Abuso de direito: um prejuízo para as relações de consumo

04/01/2021 às 07:04
Leia nesta página:

Artigo visa analisar o abuso de direito nas relações de consumo

1. PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA

 

No âmbito constitucional, o princípio da dignidade da pessoa humana é o mais importante, consagrado como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, conforme artigo 1º, inciso III da Constituição da República de 1988. No âmbito infraconstitucional, esse papel cabe ao princípio da boa-fé.

Nas relações de consumo, o princípio da boa-fé encontra previsão nos artigos 4º, inciso III e 51, inciso IV, ambos do Código de Defesa do Consumidor.

Na relação de consumo, termo boa-fé passou a ser utilizado com uma nova e moderna significação, para indicar valores éticos que estão à base da sociedade organizada e desempenham função de sistematização da ordem jurídica, desemprenhando uma atuação refletindo no parceiro contratual, respeitando seus interesses legítimos, suas expectativas razoáveis, seus direitos, agindo com lealdade, sem abuso, sem obstrução, sem causar lesão ou desvantagem excessiva, cooperando para atingir o bom fim das obrigações: o cumprimento do objetivo contratual e a realização dos interesses das partes.

De acordo com o artigo 12 e 14 do CDC, a responsabilidade do fornecedor de produto ou serviço é objetiva, ou seja, independente de culpa.

Os princípios da transparência, da confiança e da segurança são corolários do princípio da boa-fé. Como se vê, a boa-fé objetiva constitui um modelo jurídico, na medida em que se reveste de variadas formas.

Ao contrário do que muitos pregam, a boa-fé não se restringe ao fornecedor, mas a todos que compõe a relação de consumo.

Para Sérgio Cavalieri, “tem-se proclamado que pela boa-fé o Direito deixa de ser só técnica para ser também ética, pois foi pela porta da boa-fé que se deu a etização do Direito. Por isso se diz também que a boa-fé é a ética negocial”[1].

Logo, a relação de consumo deve ser baseada na ética, onde ambas as partes envolvidas devem trabalhar visando a satisfação de todos.

Desta forma, o entendimento de que somente a empresa deve agir de boa-fé mostra-se equivocado, pois ambas as partes devem cooperar para a realização plena do contrato.

 

2. O ABUSO DO DIREITO E AS CLÁUSULAS ABUSIVAS

 

O Código de Defesa do Consumidor trata especificamente de regular as práticas abusivas nos artigos 39, 40 e 41.

As chamadas "práticas abusivas" são condutas que, uma vez existentes, caracterizam-se como ilícitas, independentemente de ter ou não algum consumidor lesado ou que se sinta lesado. São ilícitas em si, apenas por existirem de fato no mundo fenomênico.

Essas práticas podem ser classificadas em "pré-contratuais", surgindo antes de firmar o contrato de consumo, como aquelas que compõem a oferta ou a ação do fornecedor que pretende vincular o consumidor.

Existem também as práticas "pós-contratuais" que surgem como ato do fornecedor por conta de um contrato de consumo preexistente. Como exemplo, tome-se a "negativação" indevida nos serviços de proteção ao crédito.

Por fim, as "contratuais", ligadas ao conteúdo expresso ou implícito das cláusulas estabelecidas no contrato de consumo.

Contudo, deve-se frisar que o rol apresentado no artigo 39 do Código de Defesa do Consumidor não é tácito, conforme informa o caput do artigo, ao prever “dentre outras práticas abusivas”. Além disso, como dito, as relações de consumo são baseadas na boa-fé de ambos os participantes.

Assim, ao contrário do que muito é defendido, o consumidor também pode cometer atos abusivos, isso porque, o Código Civil, de onde se busca conceitos para o CDC,  traz ao ordenamento jurídico um conceito de abuso de direito, no artigo 187, que assim o define: “Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.

Nota-se que o artigo 187 do Código Civil utiliza um critério exclusivamente objetivo para definir o abuso do direito, fundamentado na boa-fé.

Também é possível notar que o Código Civil ao prever o exercício abusivo do direito, ou seja, o chamado abuso do direito não o relaciona com o momento da constituição do direito, não podendo se dizer que o ‘direito é ilícito’, mas sim que o ato (exercício) é ilícito (objetivo).

É ao exercitá-lo que o sujeito poderá exceder a finalidade (objetiva) da norma, bem como exercê-lo em dissonância com a boa-fé, configurando, por conseguinte, um exercício abusivo do direito ou abuso no exercício do direito.

Para se compreender o abuso do direito é preciso ter em mente que o direito tem sempre uma finalidade econômica e social, em razão da qual a norma jurídica a protege.

Entende-se por fim econômico o proveito ou vantagem material para o titular do direito, ou a perda que suportará pelo seu não exercício. Não mais se concebe o exercício de um direito que não se destine a satisfazer um interesse sério e legítimo.

Ocorre que o titular de um direito, ao invés de exercê-lo no sentido destas finalidades, o faz no sentido contrário, contrastando, expressamente, com o fim para a qual o direito foi instituído.

A boa-fé está contida no conceito de abuso do direito; é um dos seus limites. As partes de uma relação jurídica devem agir com lealdade e confiança recíprocas.

Como dito, a boa-fé é o princípio infraconstitucional mais importante, tanto no CDC como no Código Civil.

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Desta forma, em relação ao abuso do direito, não é necessário, para configurá-lo, que haja dolo, culpa, má-fé, ou fim de prejudicar por parte do titular do direito, bastando que aquele que o exerça exceda objetivamente os limites estabelecidos na lei.

 

3. PANORAMA JUDICIAL - PREJUÍZO A IMAGEM DO CONSUMIDOR E AUMENTO DAS DEMANDAS

 

Ao procurar o Poder Judiciário, o indivíduo busca acesso à justiça, direito fundamental previsto na Constituição da República de 1988, sendo a última alternativa para solucionar um conflito, visando restabelecer o equilíbrio da relação jurídica.

Todavia, é de se observar o crescente abuso de direitos processuais, notadamente de ação e de defesa, extremamente nocivo às importantes conquistas advindas do reconhecimento do acesso à justiça.

Como dito, o Poder Judiciário está diante de um aumento da distribuição de ações judiciais, principalmente relacionadas a matéria consumerista. Estes números poderiam representar um avanço na acessibilidade à justiça, se não fosse o recorrente exercício irregular e ilegítimo do direito de ação.

O Código de Defesa do Consumidor foi criado para trazer equilíbrio a relação de consumo, logo, o mesmo não pode compactuar com ações ilegítimas, ou seja, com o abuso do direito.

Por essa razão existe a previsão das cláusulas abusivas, mas, também, existe a aplicação do princípio da boa-fé para ambas as partes.

Aquele que abusa do direito de ação, está agindo de má-fé, ou seja, está deixando de cooperar para o equilíbrio da relação jurídica.

O abuso dos direitos processuais deve ser eficazmente combatido, já que, além de, naturalmente, causar danos à parte adversa, contribui, ademais, para a morosidade processual, seja por aumentar o número de demandas a serem julgadas, seja por criar incidentes protelatórios, que delongam ilegitimamente o caminho processual.

E foi o aumento agressivo de demandas que gerou a Súmula 75 do TJRJ, a qual foi revogada em 17/12/2018 a pedido da OAB/RJ.

Demandas consumeristas ilegítimas se aproveitavam que a jurisprudência se mostra mais favorável aos pedidos de danos morais, gerando aumento exponencial no número de demandas através dos “aventureiros acoplados”, sempre beneficiados pela gratuidade de justiça (ou seja, sem custos e sem riscos).

No âmbito do TJRJ já são famosos alguns desses casos: Megabônus, apagão em São Gonçalo, festival do Kibe em Italva, festa do tomate em Paraty, anúncio de TV com preço equivocado pelas Casas Bahia etc.

Após as primeiras indenizações, aparentemente legítimas, vem a avalanche.

Restou necessário um freio. A uniformização da jurisprudência e depois a Súmula 75, prevendo que: “O simples descumprimento de dever legal ou contratual, por caracterizar mero aborrecimento, em princípio, não configura dano moral, salvo se da infração advém circunstância que atenta contra a dignidade da parte”.

O número de ações consumeristas não caiu, mas houve uma grande redução no valor das compensações por danos morais ou mesmo a improcedência.

O desvirtuamento do direito de acesso à justiça, por meio do abuso processual, gerou um prejuízo para todos: Poder Judiciário, empresas e consumidores de boa-fé.

É nesta seara que ganha importância o adequado tratamento à temática da litigância de má-fé, com a previsão de consequências jurídicas àqueles que nela incidirem.

O Brasil é marcado por desigualdade acentuada, baixa mobilidade social e subdesenvolvimento. O acesso à efetiva justiça enfrenta entraves do mais diversos, como custos, burocracia e morosidade, destacando-se, ainda, outro óbice: seu uso desvirtuado, por meio do abuso do direito de litigar, consistente em verdadeira contraversão do direito, utilizado de forma ilegítima.

O CPC/2015 prevê em seus artigos 79 e 80 a responsabilidade das partes por dano processual causado pela litigância de má-fé. O artigo 80 traz um rol de condutas que caracterizam litigância de má-fé, fundamentadas no irrestrito respeito ao princípio da boa-fé processual, com os decorrentes deveres de lealdade, probidade, veracidade, informação, transparência, cuidado, respeito e cooperação.

Desta forma, o combate ao abuso de direito mostra-se benéfico para todos, pois traz equilíbrio a relação de consumo e respeito ao princípio da boa-fé.

 


[1] CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de direito do consumidor. 5. ed.. São Paulo: Atlas, 2019.

 

 

Sobre o autor
Wellington Silva

Advogado. Bacharel em Direito e Pós-graduado em Direito Civil e Processo Civil pela Universidade Estácio de Sá. Com mais de 11 anos de experiência na área jurídica. Atuando nas áreas do Direito Civil, Consumidor, Responsabilidade Civil e Direito Securitário. Com conhecimentos teóricos e práticos nas áreas do Direito das Famílias, Imobiliário, Tributário e do Trabalho. Autor do livro “A banalização do dano moral”, publicado pela Editora Multifoco (ISBN 978-85-5996-541-4), além de artigos jurídicos em sites especializados. Autor participante da Bienal Internacional do Livro 2017.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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