasil precisa colocar como prioridade na agenda do Congresso Nacional uma Reforma Funcional que assegure a autonomia funcional como prerrogativa da instituição pública (do órgão), que inviabilize a ingerência política, cujos resultados só revelam prejuízos à população. Veja-se, por exemplo, os problemas criados pela ingerência, pelo assédio do político sobre o funcional, na questão do relaxamento do controle de armas de fogo e munições: medidas equivocadas do governo federal alteraram para pior esse importante controle bélico de competência do Exército, e agora está muito mais difícil de se controlar a quantidade de armas de fogo e munições que circulam pelo País, o que facilita sobremaneira a ação de delinquentes locais e de operadores do crime organizado e das milícias. Resultado: menos segurança, mais violência e mortes.
A aprovação de uma Reforma Funcional fará com que os órgãos possam funcionar autonomamente, sem depender das “vontades” dos governos e vinculados apenas às necessidades da população, cumprindo seu efetivo papel constitucional, sua missão pública de atuar pelo bem e em defesa da sociedade. Enquanto essa Reforma Funcional não for aprovada, o País continuará a assistir a essas tristes cenas das ingerências políticas que deformam os órgãos e os colocam, muitas vezes, contra seus próprios objetivos. Não foram diferentes disso as equivocadas intromissões do governo federal em estruturas decisivas no combate à corrupção como no Coaf (agora UIF), na RFB, na Abin e até na Polícia Federal.
A Receita Federal do Brasil, conforme amplo noticiário, sofre pressões políticas para “resolver” os débitos tributários de algumas igrejas. A Abin, também segundo notícias veiculadas, pode ter agido de modo equivocado e até interferido na Receita Federal; quanto à Polícia Federal, as notícias de ingerências do governo estão tão explícitas em falas do Presidente da República (inclusive na histórica reunião presidencial que foi gravada e veio a público), como também nos afastamentos do ministro da Justiça Sérgio Moro e de diretores e chefes da PF, que dispensam qualquer comentário.
E essa ingerência só não foi mais prejudicial aos trabalhos da Receita Federal porque as administrações tributárias da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, por meio de seus servidores de carreiras específicas e típicas, desempenham atividades essenciais ao funcionamento do Estado, conforme determina o art.37, XXII da Constituição Federal. E esse mandamento constitucional tem mantido um espaço mais técnico e livre de interferências políticas para que os Fiscos cumpram sua missão institucional de arrecadar os tributos que mantêm todos os serviços e políticas públicas imprescindíveis à população. Não restam dúvidas de que a sociedade contaria com muito mais resultados (mais e melhores serviços essências) caso os Fiscos já contassem com mais ampla autonomia funcional, nos moldes da PEC 186 que tramita no Congresso Nacional desde 2007 (a PEC da Lei Orgânica das Administrações Tributárias).
Não fossem decisões judiciais e freios dados pelo Legislativo, o governo federal teria conseguido, em mais exemplos negativos de ingerência política e tomadas de decisões no ímpeto, desobrigar o uso da cadeirinha que protege as crianças no trânsito e manter desligados os radares que monitoram as velocidades dos veículos nas estradas. Todas as vezes que ministros do governo chamam servidores de parasitas ou dizem que os têm como inimigos, reafirmam o total descaso com a população (verdadeira usuária dos serviços públicos), pois - como são os servidores que materializam os serviços públicos que atendem à sociedade e diminuem injustas distancias sociais - atacar o servidor é piorar os serviços essenciais, é agravar as desigualdades sociais.
Mas a necessidade urgente de o Congresso Nacional aprovar uma Reforma Funcional - garantindo o exercício estritamente legal dos cargos públicos, a não interferência política e a defesa da sociedade - se fez mais nítida mesmo no trato do governo federal com a pandemia da Covid-19. É que eram diários os episódios de ingerências na área da saúde: dois ministros saíram da Pasta. O Primeiro foi demitido por não aceitar aplicar os remédios que o Presidente da República receitava, bem como por não indicar a perigosa e comprovadamente contagiosa abertura das atividades econômicas, conforme também queria o Presidente.
O segundo ministro pediu para sair quase pelos mesmos motivos do primeiro. Infelizmente, não escapou da constrangedora cena de vir a saber, em público e durante uma coletiva à imprensa, que o Presidente havia forçado a barra das definições para dizer que academia de ginástica (esportes de todas as modalidades) e salão de beleza passavam a ser atividades essenciais. E isso sem ouvir o Ministério da Saúde, pois o ministro foi um dos últimos a saber do decreto do Presidente.
Seguindo no caminho das medidas equivocadas que têm espaço por falta de uma Reforma Funcional, o governo federal colocou não apenas no cargo máximo do Ministério da Saúde, mas também em diversos outros da estrutura desse Órgão, militares sem vivência nem experimentação em assuntos da área e, principalmente, sem ideia de como lidar com as urgentes demandas de uma pandemia. Muitos foram os vexames e perdas por conta dessas nomeações, mas uma dos mais emblemáticos foi materializado no documento expedido pela Câmara Brasileira de Diagnóstico Laboratorial alertando para o desperdício, por falta de uso, de cerca de 7 milhões de testes do Coronavírus que continuavam no estoque do Ministério prestes a perderem a validade, mesmo o País só tendo realizado apenas 5 milhões de testes até aquela data, e o ministro ser conhecido e credenciado como excelente em logística.
Se a inexistência de uma Reforma Funcional permitiu assédios do político sobre o funcional durante a fase de contaminação e tratamento da Covid-19, na etapa da esperança quanto à descoberta de agentes imunizantes, o governo não perdeu tempo e colocou mais militares na Anvisa para controlar a questão das vacinas. A essa altura, o que mais parecia importar para o governo federal não era apressar as análises e liberações das vacinas, mas dificultar a aprovação da vacina que parecia ser plataforma política de um possível candidato à presidência em 2022.
Nessa toada, já estamos no último dia de 2020 e por pouco não fecharemos o ano com 200 mil mortes. Enquanto isso, 50 países já começaram a vacinar suas populações. No Brasil, a coisa continua enganchada e o próprio Presidente da República, sem ouvir qualquer técnico do Ministério da Saúde, continua ingerindo (exercendo o assédio do político sobre o funcional) e colocando dúvidas na cabeça da população quanto à necessidade ou não de se tomar vacina.
Diante de todos esses problemas causados pela ingerência política nos serviços públicos, em vez de tramitar no Congresso Nacional uma urgente e necessária Reforma Funcional, o que tramita é uma equivocada proposta de Reforma Administrativa (PEC nº 32 de 2020) que, dentre outras deformações, tenta: transformar servidor público em servidor político e por isso ainda mais susceptível a ingerências; permitir a terceirização em quase todas as áreas, com amplo espaço ao fisiologismo dos apaniguados indicados pelos políticos e ofertados pelas empresas terceirizadoras, bem como pela preconceituosa prática de pagar menores salários às mulheres; retirar a estabilidade do cargo para que prepondere a vontade política da ocasião em detrimento da missão institucional do servidor, dificultando denúncias de corrupção de políticos e chefes e facilitando a ingerência e abusos diversos, inclusive a prática das “rachadinhas”.
Diferente do que o governo tem dito à população, essa proposta de Reforma Administrativa (PEC 32 de 2020) em nada ajuda o Brasil a contar com mais e melhores serviços públicos. Pelo contrário, se aprovada essa PEC 32, restarão normatizadas (legalizadas) as piores e mais prejudiciais práticas implementadas no setor público por governos que confundem o palanque com o gabinete, o público com o privado, a praça com o quintal, o cofre com o bolso.
Essa PEC 32 (Reforma Administrativa) não trata de nenhum tema dos que mais incomodam, seja por folclore seja por motivo concreto, o povo brasileiro. Sequer fala na desrespeitosa prática do nepotismo que continuará em suas formas “legal” ou transversa (cruzada), e deve crescer. Quando a PEC diz que acaba, por exemplo, com as férias de mais de 30 dias, tenta enganar a sociedade que é levada a pensar que tal mudança se aplica aos juízes e os serviços da Justiça serão mais céleres. Mas nada mudará quanto ao tempo dos trâmites processuais, porque essa Reforma Administrativa não será aplicada aos juízes. Talvez quem saia no prejuízo mesmo sejam os professores que podem ter mais dias de férias por conta dos calendários escolares e os técnicos em radiologia que, segundo indicação da OMS, precisam de mais intervalos de afastamento da radiação sob pena de adoecerem.
Em mais uma faceta enganosa, a PEC da Reforma Administrativa diz que acaba com a aposentadoria compulsória (obrigatória), aquela prevista como forma de punição para os juízes, que, a depender do caso, seriam normalmente demitidos, mas terminam aposentados compulsoriamente. Pois é! A Reforma Administrativa proíbe essa aposentadoria como modalidade de punição, mas isso não vai corrigir nada, pois aos servidores em geral não se aplica essa aposentação como punição. Os que são aposentados como forma de penalidade são os juízes, mas esses estão fora do alcance da Reforma Administrativa proposta pelo governo.
É por isso que a reforma da vez deve mesmo ser a Reforma Funcional e não a Administrativa. Pois só aprovando garantias para que os serviços públicos não sofram toda forma de ingerência de poder, como também seja freado esse assédio do político sobre o funcional é que o Brasil conseguirá prestar mais e melhores serviços essenciais, garantir a vida da população, combater a corrupção e sedimentar um desenvolvimento econômico comprometido com a inclusão social.
Até lá, o País seguirá refém dos chefes políticos de ocasião que chegam a usar da abertura interpretativa de expressões tão caras ao povo para implementar suas vontades, ideologias e desejos mais sombrios. Dá para notar o uso contínuo e insistente da frase “Brasil acima de tudo” como um passe livre para um “chefe” que ostenta ser o Brasil em pessoa, e por isso se ver acima de tudo, já que ele pensa personificar o Brasil. Talvez não seja à toa que esse “chefe” se vista com as cores da bandeira e se diga patriota e nacionalista, mesmo subjugando o País aos interesses dos Estados Unidos da América e entregando de mão beijada o patrimônio e as riquezas nacionais.
Também tem-se usado e abusado da palavra “democracia” para justificar, a todo custo, a possibilidade de se impor as próprias “vontades”. Invoca-se o termo “democracia” como um mantra de liberalidade ao uso ilimitado de uma discricionariedade de se fazer o que se quer, de se executar o que passar pela cabeça a cada rompante. Isso faz parecer possível e aceitável agir-se com base em uma libertinagem oficial quase sempre ilegal e por vezes até inconstitucional. Vive-se, no Brasil, o giro linguístico que tem nos levado, em manobra de cavalo-de-pau, das importantes e basilares “liberdades constitucionais” para as perigosas e proibidas “libertinagens inconstitucionais”.
Por melhores serviços públicos, pelo combate à corrupção, pelo desenvolvimento do País e por segurança à vida da população, precisamos que seja arquivada a PEC 32 de 2020 e seja proposta e apresentada a PEC 01 de 2021: a PEC da Reforma Funcional.
Carlos Cardoso Filho é Vice-Presidente da Federação Nacional dos Auditores e Fiscais de Tributos Municipais-FENAFIM e da Associação Nacional dos Integrantes dos Fiscos Municipais-ANIFIM, Coordenador-Geral da Associação Pernambucana dos Fiscos Municipais-APEFISCO, Auditor Tributário do Fisco Municipal do Ipojuca-PE, Professor de Direito Tributário, Engenheiro Civil (UNICAP), Bacharel em Direito (UFPE) e Pós-graduado em Direito Administrativo pela (UFPE).