Muito se tem afirmado no Brasil, principalmente entre os políticos e juristas apoiadores da base governista, que a liberdade de ir e vir estaria sendo limitada pelos “lockdowns” decretados país afora.
E a afirmação, até aqui, é correta.
Isso porque a determinação para que as pessoas fiquem em casa, vedando a abertura de segmentos do comércio e o acesso a alguns lugares, efetivamente diminui sua liberdade de ir e vir.
Mas daí não decorre qualquer ilegalidade, como querem fazer crer.
Há restrições a direito fundamental que são amparadas constitucionalmente. Diante de uma tal medida, deve-se questionar, através de um exercício hermenêutico, se ela tem, de outro lado, uma justificativa legítima. Em termos mais técnicos trata-se, como nos ensinou Virgílio Afonso da Silva, de submeter o ato restritivo à regra da proporcionalidade. Quer dizer, deve-se averiguar a adequação do ato para fomentar o objetivo perseguido; sua necessidade, ou seja, se o objetivo perseguido não pode ser atingido por outro ato que limite em menor medida o direito fundamental atingido; e, por fim, sua proporcionalidade em sentido estrito, a saber, se é mais importante, na hipótese concreta, a realização do princípio que se busca concretizar em detrimento daquele que se limita[1].
E a resposta, aqui, é eminentemente positiva, isto é, os “lockdowns” possuem uma justificativa legítima.
Isso pois, fundado em escritos médicos relevantes que atestam a eficácia da medida[2], busca-se, com os “lockdwons”, evitar a disseminação de um vírus que pode causar o colapso do sistema de saúde nacional e que já levou milhares à morte. O ato é, portanto, apto a fomentar o objetivo perseguido, consistente na defesa da saúde pública. Por sua vez, ele é também necessário neste momento de segunda onda de contaminação, pois fazer do fechamento de segmentos do comércio e da proibição de frequentar determinados lugares uma mera recomendação, ocasionando eventuais aglomerações, custaria vidas quando, de outro lado, se tem a indispensabilidade, ante o contexto novamente preocupante, de se adotar medida mais enérgica, a fim de evitar, em maior número, as mortes ocasionadas pela doença. Por fim, realizando um sopesamento entre a intensidade da restrição ao direito fundamental atingido (liberdade de ir e vir) e a importância da realização do direito fundamental que com ele colide e que fundamenta a adoção da medida restritiva (direito à saúde pública), se vê que a medida é proporcional em sentido estrito. Isso porque, a limitação ao direito de ir e vir que os “lockdowns” impõem é apenas parcial e temporária, ao passo que, de outro lado, permitir a ampla circulação poderia provocar um prejuízo definitivo à saúde pública, com a geração de inúmeros óbitos.
Dessa forma, passando o ato restritivo pela regra da proporcionalidade, o que significa dizer que ele restringe de forma proporcional (adequada, necessária e proporcional em sentido estrito) um direito fundamental, os “lockdowns” são medida constitucional.
[1] Tratam-se, a adequação, a necessidade e a proporcionalidade, de sub-regras da proporcionalidade em sentido amplo. São filtros pelos quais deve-se passar o ato estatal em apreço, permitindo averiguar se a restrição que impõe a direitos fundamentais é proporcional. A passagem do ato por estes crivos é sucessiva e eliminatória. Se o ato não passa pelo filtro da adequação, por exemplo, despiciendo submetê-lo ao crivo da necessidade, pois a resposta já terá sido oferecida: a restrição ao direito fundamental que o ato estatal impõe é inadequada e deve ser expurgada do ordenamento jurídico. A submissão do ato restritivo à regra da proporcionalidade é um método que permite pôr às claras, de forma ordenada, o raciocínio ponderativo adotado, possibilitando um “controle de juridicidade e racionalidade” da fundamentação oferecida em cada etapa do exercício hermenêutico.
SILVA, Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 91, n. 798, p. 23-50, abr. 2002.