A DISCRICIONARIEDADE POSITIVISTA
Kelsen compreende a abertura semântica dos textos legislativos como capaz de produzir, a partir de uma mesma disposição, uma multiplicidade de normas, as quais situam-se no interior do que o austríaco chama de moldura da norma, ou seja, o conjunto dos sentidos possíveis de uma norma jurídica. A escolha de uma ou outra norma dentro da moldura ofertada pelo texto é, para Kelsen, ato puramente voluntarista, e a ciência do Direito não pode se ocupar da individualização normativa, cumprindo-lhe, apenas, delinear essa moldura dentro da qual se escolherá discricionariamente.
O contexto de deslocamento dos polos de discussão pública de questões sensíveis do Legislativo para o Judiciário, como fenômeno inerente à contemporaneidade, ressaltou as inadequações teóricas do positivismo, que propunha um modelo de resolução de controvérsias baseado na estrita aplicação das regras legais, utilizando o recurso da discricionariedade, fundado no princípio de autoridade, para atenuar o problema da indeterminação do direito.
Conforme o positivismo, as regras jurídicas devem permanecer afastadas da moral, admitindo apenas a influência indireta desta na avaliação da teoria do direito, e não seria possível reconhecer uma função justificadora do direito pela moral de modo a conferir-lhe uma tonica prescritiva, mais que meramente descritiva.
A ABSORÇÃO DA MORAL PELO DIREITO
Em contraposição ao positivismo estatalista e legicentrado do Século XIX, há o reconhecimento definitivo de normatividade à Constituição, que figura como centro do ordenamento jurídico, com a consagração dos direitos fundamentais e a importância atribuída aos princípios enquanto normas.
Com o constitucionalismo do século XX, houve uma reaproximação entre o Direito e os valores compartilhados por uma comunidade, num determinado espaço e tempo, consolidados em princípios, dotados de normatividade. Os princípios condensam valores, representam o alicerce, o ponto de partida, os postulados básicos de qualquer ordenamento jurídico, servindo para dar unidade e harmonia ao sistema e orientar a interpretação jurídica.
Com base nos princípios redimensionados, aparece a expansão da jurisdição constitucional, com nítida função criativa e normativa dos juízes, pela qual exercem sua missão constitucional de concretização dos direitos fundamentais. Ao revitalizar a força normativa dos princípios constitucionais, a moderna hermenêutica, que enfatiza a função criativa do intérprete, reforçada pelas técnicas legislativas de abertura que, notadamente, mais se utilizam de cláusulas gerais, permite que o juiz, atribuindo sentido ao texto da Constituição (ou da lei), construa a norma jurídica. O neoconstitucionalismo, ao lado da função descritiva, típica do positivismo, atribui ao direito, ainda, a função prescritiva, proporcionando critérios adequados à resolução efetiva e prática dos casos, pela admissão e valores positivados nos princípios.
Mas a ausência de métodos prévios e a falta de critérios pré-estabelecidos para a interpretação e aplicação do direito, resultam na irracionalidade das escolhas entre valores axiológicos colidentes, motivo ensejador de decisionismos, ou o uso arbitrário da discricionariedade judicial.
O DEBATE: SUBSTANCIALISTAS versus PROCEDIMENTALISTAS
Quando se discute a maneira de interpretar a Constituição ou então a forma pela qual a democracia deve ser conduzida, temos um debate teórico recorrente entre, de um lado, os chamados substancialistas e, do outro, os procedimentalistas. Uns identificam a jurisdição constitucional como instrumento de defesa dos direitos fundamentais. Outros como instrumento e defesa do procedimento democrático. Trata-se, em resumo, da possibilidade de conciliar o poder entregue ao Judiciário com a essência democrática de governo da maioria.
O controle de constitucionalidade do Brasil vai além de formalidades do processo legislativo, como afirmam os procedimentalistas, ingressando inclusive em questões materiais, como os núcleos intangíveis trazidos pela cláusula pétrea, bem como limitações circunstanciais, isto é, mais aprece que a própria constituição forneceu parâmetros para que não só a regularidade formal fosse objeto de controle, mas também demandas e pleitos de cunho material, entenda-se, substanciais, relativos à efetivação das diversas espécies de direitos fundamentais.
No âmbito da Jurisdição Constitucional, preconiza o substancialismo que, no constitucionalismo contemporâneo delegou ao Judiciário o poder de concretizar direitos fundamentais olvidados ou negligenciados pelo Poder Político. No entanto, quando o Judiciário passa a julgar acerca destas matérias, que, via de regra, dizem respeito à efetivação de direitos fundamentais, particularmente, de direito sociais, em casos individuais, sem atentar para que, ao proteger os respectivos bens jurídicos, não passe a substituir totalmente a competência do poder que possui a competência originária para isto. Efetua-se uma politização do Judiciário, uma vez que os magistrados passam a efetuar, fundados na distorcida prerrogativa do constitucionalismo, juízos eminentemente políticos.
Mas, caso seja permitido que a democratização da jurisdição constitucional determine o teor dos direitos de per se, parece que menos se faz em termos de espraiar e universalizar o sentido e a eficácia de direitos fundamentais. Por outro lado, desde que se realize a abertura hermenêutica e se tome a democracia como valor autônomo e nuclear capaz de legitimar a jurisdição, menos dependerá o constitucionalismo do eixo dos direitos fundamentais e mais e mais oportunidade se dará para determinações ocasionais e possíveis dos direitos fundamentais.
Se do nada, nada surge, da não normatividade não pode surgir normatividade, especialmente a normatividade democraticamente alicerçada. Assim, ao sistema jusfundamental de feição substancialista, faltaria a consistência necessária para sua autopoiese, eis que a alopoiese, causada pelo ativismo judicial, é um fenômeno amplamente perceptível no quadro jurídico nacional, que ainda possibilita o surgimento do autoritarismo e da desigualdade mediante a abertura do ordenamento a uma ordem extrajurídica que o desidentifica, cabendo buscar uma solução tendente ao fechamento do sistema, selando-o de influências externas que o impeçam de se auto (re)produzir, como barrar o excesso de politização substancialista que, a pretexto de realizar direitos fundamentais, reproduz a crise de legitimidade democrática que transforma os juízes em legisladores.
Isso ganha relevo na medida em que a abertura do sistema jurídico aos decisionismos, e ao ativismo Judicial, no momento da produção da norma de decisão e a ponderação entre princípios dá margem à insegurança jurídica, de modo que falta a normatividade do direito, por influência direta do ambiente no qual o sistema jurídico se encontra inserido, destacando-se a necessidade de regulação dos processos de abertura e fechamento do ordenamento, aumento ou diminuição da discricionariedade judicial, mediante a aplicação dos critérios racionais e implementação de modelos de interpretação e aplicação do direito, capazes de resolver ou minimizar a tensão entre Jurisdição-Legislação e conferir legitimidade as normas de decisão.
A TEORIA DE ROBERT ALEXY
Professa Robert Alexy que, com o raciocínio jurídico, não se pode esperar obter um procedimento capaz de nos conduzir a uma solução definitiva para cada caso, pois, somente o que se pode criar são estruturas racionais para o raciocínio, que enxerga a ponderação como uma técnica de mera correção normativa, e, portanto, não exclusiva. O que se tem é que o significado prático da teoria dos princípios expressada na forma da tese da otimização é a sua equivalência ao princípio da proporcionalidade.
Para Alexy, não é possível o estabelecimento de teorias morais que, em cada caso ou em cada questão prática, tenham o condão de extrair com segurança intersubjetiva uma resposta precisa. Somente quando se consideram teorias morais procedimentais, capazes de formular regras ou condições de uma argumentação ou decisão racional prática é que essa segurança é possível de ser obtida.
É uma suposição central da teoria do discurso de Alexy, que a aprovação no discurso, primeiro, pode depender de argumentos e que, segundo, entre a aprovação universal sob condições ideais e os conceitos de correção e de validez moral existe uma relação necessária, mas a idéia do discurso somente pode ser realizada pela institucionalização da democracia deliberativa até o ponto onde ela é realizável.
O procedimentalismo alexyano tem relevância na apreciação do papel da jurisdição constitucional, na medida em que para Alexy, pessoas e procedimentos são necessários, na medida em que ele entende que a racionalidade prática pode ser definida como a capacidade de encontrar decisões práticas pelo uso de sistemas de regras. Assim, para Alexy, a teoria do discurso é uma teoria procedimental da correção prática, significando que uma norma é legítima quando é resultado de um procedimento.
A TEORIA DE RONALD DWORKIN
No apanhado das linhas teóricas pós-positivistas, notabilizaram-se as críticas efetuadas por Ronald Dworkin, tendo como ponto de partida fundamental a adoção de um modelo metodológico na teoria do direito que representa o reconhecimento da interconexão entre o Direito e a Moral, a afirmação da normatividade dos princípios, de modo a reconhecer que no eixo das controvérsias teóricas de direito, no cerne da prática judicial, deve haver a apreciação tanto de elementos avaliativos (moralidade política) e descritivos (direito positivo), afirmando a natureza interpretativa do direito e sua expressão argumentativa.
As ideias de descritividade e normatividade cedem espaço em importância para o conceito de intencionalidade da interpretação. A apreciação das regras se lança para além disso, para interpretar e definir o seu sentido segundo a intencionalidade de um dado valor, ou seja, fundindo num todo único, valor e conteúdo descritivo.
Para Dworkin, não o interprete, mas o ordenamento, enquanto tal, é caracterizado por uma intencionalidade abstrata, já que colhe dos princípios e das regras jurídicas o aspecto eminentemente descritivo que mantem a teoria filiada ao fechamento normativista, todavia, amplificado pela personalização da intencionalidade que o autor denominou ser a integridade do direito.
Dworkin adotará uma metodologia que dependerá de um ponto de vista interno em um sentido mais forte: o valor e a finalidade que determinam o sentido das regras possuem caráter autônomo em relação às práticas cujo significado elas determinam. Para o autor, o vínculo obrigacional reconhecido ou a situação jurídica declarada pela decisão, como simples espécies de deliberação, reclama uma fonte de legitimidade ou justificação. Essa relação de legitimidade e justificação não parece ser problemática à primeira vista quando a jurisdição é exercida em casos nos quais a aplicação de regras pré-existentes resolve sem maiores dificuldades a controvérsia submetida ao judiciário.
Sua teoria do direito será essencial a compreensão de que, além das regras jurídicas, princípios são levados em conta na decisão judicial para resolução de casos, utilizando outros padrões ainda não reconhecidos como integrantes do direito pela metodologia positivista. A interpretação da lei deve ajustá-la aos princípios de justiça pressupostos em outras partes do direito, mas sempre internamente, daí a intencionalidade de sua teoria.
Para Dworkin, os juízes não levam em consideração apenas regras jurídicas, devidamente reconhecidas e positivadas, isto é, assentadas na prática social (ou nos simples fatos, como apregoa a teoria das fontes sociais), mas a razões que remetem a um padrão que deve ser observado porque é uma exigência de justiça ou equidade, a indicar não exatamente a dimensão da lei formal, do jurídico, na compreensão positivista, mas da moralidade, todavia, abstrata, não procedimentalizada.
CRÍTICA AO DEBATE
A questão parece se limitar ao nível de evidência quanto ao teor garantidor dos direitos fundamentais. Quanto mais se saiba do que se trata, mais já se tenha clareza a respeito do teor material de um direito, menos procedimento se torna necessário, sob pena de retrocesso, uma vez que a legitimação via procedimento se conforma com a mera aceitabilidade e correção prática, que não guardam compromisso estreito e inequívoco com a máxima eficácia da Constituição, mas com a deliberação em si.
O que, afinal, agrega mais? Relativizar o núcleo axiológico dos direitos em procedimentos cuja legitimidade é preponderantemente participativa, ou, arqueologicamente, investigar o teor dos compromissos fundamentais da Constituição para transformar o problema da legitimidade em menos participação e mais inspiração? Isto é, insipiração vista como maior impulsão substancial realizadora substitutiva de procedimentalizações relativistas, cuja eficácia, segmentada, mais parece retrocesso que avanço.
O que se percebe é que a participação democrática parece fornecer a sensação de eficácia e legitimidade, sem que o núcleo axiológico dos direitos, e a ideia a eles conglobantemente subjacente, pareça conformar a cidadania, ansiosa mais pelo agir no presente do que no compromisso com alianças normativas prévias igualmente relevantes.
Vale dizer, que a questão central quanto a determinabilidade ou não do sentido interpretativo frente ao texto da lei, é, justamente, a legitimidade judicial diante da produção legislativa democrática, atribuída, na tripartição dos poderes, ao poder legislativo, ou, noutros termos, até que ponto a criação jurisprudencial se limita à Constituição democraticamente aprovada.
Sabendo-se que é a democracia o que deve orientar a limitação da produção de sentidos pelo judiciário, quando é que se tem por delimitado e reconhecido o denominado déficit democrático que ensejaria a atuação judicial como forma de sanar omissões práticas via ativismo substancial.
É o que se indaga, pois, na medida em que o texto é relativizado pela adoção medidas fundadas em princípios e valores, as projeções de efetividade lançadas fora dos limites textuais, vulneram mais e mais o vínculo com a democracia, substituída pelo pragmatismo e pelo consequencialismo, isto é, menos passa a importar a determinação democrática subjetivamente legítima, cuja observância seria uma das únicas formas de controle da discricionariedade judicial arbitrária substitutiva do legislador.
Nada obstante, na busca da efetivação de um sistema de respeito às garantias, o esforço de uma dogmática crítica é o de sofisticar os mecanismos de redução da discricionariedade e do subjetivismo judicial, de forma que as decisões observem rigorosamente os limites normativos, evitando distanciamentos antidemocráticos. Tal problema, há de se reconhecer, é o que a imposição do dever de integridade visa controlar, relegando a criação judicial ao direito preexistente, a tradição, ao caso, e a tudo o que fundamentaria uma decisão considerada abstrata, e, também, fechada, ou, de certa forma, ainda, legicentrada.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao que parece, em suma, visando solucionar o problema da legitimidade democrática, não há mal a que se mantenham inclinações normativamente fechadas, mas procedimentalizadas concretamente segundo o dever de integridade que propõe Dworkin. Noutras palavras, é preciso fechar o ordenamento para transportar sua legitimidade democrática apriorística, sendo a estabilidade da vontade textual, abstrata, o locus do dever de integridade.
Se o procedimentalismo confere legitimidade democrática às decisões, com ele se reinstaura, a bem da deliberação, sempre renovadas conclusões, o que é arriscado em termo de retrocesso e consistência. Também não se argumente com a qualidade da resposta certa atribuída à teoria procedimentalista, pois, nesta, a resposta tida por correta é meramente ideal, referente, informativa contrafaticamente.
A admissão da personalização voluntarista do texto do ordenamento como integridade do direito, por sua vez, também pode promover igual pretensão de certeza, mas, vale dizer, já descolada da concretude pessoal deliberativa da democracia. Mais compromissada com o texto, ou catálogo dos direitos fundamentais, cuja interpretação se pressupõe efetivadora do dever de integridade interpretativa textual, e menos procedimentalizada.
Deve-se, por fim, importar a ausência de exclusividade moral das teorias procedimentalistas, para, em considerando os direitos fundamentais comunicadores de parciais teorias axiológicas inclusivas, a eles se assegure participação e fundamentação, como se pessoas fossem, via motivação tecnicamente estruturada segundo a norma de proporcionalidade, controlando-se os riscos exclusivistas das atitudes valorativas substancialistas pela admissão da premissa pluralista da diversidade moral positivada nos direitos fundamentais, cuja interpretação se exige seja íntegra.
Com isso, diminui-se a discricionariedade judicial, resgata-se o paradigma fechado e introspectivo do normativismo, sem, ressalte-se, deixar de reconhecer a liberdade judicial outrora reconhecida desde o positivismo legalista, regrada pela integfridade do direito e pela proporcional fundamentação. Verifica-se, no esforço de integrar o direito, portanto, uma tentativa de determinar sentido, sem olvidamento democrático ou retorno radical ao positivismo avalorativo, atenuando a discricionariedade voluntarista da abertura normativa positivista, e pós-positivista, e afastando qualquer ponderação moralmente exclusivista, com igual risco de prejuízo democrático.
A vontade judicial sem limites, decorrente da moldura legal ou da normatização desbalanceada de princípios constitucionais, ambas, não seriam capazes de proporcionar resposta jurisdicional correta. A resposta certa é, portanto, a afinada a uma atitude interpretativa conservadora, e não revolcuionária, que mitiga a criação judicial do direito, cedendo lugar para o compromisso democrático, considerando-se o pluralismo jusfundamental positivado e a ponderação inclusiva de direitos, suficientes para banir o risco de exclusividade de eventual pretensão axiológica autoritária, causadora de desequilíbrios no binomio maioria-minoria e na representatividade democrática.
BIBLIOGRAFIA
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