Peculiaridades da coisa julgada nas ações de manejo coletivo.

31/12/2020 às 16:24
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O instituto da coisa julgada arvora-se nas ações de manejo coletivo com algumas peculiaridades. Em razão disso, presto-me a comentá-las.

De compasso com o artigo 6º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, “A lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada” (grifo meu). Deflui-se, pois, que o legislador, colimando assegurar a segurança jurídica [e a proteção à confiança, uma de suas facetas], permeou as decisões judiciais de certa imutabilidade (calha asseverar que se considera coisa julgada a decisão da qual não caiba mais recurso, atuando como verdadeiro pressuposto processual objetivo negativo). Inobstante, consoante aduz Tartuce (2019, p. 21), com o brilhantismo que lhe é peculiar, “vivificamos a era da ponderação dos princípios e de valores. […]. Há forte tendência material e processual em apontar a relativização da coisa julgada” (grifos no original). Dito de outro modo, a imutabilidade exsurge como uma imutabilidade condicionada, não sendo ampla e irrestrita. Sem adentrar no mérito das ramificações em coisa julgada formal e material, arvora-se a necessidade de se discorrer acerca das peculiaridades do trânsito em julgado de sentenças em ações de manejo coletivo, é dizer, em ações que veiculem pretensões ínsitas a direitos coletivos, difusos e individuais homogêneos.

Preliminarmente, impende pôr em relevo as definições dos direitos supramencionados. Para tanto, invoco o artigo 81 do Código de Defesa do Consumidor, o qual apregoa que os interesses ou direitos difusos são “os transindividuais de natureza indivisível de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato”, os coletivos correspondem aos “transindividuais de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base” e, enfim, os individuais homogêneos são imanentes aos “decorrentes de origem comum”. Apenas à guisa de exemplificação, trago a lume uma situação hipotética aventada por Ricardo Alexandre e João de Deus (2016, p. 734):

“Imaginemos um grupo de condutores que foram indevidamente multados por excesso de velocidade detectada por equívoco pelo mesmo aparelho redutor de velocidade (lombada eletrônica) descalibrado. Na hipótese, o vínculo não decorre de uma prévia relação jurídica entre os lesados ou entre eles e o Poder Público. Pode até existir uma associação representativa de condutores (que teria legitimidade para ajuizar o mandado de segurança coletivo), mas o crucial para caracterizar o direito a ser defendido como individual homogêneo é a origem comum”.

Aqui, é erigido outro ponto digno de nota. Os direitos individuais homogêneos são, em essência, individuais, como o próprio nome sugere. Entrementes, com vistas a elidir a atomização de uma macro lide em demandas individuais repetitivas, optou-se por conferir uma ação de manejo coletivo, haja vista que os princípios da economia processual e da celeridade, sobretudo após o advento da Emenda Constitucional nº 45 (Reforma do Judiciário), devem ser as diretrizes que norteiam a atuação jurisdicional. Em sentido semelhante, vislumbra-se o inciso X do artigo 139 do Código de Processo Civil, ao preconizar que o juiz deve, “quando se deparar com diversas demandas individuais repetitivas, oficiar o Ministério Público, a Defensoria Pública […] para, se for o caso, promover a propositura da ação coletiva respectiva”.

Feitas essas considerações introdutórias, falemos, sob a égide da melhor doutrina, a respeito da coisa julgada secundum eventus probationis e secundum eventus litis. Pois bem, a primeira encontra-se consubstanciada, basicamente, no artigo 103, incisos I e II, do Código de Defesa do Consumidor, que assim dispõem:

“Nas ações coletivas de que trata este Código, a sentença fará coisa julgada: I- Erga omnes, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação, com idêntico fundamento, valendo-se de prova nova […];

II- Ultra partes, mas limitadamente ao grupo, categoria ou classe, salvo improcedência por insuficiência de provas” (grifos no original).

Sobre o tema, pontua Daniel Neves (2020, p. 890):

“No tocante aos direitos coletivos e difusos, a coisa julgada, na hipótese de julgamento de improcedência do pedido, tem uma especialidade que a diferencia da coisa julgada tradicional, prevista pelo Código de Processo Civil [arts. 502–508]. Enquanto, no instituto tradicional, a imutabilidade e a indiscutibilidade geradas pela coisa julgada não depende do fundamento da decisão, nos direitos difusos e coletivos, caso tenha a sentença como fundamento a ausência ou a insuficiência de provas, não se impedirá a propositura de novo processo com os mesmos elementos da ação- partes, causa de pedir e pedido-, de modo a possibilitar uma nova decisão”.

Ora, isso se dá pelo fato de que, em face da indivisibilidade do objeto dos direitos em tela (MANCUSO, 2018, p. 107) e, demais, do interesse transindividual em jogo, os titulares desses direitos não podem restar prejudicados em razão de uma condução procedimental inidônea, é dizer, de não ter sido o processo conduzido da forma mais adequada possível (NEVES, 2020, p. 891).

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De outro giro, no que é atinente à coisa julgada secundum eventus litis, esposa Neves (2020, p. 895): “Por meio da coisa julgada secundum eventus litis nem toda sentença de mérito faz coisa julgada material, tudo dependendo do resultado concreto da sentença definitiva transitada em julgado”. Nesta toada, observa-se o parágrafo primeiro do mesmo artigo acima citado: “Os efeitos da coisa julgada previstos nos incisos I e II[1] não prejudicarão interesses e direitos individuais dos integrantes da coletividade, do grupo, categoria ou classe”. Novamente no escólio de Neves (2020, p. 895),

“Significa dizer que, decorrendo de uma mesma situação fática jurídica consequências no plano do direito coletivo e individual e sendo julgado improcedente o pedido formulado em demanda coletiva, independentemente de fundamentação- os indivíduos não estarão vinculados a esse resultado, podendo ingressar livremente com suas ações individuais. A única sentença que os vincula é a de procedência, porque essa naturalmente os beneficia, permitindo-se que o indivíduo se valha dessa sentença coletiva, liquidando-a no foro de seu domicílio e posteriormente executando-a, o que o dispensará do processo de conhecimento”.

À luz de todo o exposto, configura-se salutar relativizar os efeitos da coisa julgada em ações coletivas, cuja tendência é que se mostrarem mais presentes na praxe forense, posto que, gradualmente, óbices ao reconhecimento dos direitos difusos (v.g, temor de pulverização do poder estatal) vão sendo transpostos.

Referências

[1] Marinoni e Arenhart (2015, p. 747, apud NEVES, 2020, p. 895) alegam ser possível, via de regra, a extensão da norma ao inciso III, de tal sorte que os direitos individuais homogêneos seriam abrangidos.

Referências

ALEXANDRE, Ricardo; de Deus, João. Direito Administrativo. 3º ed. São Paulo: Método, 2017.

MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses Difusos: Conceito e legitimação para agir. 9º ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018.

NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil. 12 ed. Salvador: Juspodivm, 2020.

Sobre o autor
Gustavo Machado Rebouças

Jovem eivado de inexperiência que, casualmente, se presta a tecer breves considerações acerca do mundo jurídico.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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