A principiologia do CDC – Os princípios norteadores das relações de consumo: vulnerabilidade, boa-fé e equidade

06/01/2021 às 18:26
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As disposições do CDC devem ser interpretadas em consonância com os princípios fundamentais da Constituição Federal, de forma harmônica e sistêmica, considerando-se, especialmente os princípios da livre iniciativa e da ordem econômica.

Sumário: 1. Dos princípios constitucionais aplicáveis às relações de consumo. 2. Dos princípios na legislação consumerista. 3. Princípio da boa-fé objetiva (3.1 Da transparência; 3.2 Dever de informação; 3.3 Dever de segurança). 4. Da vulnerabilidade e da hipossufuciência (4.1 Vulnerabilidade; 4.2 Hipossuficiência). 5. Bibliografia

 

1. Dos princípios constitucionais aplicáveis às relações de consumo[1]

Importante destacar por primeiro que não se pode interpretar o sistema jurídico brasileiro sem que se faça uma análise dos princípios que emanam da Constituição Federal, isto porque a Constituição enquanto lei máxima se encontra no ápice do sistema jurídico, caracterizando-se “pela imperatividade de seus comandos, que obrigam não só as pessoas físicas ou jurídicas, de direito público ou de direito privado, como o próprio Estado”.[2]

Assim, a Constituição, no Estado Democrático de Direito, é a pedra angular de toda a ordem jurídica, a lei fundamental, à qual devem adaptar-se todas as demais leis e da qual o intérprete não pode se afastar. É, por assim dizer, a lei das leis, que submete todas as pessoas e o próprio Estado, estabelecendo suas funções e os seus limites, bem como assegurando os direitos e garantias individuais dos cidadãos e os procedimentos aptos a defendê-los.[3]

De destacar também que as funções do Estado contemporâneo foram modificadas no decorrer do processo histórico, devido à mudança dos paradigmas do Estado liberal para o Estado Democrático e Social de Direito e nesse quadro a Constituição Federal deve ser vista como a regra fundamental do Estado, na medida em que estrutura o poder e assegura os direitos fundamentais, trazendo em seu bojo os fatos, os anseios, aspirações e valores da própria sociedade que organiza e estrutura.[4]

Não é por outra razão que Rizzatto Nunes afirma que os princípios constitucionais “exercem uma função importantíssima dentro do ordenamento jurídico-positivo, já que orientam, condicionam e iluminam a interpretação das normas jurídicas em geral” e, por serem normas qualificadas, acabam por dar coesão ao sistema jurídico e, uma vez identificados, agem como regras hierarquicamente superiores às próprias normas positivadas no conjunto das proposições escritas.[5]

Nesse quadro, as disposições do Código de Defesa do Consumidor devem ser interpretadas em consonância com os princípios fundamentais da Constituição Federal, de forma harmônica e sistêmica, considerando-se, especialmente e dentre outros, os princípios fundamentais da soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana (atrelado ao piso vital mínimo) e da isonomia, bem como os princípios da livre iniciativa e da ordem econômica.[6]

 

2. Dos princípios na legislação consumerista

O Código de Defesa do Consumidor (Lei n° 8.078/90) é uma lei de caráter eminentemente principiológica na exata medida em que fixa princípios e enumera cláusulas gerais, deixando ao aplicador da norma, frente ao caso concreto, estabelecer os limites de sua aplicação.

Além disso, o Código também utiliza de diversas expressões indeterminadas, como por exemplo, verossimilhança, hipossuficiência, abusividade, desvantagem exagerada, dentre outras, permitindo ao aplicador da norma, com base nas experiências do que ordinariamente acontece, explicitar o alcance do conteúdo destas expressões.

Porém, como adverte Sergio Cavalieri Filho, não se há de confundir a liberdade outorgada ao aplicador da norma em face das cláusulas gerais e dos conceitos jurídicos indeterminado, com juízo discricionário porque os princípios vão condicionar a atividade do intérprete lhe impondo rumos e limites que não podem ser contrariados.[7]

Nesse passo, cabe agora analisar os princípios que o Código de Defesa do Consumidor procurou concretizar, enquanto norma de ordem pública e de interesse social (art. 1°), nascida por expressa determinação constitucional (ADCT, art. 48), que se torna prevalente em relação a quaisquer outras normas que com ela colida, quando tratar-se de relação de consumo. Neste contexto serão analisados, pela importância, os princípios da boa-fé objetiva (e os deveres anexos decorrentes desse princípio), da vulnerabilidade e da hipossuficiência.

 

3. Princípio da boa-fé objetiva

O princípio da boa-fé objetiva é um dos standards mais importante do Código de Defesa do Consumidor. Por esse princípio, o que se espera é que os contratantes mantenham uma conduta ética de comportamento, atuando com honestidade, lealdade e probidade durante a fase pré-contratual, contratual e pós-contratual.

Não se confunda a boa-fé objetiva, de que trata a lei consumerista, com a boa-fé subjetiva que é, em última análise, aquela que se baseia na perquirição sobre o estado de ânimo interior do contraente (intenção) de que nos fala, por exemplo, o Código Civil quando trata da posse e da usucapião. A boa fé objetiva não está ligada ao ânimo interior das pessoas envolvidas na relação, em verdade ela trata de um padrão geral, modelo ideal de conduta que se espera de todos os integrantes de uma dada sociedade. Tal princípio cumpre papel de tamanha relevância nas relações negocias que Cláudia Lima Marques afirma de maneira categórica que “a boa-fé é o princípio máximo orientador do CDC”.[8]

A boa-fé objetiva cumpre também uma função de controle na exata medida em que limita o exercício dos direitos subjetivos das partes envolvidas na relação negocial, de tal sorte a evitar o abuso de direito em todas as fases da relação jurídica.[9] Este princípio é de tamanha importância que atualmente ele permeia todas as relações negociais, mesmo aquelas que se encontrem fora do âmbito do Código de Defesa do Consumidor, porquanto é princípio adotado pelo novo Código Civil no que diz respeito às cláusulas gerais nos negócios jurídicos e, nas relações contratuais.

O princípio da boa-fé está expressamente previsto no Código de Defesa do Consumidor no capítulo que trata da Política Nacional de Relações de Consumo (art. 4°, III) e no capítulo que disciplina a proteção contratual, especialmente quando trata das cláusulas contratuais consideradas abusivas (art. 51, IV).

 Neste aspecto, cumpre especial relevo a atuação do juiz tendo em vista que é ele quem deve procurar a real intenção da norma e dela extrair, em face de cada caso concreto, os limites de aplicação do princípio da boa-fé tendo em vista que o princípio da autonomia da vontade cede lugar ao princípio decorrente da lei cujo “primado não é a vontade, é da justiça, mesmo porque o poder da vontade de uns é maior do que o de outros”.[10]

Advirta-se ainda, que as regras da boa-fé objetiva não se aplicam somente aos fornecedores, aplica-se também aos consumidores. É uma via de duas mãos “une fornecedor e consumidor, evitando que a proteção concedida pelo microssistema do CDC sirva de escudo para consumidores que, agindo contrariamente ao princípio da boa-fé objetiva, busquem a reparação de prejuízos para cuja produção tiveram decisiva participação”.[11]

Do princípio da boa-fé decorrem os chamados “deveres anexos”, quais sejam, da transparência, da informação e da segurança, que veremos a seguir.

3.1 Da transparência

Diz o Código do Consumidor que a Política Nacional das Relações de Consumo terá como objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, respeitado à sua dignidade, saúde e segurança, além da proteção dos interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo (art. 4°, caput). Este princípio que é regra geral ganha reforço adicional em face do que é estatuído no art. 46, verbis: “os contratos que regulam as relações de consumo não obrigarão os consumidores, se não lhes for dada a oportunidade de tomar conhecimento prévio de seu conteúdo, ou se os respectivos instrumentos forem redigidos de modo a dificultar a compreensão de seu sentido e alcance”. 

Transparência, conforme ensina Claudia Lima Marques, “significa informação clara sobre o produto a ser vendido, sobre o contrato a ser firmado, significa lealdade e respeito nas relações entre fornecedor e consumidor, mesmo na fase pré-contratual, isto é, na fase negocial dos contratos de consumo”.[12]Considere-se ainda que a transparência, como princípio da Política Nacional de Consumo, “é clareza qualitativa e quantitativa da informação que incumbe às partes conceder reciprocamente, na relação jurídica”.[13]

Este princípio encontra ressonância prática no capítulo que trata da proteção contratual (CDC, art. 46). Nesse passo, temos que há como uma espécie de garantia de “exoneração dos consumidores em relação às cláusulas contratuais que não foram prévia e adequadamente apresentadas ao seu conhecimento ou formulados por redação que dificulte a sua compreensão”.[14] Significa dizer que o consumidor não estará vinculado ao contrato se demonstrar que não lhe tinha sido oportunizado conhecer seu inteiro teor, com a devida antecedência.

Também no capítulo em que trata das condições de apresentação da oferta ao preceituar que a apresentação de produtos ou serviços deve assegurar ao consumidor informações corretas, claras, precisas, ostensivas e em língua portuguesa de tal sorte que possa ter conhecimento de suas características, qualidades, quantidade, composição, preço, garantia, prazos de validade, além dos riscos que eventualmente possam representar à saúde e segurança dos adquirentes (CDC, art. 31).

Há nesse dispositivo uma demonstração clara de que o legislador pátrio deu grande ênfase ao aspecto de proteção preventiva do consumidor, fazendo com que a informação preambular, a comunicação pré-contratual, sejam verdadeiras, de fácil compreensão, precisa e em língua portuguesa porque é na fase pré-contratual que a decisão de compra é efetivamente tomada pelo consumidor.[15]

Verifica-se assim, que a transparência guarda estreita relação com o dever de informação e é mais do que um simples elemento formal já que poderá afetar a essência do negócio, tendo em vista que a informação repassada integra o contrato (CDC, arts. 30, 33, 35, 46 e 54) ou se ausente significa falha na qualidade do produto ou serviço (arts. 18, 20 e 35), de tal sorte a afirmar que o princípio da transparência concretiza a idéia de reequilíbrio das forças nas relações de consumo, como forma de alcançar a almejada justiça contratual.[16]

3.2 Dever de informação

É direito básico do consumidor receber informações adequadas e claras, sobre os produtos e serviços disponibilizados no mercado de consumo, inclusive com especificação de quantidade, características, composição, qualidade e preço, além dos eventuais riscos que o produto apresente, para que ele possa exercer de forma livre e consciente a sua opção quanto a escolha do produto ou serviço (Lei n° 8.078/90, art, 6°, III).

Esse dever de informação pode se materializar de várias formas. As informações podem ser fornecidas nas embalagens e rótulos dos produtos, na propaganda veiculada por qualquer forma, na publicidade, nos impressos e nos orçamentos.

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Ademais, este dever de informação está explícito no Código de Defesa do Consumidor que, em outras passagens, volta a exigir respeito ao dever de bem informar como, por exemplo, quando trata da obrigação de informação quanto aos produtos perigosos ou nocivos à saúde ou à segurança (art. 9°); quando trata da informação publicitária (art. 30 e 31); quando estabelece que o fornecedor de serviços é obrigado a entregar, previamente, orçamento detalhado ao consumidor (art. 40); quando trata dos bancos de dados e cadastros de consumidores, ao prever que é direito do consumidor, ser informado de que se está armazenado dados a seu respeito (art. 43, § 2°); quando trata das informações constantes dos contratos de consumo que não obrigarão os consumidores se não lhes for dada oportunidade de pleno conhecimento de seu conteúdo (art. 46); quando trata das informações quanto ao preço, juros e prestações, que devem preceder a outorga de crédito (art. 52); ou ainda, quando trata de defeitos de produtos e serviços dizendo que os fornecedores podem ser responsabilizados, inclusive, por informações insuficientes ou inadequadas quanto aos riscos de utilização (caput dos arts. 12 e 14, parte final).

Verificamos assim, que além do direito à informação quanto a fruidez, segurança, qualidade e preço, genericamente tratada no art. 6°, inciso III, o Código prevê outras hipóteses de obrigatoriedade de informação, inclusive com a vinculação da mesma ao contrato a ser firmado, de tal sorte que se pode afirmar que a informação, enquanto direito do consumidor, não se restringe à comunicação escrita, podendo ser verbal e, até mesmo, gestual.

Como já dissemos, a informação tal qual prevista na lei consumerista pode ser veiculada por qualquer meio de comunicação como também pode ser representada pela fala do preposto da empresa no atendimento telefônico, no preço fornecido verbalmente pelo feirante ao comprador, no atendimento prestado pela recepcionista do hotel esclarecendo quais os equipamentos à disposição do hospede, nas informações verbais prestada pelo garçom do restaurante quando complementam as informações constantes do cardápio, nas informações verbais fornecidas pelo gerente do banco quanto aos benefícios de produtos ou financiamentos, dentre outras.[17]

Discorrendo sobre a amplitude do conceito de informação, Claudia Lima Marques assevera que “da mesma maneira (que) os escritos particulares, por exemplo, pequenas promessas feitas por prepostos ávidos em vender (art. 34 do CDC), passam agora a integrar o contrato, como obrigações de fazer. A norma pode ser ampliada para atingr (sic) todos os anexos e documentos conexos contratuais. A medida amplia consideravelmente o conteúdo do contrato a ser firmado entre consumidor e fornecedor”.[18]

A regra geral adotada pelo Código, no que diz respeito às informações vinculadas ao produto ou serviço, resume-se ao “prometeu, cumpriu”.[19] A sanção para o não cumprimento da obrigação decorrente da informação vem expresso em diversas passagens. Por exemplo: com relação a informação/publicidade que obriga o fornecedor (art. 30), a sanção vem expressa no art. 35 que fornece ao consumidor instrumentos para exigir o cumprimento do prometido. Outras independem de expressa previsão como no caso dos contratos com informações insuficientes ou redigidos de forma dúbia (art. 46), a sanção decorre do próprio artigo porquanto em sua primeira parte é enfático ao preceituar que “os contratos que regulam as relações de consumo NÃO OBRIGARÃO os consumidores, senão lhes for dada oportunidade de tomar conhecimento prévio de seu conteúdo”. Logo, se as informações não forem clara, completas e de forma inteligível, o consumidor não estará obrigado ao seu cumprimento, podendo pleitear, judicialmente, a declaração de nulidade de cláusulas ou do contrato como um todo.

Assim, a transparência enquanto maior clareza e veracidade a respeito de qualquer produto ou serviço, somente será alcançada através de uma maior troca de informações entre o fornecedor e o consumidor na fase pré-contratual, de tal sorte a se afirmar que o dever de informar é um reflexo do princípio da transparência.[20]

3.3 Dever de segurança

Anote-se por primeiro, que a responsabilidade que o Código de Defesa do Consumidor impõe aos fornecedores, tanto de produtos quanto de serviços, além dos deveres de qualidade e de informação, um dever de segurança. Isto quer dizer que aquele que coloca um produto ou um serviço no mercado tem a obrigação legal de ofertá-lo sem risco ao consumidor no que diz respeito à sua saúde, à sua integridade física e ao seu patrimônio (CDC, art. 8° a 10, 12 § 1° e 14 § 1°).

Este dever de segurança não é absoluto porque o Código de Defesa do Consumidor não proíbe a colocação no mercado consumidor de produtos potencialmente perigosos, em verdade tal dever ancora-se na idéia de defeito. De fato, a própria lei consumerista quando define o que seja produto ou serviço defeituoso explicita que são aqueles que não oferecem a segurança que legitimamente deles se espera, consideradas as circunstâncias de fornecimento tais como a apresentação, o uso e os riscos esperados e a época da colocação em circulação ou fornecido (CDC, art. 12, § 1° e 14, § 1°).[21]

Tanto é verdade que diversos produtos, naturalmente perigosos, estão colocados no mercado e são imprescindíveis aos seres humanos. Dentre exemplos clássicos podemos destacar “a quase totalidade dos medicamentos, (que) em razão de sua natureza, ostenta índice normal de nocividade que, com vista à responsabilidade do fornecedor, será tolerado quando vier acompanhado de bulas explicativas”.[22]Neste caso, a nocividade será ilidida desde que o produto seja acompanhado de explicações quanto à sua destinação e uso (bula) de tal sorte a afirmar que o dever de informação, que deverá ser ostensiva, é complementar ao dever de segurança. Significa dizer que se o consumidor for adequadamente informado sobre a nocividade ou periculosidade do produto e, se ainda assim promover o uso inadequado ou impróprio do mesmo, não poderá responsabilizar o fornecedor, pois estaremos diante de culpa exclusiva da vítima ou, eventualmente, de terceiro.

Desta forma, temos que o dever de segurança está implícito em toda e qualquer relação de consumo tanto é assim que, conforme afirma Roberto Senise Lisboa, “a responsabilidade pelo fato do produto e serviço é embasada no dever de segurança que o fornecedor tem de exercer a sua atividade sem acarretar danos à vida, saúde ou outros direitos extrapatrimoniais do consumidor, sob pena de responder pela reparação do prejuízo oriundo de um acidente de consumo”.[23]

É por essa razão que a jurisprudência pátria vem reconhecendo que acidentes de consumo ocorridos em shoppings centers e supermercados, para citar um exemplo, tanto no que diz respeito a segurança pessoal do consumidor, quanto a seus pertences, acarreta um dever indenizatório em face do dever de segurança ínsito na atividade negocial ali desenvolvida. Assim, o furto de veículo no estacionamento, seqüestro relâmpago do usuário, queda em razão de piso escorregadio, dentro outras, gera responsabilidade para o detentor da atividade em razão do dever de cuidado e vigilância que se espera seja fornecido.

Assim, o elemento segurança é um dever implícito a toda e qualquer relação de consumo e o seu descumprimento pode acarretar a responsabilidade do fornecedor porquanto não se pode tolerar que um produto ou serviço viciado ou defeituoso seja colocado em circulação e, como conseqüência, cause danos ao consumidor.

 

4. Da vulnerabilidade e da hipossufuciência

Esclareça por primeiro que o Código de Defesa do Consumidor trata de maneira diferente os dois institutos. Com relação à vulnerabilidade, considera todo consumidor como parte vulnerável nas relações de consumo (art. 4°, I), porém dispensa-lhe tratamento diferenciado no que diz respeito à hipossuficiência já que, na relação processual, esta dependerá do reconhecimento por parte do juiz da causa, segundo suas experiências com base naquilo que comumente acontece (art. 6°, VIII).

Segundo a dicção da Lei consumerista, todo o consumidor é vulnerável, porém nem sempre será considerado hipossuficiente. Para melhor entender a questão vamos individualizá-las.

4.1 Vulnerabilidade

A vulnerabilidade do consumidor decorre, principalmente, de três fatores básicos: de ordem técnica, de ordem econômica e de natureza jurídica.

Do ponto de vista técnico, é o fornecedor quem detém o controle e os conhecimentos da produção dos bens, pois é ele quem “escolhe o que, quando e de que maneira produzir, de sorte que o consumidor está à mercê daquilo que é produzido”.[24] Significa dizer que o consumidor, para satisfazer suas necessidades de consumo, comparece ao mercado e se submete às condições que lhe são impostas pelos fornecedores de produtos e serviços.[25]

O segundo aspecto diz respeito à capacidade econômica das partes envolvidas, onde, via de regra, o fornecedor detém capacidade econômica maior do que o consumidor individualmente considerado. Claro que haverá situação em que o consumidor terá capacidade econômica muito maior do que o fornecedor, porém isto deverá ser encarado como exceção, e não como regra geral.

Do ponto de vista da vulnerabilidade jurídica, os contratos de adesões e suas cláusulas abusivas constituem-se no melhor exemplo. Como esses contratos são elaborados previamente pelos fornecedores, de forma unilateral, temos que as inserções de cláusulas contratuais serão realizadas de modo a favorecer a posição econômica e jurídica do fornecedor, em detrimento do consumidor aderente.[26]

A vulnerabilidade, conforme insculpida no Código de Defesa do Consumidor, independe de qualquer critério de razoabilidade para ser aferida, em face de uma situação concreta, já que o legislador presumiu iure et de iure que nas relações de consumo o consumidor, enquanto destinatário final de produtos, é a parte mais fraca e, portanto merece ser amparado de forma privilegiada, de tal sorte que, tratando desigualmente os desiguais, na proporção de suas desigualdades, se possa obter a igualdade jurídica desejada.[27]

4.2 Hipossuficiência

Diferentemente da vulnerabilidade, que é presumida, a hipossuficiência do consumidor terá seu reconhecimento condicionado à análise do julgador que, valendo-se da analogia, dos costumes e dos princípios gerais de direito, poderá reconhecê-la ou afastá-la frente ao caso concreto, segundo as regras ordinárias de experiências (art. 6°, VIII).

A questão da hipossuficiência está intimamente ligada à possibilidade de o juiz determinar, ou não, a inversão do ônus da prova, como forma de facilitação da defesa do consumidor em juízo. Em muitas situações as informações e os documentos hábeis a instruir uma causa se encontram em poder do fornecedor. Nestas circunstâncias, é de todo impossível ao consumidor fazer a prova de seus direitos instruindo adequadamente sua postulação em juízo, razão porquê o instituto da inversão do ônus da prova permite que ele litigue em melhores condições frente ao fornecedor de produtos ou serviços.

Atente-se para o fato de que a hipossuficiência de que trata o Código não é de ordem econômica ou financeira. Ela é lastreada na concepção de que ao consumidor falta conhecimento técnico e informações sobre os produtos ou serviços disponibilizados no mercado de consumo. É essa pobreza de conhecimentos técnicos ou científicos sobre o produto ou serviço que transforma o consumidor no elo mais frágil da relação de consumo, razão porque precisa de maior proteção.[28] Essa fragilidade repita-se, não é econômica ou financeira, porque para o consumidor carente de recurso, existe a possibilidade de assistência judiciária gratuita, objeto do próximo item.

 

5. Bibliografia

ALMEIDA, João Batista de. A proteção jurídica do consumidor. São Paulo: Saraiva, 1993.

BENJAMIN, Antonio Herman de Vasconcelos et all. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor - Comentado pelos autores do anteprojeto, 4a. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1996.

CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de direito do consumidor. São Paulo: Atlas, 2008.

COELHO, Fábio Ulhoa. O Empresário e os direitos do consumidor. São Paulo: Saraiva, 1994.

GUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução ao estudo do direito, 23ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998.

MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor, 4a. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

MELO, Nehemias Domingos de. Da defesa do consumidor em juízo. São Paulo: Atlas, 2010.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                            RIZZATTO NUNES, Luiz Antonio. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Saraiva, 2000.

SAAD, Eduardo Gabriel. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor, 5a. ed. São Paulo: LTr, 2002.

SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Responsabilidade civil no Código do Consumidor e a defesa do fornecedor. São Paulo: Saraiva, 2002.

SENISE LISBOA, Roberto. Responsabilidade civil nas relações de consumo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.

SIQUEIRA JR, Paulo Hamilton. Direito processual constitucional. São Paulo: Saraiva, 2006.

 

 

 


[1] Conforme anotamos em nossa obra Da defesa do consumidor em juízo, p.39-44.

[2] RIZZATTO NUNES, Luiz Antonio. Comentário ao Código de Defesa do Consumidor, p. 8.

[3] GUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução ao estudo do direito, p. 108.

[4] SIQUEIRA JR, Paulo Hamilton. Direito processual constitucional, pp. 12-15.

[5] RIZZATTO NUNES, op. cit., pp. 10-11.

[6] Conforme nossa obra Da defesa do consumidor em juízo, p. 39-46

[7]CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de direito do consumidor, p. 27.

[8] MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor, p. 671.

[9] SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Responsabilidade civil no Código do Consumidor..., p. 59.

[10] AGUIAR JUNIOR, Ruy Rosado de. STJ - Voto visto no Resp n° 45666/5-SP.

[11] SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira, op. cit. p. 277.

[12] MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor, 595

[13] SENISE LISBOA, Roberto. Responsabilidade civil nas relações de consumo, p. 101.

[14] COELHO, Fabio Ulhoa. O empresário e os direitos do consumidor, p. 137

[15] BENJAMIN, Antonio Herman de Vasconcellos e. Código comentados pelos autores do anteprojeto, p. 179-180.

[16] MARQUES, Claudia Lima, op. Cit. p. 598-599.

[17] RIZZATTO NUNES, Luiz Antonio. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor, p. 365.

[18] MARQUES, Claudia Lima.Contratos no Código de Defesa do Consumidor, p. 640.

[19] BENJAMIN, Antonio Herman de Vasconcelos e. Código comentado pelos autores do anteprojeto, p. 177.

[20] MARQUES, Claudia Lima, op. cit. P. 646.

[21] MELO, Nehemias Domingos de. Da defesa do consumidor em juízo. São Paulo: Atlas, 2010, p. 53.

[22] DENARI, Zelmo. Código comentado pelos autores do anteprojeto, p. 96.

[23] SENISE LISBOA, Roberto. Responsabilidade civil nas relações de consumo, p. 73-74.

[24] RIZZATTO NUNES, Luiz Antonio, Comentários ao Código de Defesa do Consumidor, cit.,p. 106.

[25] Cf. João Batista de Almeida. A proteção jurídica do consumidor, p. 15.

[26] Ver Claudia Lima Marques. Contratos no Código de Defesa do Consumidor, cit., p. 146-150.

[27] Ver Roberto Senise Lisboa, Responsabilidade civil nas relações de consumo, cit., p. 84-85.

[28] Eduardo Gabriel Saad, Comentários ao Código de Defesa do Consumidor, cit., p. 195

Sobre o autor
Nehemias Domingos de Melo

Advogado em São Paulo, palestrante e conferencista. Professor de Direito Civil, Processual Civil e Direitos Difusos nos cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito na Universidade Paulista (UNIP). Professor convidado nos cursos de Pós-Graduação em Direito na Universidade Metropolitanas Unidas (FMU), Escola Superior da Advocacia (ESA), Escola Paulista de Direito (EPD), Complexo Jurídico Damásio de Jesus, Faculdade de Direito de SBCampo, Instituo Jamil Sales (Belém) e de diversos outros cursos de Pós-Graduação. Cursou Doutorado em Direito Civil e Mestrado em Direitos Difusos e Coletivos, É Pós-Graduado em Direito Civil, Direito Processual Civil e Direitos do Consumidor. Tem atuação destacada na Ordem dos Advogados Seccional de São Paulo (OAB/SP) onde, além de palestrante, já ocupou os cargos membro da Comissão de Defesa do Consumidor; Assessor da Comissão de Seleção e Inscrição; Comissão da Criança e do Adolescente; e, Examinador da Comissão de Exame da Ordem. É membro do Conselho Editorial da Revista Síntese de Direito Civil e Processual Civil (Ed.IOB – São Paulo) e também foi do Conselho Editorial da extinta Revista Magister de Direito Empresarial, Concorrencial e do Consumidor (ed. Magister – Porto Alegre). Autor de 18 livros jurídicos publicados pelas Editoras Saraiva, Atlas, Juarez de Oliveira e Rumo Legal e, dentre os quais, cabe destacar que o seu livro “Dano moral – problemática: do cabimento à fixação do quantum”, foi adotada pela The University of Texas School of Law (Austin,Texas/USA) e encontra-se disponível na Tarlton Law Library, como referência bibliográfica indicada para o estudo do “dano moral” no Brasil.

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