SEGURANÇA JURÍDICA E DEMOCRACIA

17/01/2021 às 11:04
Leia nesta página:

O ARTIGO DISCUTE O TEMA DIANTE DAS DIVERSAS ESFERAS DE INTERVANÇÃO DO ESTADO.

SEGURANÇA JURÍDICA E DEMOCRACIA  

Rogério Tadeu Romano  

I - SEGURANÇA JURÍDICA E ECONOMIA DE MERCADO. O DIREITO TRIBUTÁRIO  

A economia de mercado não convive com uma insegurança jurídica.

Em sua Encíclica Pacem in Terris, João XXXIII, dizia ser a segurança jurídica “direito fundamental da pessoa humana”. 

Bem lembrou Alberto Xavier(Os princípios da legalidade e da tipicidade da tributação, 1978, pág. 50) que num sistema econômico que tenha, como princípios ordenadores a livre iniciativa, a livre concorrência e a propriedade privada, tornando-se indispensável eliminar, no maior grau possível, todos os fatores que possam traduzir-se em incertezas econômicas que sejam suscetíveis de prejudicar a expansão livre da empresa, instrumento maior do desenvolvimento, numa economia capitalista.

Sendo assim o tributo não deve alhear-se dos seus objetivos tradicionais, que são de índole estritamente fiscal, como ainda a de que na intervenção de estabilização conjuntural se deve, de forma predominante, às políticas monetárias, de utilização mais rápida e reversível do que aos instrumentos tributários. 

O princípio da segurança jurídica se coaduna no direito tributário brasileiro ao princípio  da legalidade que exige reserva absoluta de lei formal, de sorte que haja reserva de Parlamento. 

A livre iniciativa, principio albergado pela Constituição de 1988, e própria de um sistema capitalista, exerce-se através de planos econômicos elaborados pelas empresas para um dado período e nos se realiza uma previsão, de conteúdo empírico, dos custos de produção, do volume de investimentos adequados à obtenção de dado produto e da capacidade de absorção do mercado. 

Ora, essa previsão não pode se afastar de um mínimo de padrões de estabilidade dentro da normal margem dos riscos e incertezas, dentro de um planejamento que exige uma segurança quanto aos elementos que a afetam. 

É bestial o volume de tributos que afetam a vida de uma empesa, afetando seus custos de produção e sua previsão de faturamento. Esse deverá ser um dos enfoques de uma reforma tributária. 

Assim é certo que um sistema jurídico que autorize a Administração tributária a criar tributos ou a alterar os elementos essenciais de tributos já existentes, viria criar condições de insegurança sejam de cunho jurídico ou econômico, que obrigariam as empesas a constantes revisões de planos que poriam em risco a própria livre iniciativa. 

II - A SEGURANÇA JURÍDICA E A ADMINISTRAÇÃO 

Discute‐se aqui o princípio da segurança jurídica. Sobre ele disse Almiro do Couto e Silva, em importante obra(Os princípios da legalidade da administração e da segurança jurídica no estado de direito contemporâneo. Revista da Procuradoria‐Geral do Estado. Publicação do Instituto de Informática Jurídica do Estado do Rio Grande do Sul, v. 18, nº 46, pág. 11‐ 29, 1988):  

¨É interessante seguir os passos dessa evolução. O ponto crucial da trajetória está na opinião amplamente divulgada na literatura jurídica de expressão alemã do início do    século de que, embora inexistente, na órbita da Administração Pública, o princípio da res judicata, a faculdade que tem o Poder Público de anular seus próprios atos tem limite não apenas nos direitos subjetivos regularmente gerados, mas também no interesse em proteger a boa fé e a confiança(Treue und Glauben) dos administrados.  

(....) 

Esclareceu Otto Bachof que nenhum outro tema despertou maior interesse do que este, nos anos 50 na doutrina e na jurisprudência para concluir que o princípio da possibilidade de anulamento foi substituído pelo da impossibilidade de anulamento, em homenagem à boa fé e à segurança jurídica. Informa ainda que a prevalência do princípio da legalidade sobre da proteção da confiança só se dá quando a vantagem é obtida pelo destinatário por meios ilícitos por ele utilizados, com culpa sua, ou resulta de procedimento que gera sua responsabilidade. Nesses casos não se pode falar em proteção de confiança do favorecido. (Verfassungsrecht, Verwaltungsrecht, Verfahrensrecht    in der Rechtssprechung des Bundesverwaltungsgerichts, Tübingen 1966, 3. Auflage, vol. I, p. 257 e segs. ; vol. II, 1967, p. 339 e segs).   

Embora do confronto entre os princípios da legalidade da Administração Pública e o da segurança jurídica resulte que, fora dos casos de dolo, culpa, etc, o anulamento com eficácia ex tunc é sempre inaceitável e o com eficácia ex nunc é admitido quando predominante o interesse público no restabelecimento da ordem jurídica ferida, é absolutamente defeso o anulamento quando se tratem de atos administrativos que concedam prestações em dinheiro, que se exauram de uma só vez ou que apresentem caráter duradouro, como os de índole social, subvenções, pensões ou proventos de aposentadoria.¨ 

Trago à colação a tese escolhida (Tema 531), no Superior Tribunal de Justiça, que  tem o seguinte conteúdo: 

"É indevida a devolução ao erário de valores recebidos de boa-fé, por servidor público ou pensionista, em decorrência de erro administrativo operacional ou nas hipóteses de equívoco ou má interpretação da lei pela administração pública".  

Essa tese foi elaborada pela 1ª Seção do STJ, no julgamento do REsp 1.244.183-PB, sendo relator o ministro Benedito Gonçalves (j. em 10/10/12, publicado em 19/10/12).  

O caso envolvia a aplicação do art. 46 da lei 8.112, de 11/12/90, que estabelece normas sobre as reposições e indenizações ao erário, devidas pelo servidor público, aposentado ou pensionista, os quais devem ser comunicados para pagamento no prazo máximo de 30 dias, podendo ser parcelados os valores devidos, a pedido do interessado. Segundo a ementa do acórdão,  

"O art. 46, caput, da lei 8.112/90 deve ser interpretado com alguns temperamentos, mormente em decorrência de princípios gerais de direito, como a boa-fé. Com base nisso, quando a administração pública interpreta erroneamente uma lei, resultando em pagamento indevido ao servidor, cria-se uma falsa expectativa de que os valores recebidos são legais e definitivos, impedindo, assim, que ocorra desconto dos mesmos, ante a boa-fé do servidor público".  

O acórdão cita vários precedentes do próprio STJ, como os EDcl no RMS 32.706-SP, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, 1ª T., j. 25/10/11, DJe de 9/11/11; AgRg no Ag 1.397.671-RS, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, 2ª T., j. 4/8/11, DJe 06/09; Ag no REsp 1.266.592-RS, Rel. Min. Humberto Martins, 2ª T., j. 6/9/11, DJe de 13/9/11. 

III - A SEGURANÇA JURÍDICA E A PROTEÇÃO DA CONFIANÇA  

O princípio da segurança jurídica encontra-se espraiado em todo o ordenamento jurídico, de forma direta, como no caso do art. 2º, da Lei nº 9.784/99 – Lei do Processo Administrativo, que consagra o princípio da segurança jurídica como norte condutor da administração pública brasileira ou de forma implícita, quando no texto constitucional, art. 5º, XXXIX, garante que o crime a pena depende da lei prévia em tal sentido. 

Nas palavras de José Afonso da Silva(Comentário Contextual à Constituição. São Paulo: Malheiros, 2006), "a segurança jurídica consiste no 'conjunto de condições que tornam possível às pessoas o conhecimento antecipado e reflexivo das consequências diretas de seus atos e de seus fatos à luz da liberdade reconhecida'. Uma importante condição da segurança jurídica está na relativa certeza que os indivíduos têm de que as relações realizadas sob o império de uma norma devem perdurar ainda quando tal norma seja substituída"  

Na lição de Maria Sylvia Zanella Di Pietro(O STJ e o princípio da segurança jurídica) o princípio da segurança jurídica apresenta o aspecto objetivo, da estabilidade das relações jurídicas, e o aspecto subjetivo, da proteção à confiança ou confiança legítima, este último originário do direito alemão, importado para a União Europeia e, mais recentemente, para o direito brasileiro. Ele foi elaborado pelo tribunal administrativo em acórdão de 1957; em 1976, foi inserido na lei de processo administrativo alemã, sendo elevado à categoria de princípio de valor constitucional por interpretação do Tribunal Federal Constitucional. A preocupação era a de, em nome da proteção à confiança, manter os atos ilegais ou inconstitucionais, fazendo prevalecer esse princípio em detrimento do princípio da legalidade. Do direito alemão passou para o direito comunitário europeu, consagrando-se em decisões da Corte de Justiça das Constituições Europeias como "regra superior de direito" e "princípio fundamental do direito comunitário".  

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Segundo J. J. Gomes Canotilho (Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2000, p. 256), "o homem necessita de segurança jurídica para conduzir, planificar e conformar autônoma e responsavelmente a sua vida. Por isso, desde cedo se consideravam os princípios da segurança jurídica e proteção à confiança como elementos constitutivos do Estado de direito. Estes dois princípios - segurança jurídica e proteção à confiança - andam estreitamente associados, a ponto de alguns autores considerarem o princípio da proteção da confiança como um subprincípio ou como uma dimensão específica da segurança jurídica. Em geral, considera-se que a segurança jurídica está conexionada com elementos objetivos da ordem jurídica - garantia de estabilidade jurídica, segurança de orientação e realização do direito - enquanto a proteção da confiança se prende mais com as componentes subjetivas da segurança, designadamente a calculabilidade e previsibilidade dos indivíduos em relação aos efeitos jurídicos dos actos". 

A segurança é, pois, a paz jurídica, a confiabilidade e a previsibilidade dos cidadãos de que as condutas por eles praticadas serão garantidas, desde que, obviamente, previstas como condutas lícitas pelo sistema jurídico. No mesmo sentido, é a contribuição doutrinaria de Karl Larenz(Derecho justo: fundamentos de ética jurídica. Madrid: Civitas, 1985, pág. 91) que tem a consecução da paz jurídica um elemento nuclear do Estado de Direito e também concebe como aspecto do princípio da segurança. Assim ensina:  

“O ordenamento jurídico protege a confiança suscitada pelo comportamento do outro e não tem mais remédio que protege, porque pode confiar (...) é condição fundamental para uma pacífica vida coletiva e uma conduta de cooperação entre os homens e, portanto, da paz jurídica.” 

A segurança jurídica encontra-se agalhado no ordenamento constitucional brasileiro, como garantia fundamental, através da proteção ao ato jurídico perfeito, ao direito adquirido e a coisa julgada. Assim a lei não retroagirá para prejudica-las.  

IV - O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO 

Esse o parâmetro escolhido pela Constituição do Brasil que escolheu como modelo econômico o capitalismo e a regência por um Estado Democrático de Direito.  

Canotilho e Vital Moreira consignaram sobre o princípio: “Afastam-se ideias transpessoais do Estado como instituição ou ordem divina, para se considerar apenas a existência de uma res pública no interesse dos indivíduos. Ponto de partida e de referência é o indivíduo autodeterminado, igual, livre e isolado”. O Estado de Direito está vinculado, nessa linha de pensar, a uma ordem estatal justa, que compreende o reconhecimento dos direitos individuais, garantia dos direitos adquiridos, independência dos juízes, responsabilidade do governo, prevalência da representação política e participação desta no Poder Legislativo. 

Ainda ensinaram Canotilho e Vital Moreira: “O Estado de Direito reduziu-se a um sistema apolítico de defesa e distanciação perante o Estado”. Tornam-se as suas notas marcantes: a repulsa da ideia de o Estado realizar atividades materiais, acentuação da liberdade individual, na qual só a lei podia intervir e o enquadramento da Administração pelo princípio da legalidade. 

Ela se assenta na vontade popular, segundo o qual “todo o poder emana do povo”.  

Já dizia Lincoln que a democracia é governo do povo, pelo povo e para o povo. 

Governo do povo significa que este é fonte e titular do poder(todo poder emana do povo), de conformidade com o princípio da soberania popular que é, pelo visto, o princípio fundamental do Estado Democrático. Como disse José Afonso da Silva(Curso de direito constitucional positivo, 5º edição, pág. 120), governo democrático é o que se baseia na adesão livre e voluntária do povo à autoridade, como base da legitimidade do exercício do poder, que se efetiva na técnica da representação política. 

 

 

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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