Sumário
1. Introdução; 2. Histórico Legislativo do Instituto e suas Premissas Teóricas Atuais; 3. Contraditório do Autor e Não-Surpresa; 4. Procedimento Relativamente ao Réu e seu Interesse Recursal. Interpretação de “Trânsito em Julgado” nos artigos 241 e 332, § 2º, CPC, e Apelação da Parte Passiva; 5. Reforma da Sentença de Improcedência Liminar e Supressão de Instância; 6. Rol de Incisos do art. 332: numerus clausus ou Exemplificativo? Hipótese Atípica; 7. Conclusão.
1. Introdução
O presente artigo busca traçar breves considerações acerca da improcedência liminar do pedido – cuja previsão legal encontra-se no art. 332, CPC/15 –, além de abordar algumas questões doutrinárias especificamente interessantes a ela atinentes. Primeiro buscou-se contextualizar o surgimento do instituto em comento, para então traçarem-se comentários relativos à sua colocação na legislação vigente. Em seguida, passou-se à análise das discussões doutrinárias: a violação do direito ao contraditório do autor1 e a aplicação do princípio da não-surpresa; o procedimento em relação à parte passiva, além de seu interesse recursal; a abrangência da possibilidade de reforma em segundo grau de jurisdição da sentença de improcedência liminar; e a taxatividade ou não do rol de incisos do já citado art. 332, CPC.
Ao fazer-se referência à improcedência liminar do pedido, falou-se também em “improcedência liminar” tão somente, ou “improcedência prima facie” ou “improcedência in limine litis” – todas expressões sinônimas e de uso corriqueiro em doutrina e jurisprudência.
2. Histórico Legislativo do Instituto e suas Premissas Teóricas Atuais
Ocorre o advento da hoje assim chamada improcedência liminar do pedido, no direito pátrio, com a modificação feita pela Lei 11.277/06 no CPC/73, introduzindo neste último o artigo 285-A2. Trazendo consigo a revolucionária possibilidade de afastar-se a citação e, ao mesmo tempo, resolver-se o mérito – diferenciando-se, portanto, do indeferimento da inicial –, a improcedência liminar apresentou-se como prometedora ferramenta útil à promoção da economia processual. Ferramenta essa que, infelizmente, acabou sendo pouco foi utilizada sob a égide do velho CPC, como esclarece TRÍCIA NAVARRO XAVIER CABRAL (2016)3.
Levaram as deficiências do art. 285-A à sua completa reformulação já no bojo do texto original do hoje vigente CPC/15, que enuncia a improcedência prima facie em seu art. 3324. O cotejo dos referidos dispositivos faz-nos notar as mudanças: não mais está adstrita a possibilidade de improcedência liminar às controvérsias tão somente de direito, abrangendo-se também causas que dispensam instrução; não mais é necessário haver “jurisprudência pessoal” do juízo, substituindo-se tal pela jurisprudência qualificada dos tribunais; agora prescrição e decadência são também explicitamente inclusas no rol de justificativas de julgamento liminar; e agora ordena expressamente o CPC que se intime o réu do trânsito em julgado em seu favor. É patente terem sido positivas as mudanças aqui enumeradas, preenchendo o legislador lacunas que, antes deixadas à colmatação doutrinária5, davam azo às mais renhidas e intermináveis celeumas na doutrina, causando insegurança jurídica.
Para além da promoção da economia processual e da duração razoável do processo, o rol de incisos do art. 332 dá relevante prestígio à chamada “jurisprudência qualificada” dos tribunais, superiores e locais. Desta feita, impossível evitar-se o paralelismo com o semelhante rol enunciado no art. 927, CPC6. Entretanto, não se deve permitir que uma pretensa interpretação sistemática do código fulmine a literalidade dos incisos do art. 332, estes sim que justificam quaisquer hipóteses de improcedência in limine litis.
Por este motivo, data venia, não prospera o defendido por FREDIE DIDIER (2017, p. 671-2) ao afirmar que
O inciso I do art. 332 fala em súmula de tribunal superior. Sucede que o inciso IV do art. 927 determina a vinculação apenas dos enunciados da súmula do STF em matéria constitucional e da súmula do STJ em matéria infraconstitucional federal; essa restrição não aparece no art. 332. Para fim de harmonizar os dispositivos do Código, que deve ser interpretado como uma unidade, somente é permitida a improcedência liminar do pedido que contrariar súmula do STF em matéria constitucional e súmula do STJ em matéria infraconstitucional (legislação federal) [grifo meu]. Essa observação inclui, também, obviamente, a súmula vinculante (art. 927, lI, CPC), que também é súmula do STF em matéria constitucional.
Inexistindo dentre as hipóteses oferecidas pelo Código de improcedência liminar do pedido a reserva feita pelo colendo doutrinador aqui citado, não cabe ao intérprete substituir-se ao legislador, impondo, sem base legal, ônus ou limitação à aplicação do art. 332. Não há também que se falar em interpretação sistemática, pois não decorre da inteligência do artigo 927 qualquer restrição a impor-se sobre a aplicação da improcedência prima facie. Assim, irrelevante é a verificação quanto ao fato de tratar-se ou não a súmula do STF ou do STJ de matéria constitucional ou infraconstitucional, para efeitos de improcedência liminar do pedido, dado o art. 332 não ter feito limitação neste sentido. Por fim, no que tange à súmula vinculante, correto considerá-la, por evidente, súmula do Supremo Tribunal Federal apta a justificar a aplicação do art. 332. Isso, no entanto, dá-se com base no inciso I do mencionado artigo, não havendo que se fazer qualquer menção ao art. 927.
3. Contraditório do Autor e Não-Surpresa
A improcedência liminar do pedido levantou, desde sua primeira forma sob o antigo CPC/73, variadas críticas fundadas em suas supostas inconstitucionalidades7. Não prosperando tais críticas na jurisprudência – e é muito compreensível que uma Judiciário tão absurdamente assoberbado como o nosso busque valer-se de tão proveitoso instrumento de economia processual –, uma parece merecer, ainda hoje, rápida análise. Trata-se do questionamento que se faz, com base no princípio da não-surpresa estampado nos artigos 9º8 e 109 do CPC/15, à possibilidade defendida por alguns de que não se dê ao autor oportunidade de manifestar-se antes de proferida sentença que julgue liminarmente improcedente o pedido. Diz CAROLINA UZEDA:
A decisão [de improcedência prima facie] deve ser proferida liminarmente, ou seja, independentemente do cumprimento do previsto no art. 9º do CPC. O pedido será julgado improcedente sem que o autor seja, previamente, comunicado. Isso se extrai, como explica a Processualista Janaína Noleto, também, da interpretação a contrario sensu do art. 487, parágrafo único.
Data venia, não prospera a propugnada defesa de tão extensa exceção à não-surpresa, haja vista já ter o próprio legislador aberto a janela de não aplicação desta regra (em termos dworkinianos, posto que de aplicação fácil, vinculada; ao contrário dos princípios) nos incisos do parágrafo único do art. 9º, CPC. Neste rol não se encontrando menção ao artigo 332, não há que se falar em ali incluí-lo, do contrário incidindo-se em inaceitável afronta ao contraditório. Da mesma forma o rito diferenciado de apelação previsto pelo art. 332, que permite a retratação do juiz, não justifica violação aos já citados artigos 9º e 10. Continua UZEDA:
Não se pode afirmar, entretanto, que há violação ao contraditório, uma vez que a apelação eventualmente interposta terá efeito regressivo, permitindo-se, ao magistrado, reconsiderar a decisão, caso identifique que os fundamentos apontados no recurso são procedentes. Caso a decisão seja reconsiderada, o feito retomará o curso normal, com a designação de audiência de conciliação ou mediação (quando for o caso) e citação do réu para comparecer ao ato.
Embora possa parecer haver, em sendo aplicada a posição aqui citada, maior economia processual; em verdade, assistindo razão ao autor e havendo retratação do juiz, haverá somente tumultuação processual e consequente perda de tempo e morosidade. Mais proveitoso, sob a ótica do consequencialismo; e mais correto, sob a ótica da não-surpresa; é permitir a manifestação do autor antes da prolação da sentença de improcedência liminar, evitando-se um possivelmente desnecessário duplo juízo de mérito e de retratação.
Tem-se, por fim, a menção ao art. 487, parágrafo único, CPC10, que efetivamente constitui exceção ao artigo 9º do mesmo Código, ao permitir reconhecimento ex officio e sem manifestação das partes de prescrição e decadência no bojo da improcedência prima facie11. Tal exceção apenas comprova a regra do respeito à não-surpresa, em vez de pô-la por terra. Pois veja-se: se o legislador enxerga a necessidade de inscrever num dispositivo do Código que a hipótese do § 1º do artigo 332 (reconhecimento de prescrição e decadência) escapa à não-surpresa, não tendo a lei aberto exceções outras é evidente que às demais hipóteses aplica-se a regra geral – deve o juiz permitir ao autor pronunciar-se antes de decidir, exceto no caso do § 1º do art. 332, CPC12 13. Registre-se, por derradeiro, que não podem doutrina e jurisprudência, por motivos de separção de poderes (CF, art. 2º14), arvorarem-se em legisladores e, inovando na ordem jurídica, criar exceções à aplicação de dispositivos legais.
4. Procedimento Relativamente ao Réu e seu Interesse Recursal. Interpretação de “Trânsito em Julgado” nos artigos 241 e 332, § 2º, CPC, e Apelação da Parte Passiva
Estabelecendo o Código a necessidade de, transitada em julgado a ação liminarmente julgada improcedente, intimar-se o réu para comunicar-lhe do resultado15 (CPC, art. 332, § 2º, e art. 24116), surgem duas questões interessantes. Primeiro: terá o réu interesse recursal? Segundo: em tendo interesse, qual será a via recursal adequada, se é que há uma, dado ter ocorrido “trânsito em julgado”?
A discussão quanto ao interesse leva à resposta afirmativa: no caso de a improcedência prima facie não ter garantido a melhor tutela jurisdicional possível ao réu que, em tese, saiu vencedor, possuirá ainda assim a parte passiva interesse recursal. Isso torna-se ainda mais patente em se tratando de situação na qual não pôde o réu pronunciar-se, pois nem sequer citado foi. Tem-se que tal posição melhor se coaduna com o processo justo e com a instrumentalidade das formas, não podendo a posição formal de vencedor do réu negar-lhe o efetivo provimento jurisdicional em seu favor, por suposta ausência de interesse.
Cite-se como exemplo de interesse o trazido por DIDIER (p. 676), aduzindo a hipotética situação em que o réu injustamente cobrado, em vez de objetivar o reconhecimento de prescrição em sede de sentença de improcedência liminar (CPC, art. 332, § 1º), preferirá o reconhecimento da inexistência da dívida, para obter repetição de indébito em dobro, nos temos do art. 940, CC17. Terá o réu claro interesse recursal se reconhecida, nestes termos, prescrição em seu favor.
Chega-se, então, à segunda problemática levantada. Desafiaria a sentença proferida em situação de improcedência in limine litis apelação do réu? A resposta, em que pese o “trânsito em julgado” a que fez referência o legislador, deve ser positiva – em havendo, por evidente, interesse da parte passiva, como acima exposto.
Faz-se necessária uma interpretação conforme a Constituição da expressão “trânsito em julgado” presente nos dispositivos aqui citados do CPC, devendo-se entendê-la como “ausência ou exaurimento de recurso por parte do autor, pois, para o réu, não há ainda trânsito em julgado nesse momento, uma vez que ele pode reabrir a questão (...)” (EDUARDO TALAMINI e LUIZ RODRIGUES WAMBIER apud CAROLINA UZEDA). Registre-se que os autores citados fazem referência tão somente à hipótese de reconhecimento da prescrição (art. 332, § 1º, CPC). Deve-se, entretanto, em respeito aos ditames constitucionais da duração razoável do processo, da ampla defesa e do contraditório, afastar-se qualquer limitação à possibilidade de apelação do réu – por inconstitucional –, permitindo-se-lhe que interponha recurso em qualquer dos casos de improcedência prima facie, posto que o caminho recursal será sensivelmente mais facilitado e menos limitado que o ajuizamento de ação rescisória. Com tal interpretação da expressão “trânsito em julgado” – passando-se a reconhecer a res judicata somente para o autor vencido, posto que ele não mais poderá interpor recurso autônomo (art. 332, § 2º) – afasta-se qualquer inconstitucionalidade do rito de improcedência liminar relativamente ao réu.
Reconhecida a possibilidade de o réu apelar, faz sentido que à sua apelação se aplique o rito diferenciado previsto pelo art. 332, §§ 3º e 4º, CPC, permitindo-se a retratação do juiz em cinco dias e o consequente prosseguimento normal do feito. Tal ocorre por questão de isonomia.
5. Reforma da Sentença de Improcedência Liminar e Supressão de Instância
Declarada a improcedência prima facie, por meio de sentença, abre-se ao autor a oportunidade de apelar. Em havendo o provimento da apelação em favor da parte autora, e a consequente reforma da decisão do juízo a quo que declarou liminarmente improcedente o pedido, levanta-se a questão de estar-se suprimindo instância, em violação às garantias processuais do réu.
Possui a vedação da supressão de intância fundamentação legal, para além do arcabouço constitucional de garantias processuais, sobretudo na interpretação a contrario sensu do art. 1013, § 3º, CPC. Somado isso à ampla aceitação doutrinária e jurisprudencial da regra em tela e, mais genericamente, da garantia do duplo grau de jurisdição, deve-se ter como profundamente relevante a indagação quanto a poder-se ou não reformar-se a sentença proferida nos termos do art. 332, CPC, favorecendo-se o autor.
Ocorre que a aventada aplicação da teoria da causa madura, que hoje diz-se acolhida pelo CPC/15 justamente graças ao seu art. 1013, § 3º, não pode se dar quando da reforma de decisão que declare a improcedência prima facie. Primeiro, pois a mencionada teoria, apesar de realmente encontrar acolhida no supracitado dispositivo do Código atual, nele também encontra a limitação de seu âmbio de atuação; fora dele não podendo ser aplicada.
Segundo, e mais especificamente, não prospera a aplicação da teoria da causa madura nos casos de improcedência liminar, pois nestes casos o réu, que somente contrarrazoou a apelação, sequer teve a oportunidade de contestar a inicial que fora julgada improcedente prima facie, não sendo citado para tal. Deste modo, fica patente a violação ao contraditório do réu se ele, só podendo responder ao recurso, acabar por ver, no tribunal ad quem, uma verdadeira transformação da decisão de improcedência liminar a ele favorável em um “acórdão de procedência liminar”, contrário a seus interesses. A reforma feita pelo juízo ad quem que aplique a teoria da causa madura e julgue o mérito – o que já não deveria ocorrer em hipóteses fora daquelas elencadas pelo art. 1013, § 3º, CPC – jamais, portanto, deve ocorrer em casos de improcedência liminar do pedido, sob pena de fulminar-se o contraditório e de subverter-se o instituto previsto pelo art. 332, CPC, contra aquele a quem deveria beneficiar: o réu18.
Assim, para garantir-se o contráditório do réu, ensina-nos LEONARDO GRECO (p. 49): “[s]e o tribunal der provimento à apelação para reformar a sentença liminar de improcedência, deverá determinar o retorno dos autos à primeira instância para que o processo siga todo o procedimento normal perante esse juízo, intimando-se o réu, já citado, para defender-se, nos termos do artigo 297 do Código [CPC/73]”. No mesmo sentido do exposto, veja-se também o dito por HUMBERTO THEODORO JUNIOR (p. 768):
Em seu julgamento, o tribunal poderá manter a decisão de primeiro grau, negando provimento à apelação. Não será possível, porém, reformá-la, no todo ou em parte, porque não cabe no julgamento prima facie entrar no mérito da causa para acolher o pedido, nem mesmo parcialmente, porque isto quebraria o contraditório em desfavor do demandado, que ainda não teve oportunidade de produzir sua contestação. Se o tribunal entender que há questões a esclarecer em dilação probatória, terá de anular (ou cassar) a sentença, já que não será o caso de demanda que dispensa a fase instrutória, como exige o caput do art. 332 para autorizar o julgamento de mérito in limine. O processo baixará à origem e prosseguirá segundo o procedimento comum, com observância plena do contraditório e ampla defesa. O prazo de contestação correrá a partir do retorno dos autos ao juízo da causa.
6. Rol de Incisos do art. 332: numerus clausus ou Exemplificativo? Hipótese Atípica
Constam as hipóteses justificadoras de improcedência liminar do rol de incisos do art. 332, CPC, além de seu § 1º. Levanta-se a questão quanto à taxatividade ou não do mencionado rol, sobretudo, ao falar-se da manifesta improcedência do pedido como “causa atípica”, no dizer de FREDIE DIDIER (p. 679), de improcedência prima facie.
Tem-se que, de fato, a abreviação do iter processual proporcionada pelo art. 332 pode gerar problemas se utilizada descontroladamente e fora das situações previstas em lei. Neste caso, haveria real e grave ameaça às garantias processuais – contraditório à frente – do autor, que teria sua (talvez legítima) pretensão fulminada de maneira ilegal, posto que sem a acolhida do texto do Código.
Ocorre que, entretanto, o próprio legislador deu azo, com a Lei 13300/16 – posterior, portanto, ao CPC atual –, a uma interpretação analógica que permite, observado o artigo 6º19 da supracitada Lei, acrescentar uma única hipótese atípica de improcedência liminar do pedido ao rol do art. 332. Tratando-se tal hipótese da já mencionada manifesta improcedência do pedido, observa-se que não há que se falar em violação: 1) das garantias processuais de qualquer das partes; e 2) do princípio da legalidade (CF, art. 5º, II).
Aquelas restam inabaladas porque já parte-se da premissa de ser absurdo o pedido, estando o mesmo desprovido de mínimo sentido ou valor jurídico – fora, portanto, de qualquer “zona de penumbra”, para citar H. L. A. Hart20. Em havendo qualquer dúvida, evidentemente deve o julgador seguir o feito, promovendo a citação do réu. Este, por sua vez, não resta violado, pois: 1) permite-nos a legislação a analogia no silêncio da norma (vide LINDB, art. 4º21); 2) nada na redação do art. 332, CPC, determina ser o rol de hipóteses ali enunciado taxativo; e 3) a Lei do Mandado de Injunção demonstra estar o legislador atual de acordo com tal hipótese de improcedência liminar, inexistindo afronta ao Legislativo em aplicar-se entendimento analógico – pelo contrário, faz-se valer com maior extensão a mens legislatoris mais recentemente externada.
Resta claro o acerto da analogia aqui colocada quando nota-se, por fim, a não-previsão no CPC/15 da velha condição da ação possibilidade jurídica do pedido, como bem coloca DIDIER (p. 680-1):
O posicionamento deste Curso, assim, vai no sentido de dar novo significado à conhecida "condição da ação" possibilidade jurídica do pedido, prevista no CPC-1973 como hipótese de indeferimento da petição inicial sem exame do mérito, nada obstante as críticas doutrinárias a essa opção – o exame da possibilidade jurídica do pedido é inequivocamente um exame de mérito, e não de admissibilidade.
O CPC, então, ao não mais tratar da possibilidade jurídica do pedido como hipótese de extinção do processo sem exame do mérito, silenciando no ponto, adota correto entendimento doutrinário, reconfigurando a "possibilídade jurídica do pedido" e permitindo, a partir da conjugação de algumas normas fundamentais processuais, uma atípica hipótese de improcedência liminar do pedido
Privilegiando também a duração razoável do processo e a boa-fé – como também esclarece DIDIER –, o entendimento analógico aqui defendido demonstra coadunar-se em sua totalidade com o vigente sistema de garantias processuais. Configura, portanto, a improcedência liminar do pedido manifestamente incabível uma legítima, mesmo que atípica, ferramenta em favor do processo justo.
7. Conclusão
Nota-se que a improcedência liminar do pedido – ao passo em que privilegia a economia processual e, consequentemente, a duração razoável do processo – se bem usada em nada poderá vulnerar as garantias processuais fundamentais, tais como devido processo legal, ampla defesa e contraditório. Tem-se, assim, na improcedência prima facie um valioso instrumento em prol da entrega efetiva da tutela jurisdicional e do processo justo.
Sem, obviamente, ter tido aqui qualquer pretensão de esgotar o tema, espero que o presente trabalho possa contribuir para um entendimento mais completo do previsto pelo CPC em seu artigo 332. Quanto a este fito, cito o Segundo Macabeus, capítulo 15, versículo 38: “[s]e o fiz bem, de maneira conveniente a uma composição escrita, era justamente isso que eu queria; se vulgarmente e de modo medíocre, é isso o que me foi possível”.
Referências
ARGONDIZO, Luís Fernando Centurião; DE LIMA, Wellington Henrique Rocha. A improcedência liminar do pedido como garantidor da celeridade processual, uma análise crítica ao novo CPC. Revista de Processo, Jurisdição e Efetividade da Justiça, Rio de Janeiro, v. 4, n. 2, 2018. Disponível em: https://indexlaw.org/index.php/revistaprocessojurisdicao/article/view/4924/pdf. Acesso em: 20/10/2020.
CABRAL, Trícia Navarro Xavier. A improcedência liminar do pedido e o saneamento do processo. Revista de Processo, Brasília, v. 252, fevereiro, 2016.
DIDIER, Fredie. Curso de Direito Processual Civil. 19 ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2017.
GRECO, Leonardo. Instituições de Processo Civil, volume II. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2010.
RODRIGUES, Marco Antonio dos Santos. Da inaplicabilidade da teoria da causa madura ao julgamento liminar de improcedência em demandas repetitivas. Revista de Direito da Procuradoria Geral, Rio de Janeiro, v. 68, 2014. Disponível em: https://pge.rj.gov.br/comum/code/MostrarArquivo.php?C=MTAxMw%2C%2C. Acesso em: 24/10/2020.
THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil, v. 1. 56 ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2015.
UZEDA, Carolina. Improcedência Liminar do Pedido. Disponível em: https://processualistas.jusbrasil.com.br/artigos/734673523/improcedencia-liminar-do-pedido. Acesso em: 23/10/2020.
Notas
1 - Em que pese haver autorizadas – e acertadas – vozes na doutrina propugnando o uso das palavras “demandante” e “demandado”, em vez de “autor” / “parte ativa” e “réu” / “parte passiva”, ao tratar-se de improcedência liminar do pedido, utilizamos aqui o segundo conjunto de expressões por facilidade de comunicação. Correta, repita-se, a utilização do primeiro par de palavras – vide o explicado por FREDIE DIDIER (p. 667): “Fala-se em demandante e demandado, pois o dispositivo, embora previsto na parte do Código dedicada à petição inicial, também se aplica à reconvenção – demanda do réu proposta contra o autor, no mesmo processo.”.
2 - CPC/73: “Art. 285-A. Quando a matéria controvertida for unicamente de direito e no juízo já houver sido proferida sentença de total improcedência em outros casos idênticos, poderá ser dispensada a citação e proferida sentença, reproduzindo-se o teor da anteriormente prolatada.
§ 1º Se o autor apelar, é facultado ao juiz decidir, no prazo de 5 (cinco) dias, não manter a sentença e determinar o prosseguimento da ação.
§ 2º Caso seja mantida a sentença, será ordenada a citação do réu para responder ao recurso.”
3 - “Diante das divergências sobre a aplicação dessa técnica processual, seu aproveitamento prático como meio hábil de racionalizar o procedimento foi comprometido, não tendo havido uma utilização sistemática pelos magistrados”.
4 - “Art. 332. Nas causas que dispensem a fase instrutória, o juiz, independentemente da citação do réu, julgará liminarmente improcedente o pedido que contrariar:
I - enunciado de súmula do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça;
II - acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de recursos repetitivos;
III - entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência;
IV - enunciado de súmula de tribunal de justiça sobre direito local.
§ 1º O juiz também poderá julgar liminarmente improcedente o pedido se verificar, desde logo, a ocorrência de decadência ou de prescrição.
§ 2º Não interposta a apelação, o réu será intimado do trânsito em julgado da sentença, nos termos do art. 241.
§ 3º Interposta a apelação, o juiz poderá retratar-se em 5 (cinco) dias.
§ 4º Se houver retratação, o juiz determinará o prosseguimento do processo, com a citação do réu, e, se não houver retratação, determinará a citação do réu para apresentar contrarrazões, no prazo de 15 (quinze) dias.”
5 - Cite-se, como exemplo disso, TRÍCIA CABRAL (2016): “embora o art. 285-A não mencione a necessidade de o julgamento ter que seguir o entendimento dos tribunais superiores, a orientação doutrinária é no sentido de que o mecanismo exige que a sentença esteja em conformidade com os órgãos hierarquicamente superiores”. LUIS FERNANDO ARGONDIZO e WELLINGTON HENRIQUE DE LIMA (2018) deixam claro que tal direcionamento adotado pela doutrina foi insuficiente : “[o] modelo antigo [CPC/73] gerava grande debate e insegurança, pois possibilitava a atuação de entendimentos contrários os adotadas nas Cortes Superiores, pois impunha necessidade de utilização de entendimento do mesmo Juízo, o que, per si, fomentava um sentimento de insegurança jurídica, e afrontando diretamente a isonomia processual, a ordem hierárquica dos tribunais, bem como, o modelo hodierno de formação de precedente judiciais”.
6 - “Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão:
I - as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade;
II - os enunciados de súmula vinculante;
III - os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos;
IV - os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional;
V - a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.”
7 - Neste sentido ver, por todos: BÜHRING, Marcia Andrea; CASTALDELLO, Janaine Longui. O artigo 285-A do CPC e a discussão acerca da constitucionalidade da norma (Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3695-5). Disponível em: https://silo.tips/download/o-artigo-285a-do-cpc-e-a-discussao-acerca-da-constitucionalidade-da-norma-aao-di. Acesso em: 23/10/2020.
8 - “Art. 9º Não se proferirá decisão contra uma das partes sem que ela seja previamente ouvida.”
9 - “Art. 10. O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício.”
10 - “Art. 487. Parágrafo único. Ressalvada a hipótese do § 1º do art. 332 , a prescrição e a decadência não serão reconhecidas sem que antes seja dada às partes oportunidade de manifestar-se.”
11 - Quanto ao isto, ver o excelente histórico feito por FREDIE DIDIER (2017, p. 672-9) da possibilidade de reconhecimento de ofício de prescrição e decadência no ordenamento pátrio.
12 - Em sentido diverso, defendendo a desnecessidade de manifestação do autor, veja-se HUMBERTO THEODORO JÚNIOR (p. 768): “O julgamento liminar, nos moldes traçados pelo art. 332, não agride o devido processo legal, no tocante às exigências do contraditório e ampla defesa. A previsão de um juízo de retratação e do recurso de apelação assegura ao autor, com a necessária adequação, um contraditório suficiente para o amplo debate em torno da questão de direito enfrentada e solucionada in limine litis”.
13 - Também em sentido diverso, porém defendendo ser necessário o contraditório do autor em todas as possibilidades de improcedência prima facie, inclusive a do § 1º do art. 332, veja-se TRÍCIA NAVARRO XAVIER CABRAL: “Em suma, a norma que se extrai de todo o conjunto em que se expressa o novo Código de Processo Civil, após a devida interpretação sistemática, é a que impõe o contraditório prévio com o autor nas hipóteses do art. 332, caput e § 1.º, isto é, em todos os casos de improcedência liminar”.
14 - “Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.”
15 - O que se justifica, como afirma HUMBERTO THEODORO JUNIOR (p.768), pois o réu não só possui “interesse manifesto (…) sobre a solução do litígio de que é parte, mas principalmente para que possa se prevalecer da exceção de coisa julgada, caso o autor, maliciosamente, venha a propor, outra vez, a causa perante outro juízo”.
16 - “Art. 241. Transitada em julgado a sentença de mérito proferida em favor do réu antes da citação, incumbe ao escrivão ou ao chefe de secretaria comunicar-lhe o resultado do julgamento.”
17 - “Art. 940. Aquele que demandar por dívida já paga, no todo ou em parte, sem ressalvar as quantias recebidas ou pedir mais do que for devido, ficará obrigado a pagar ao devedor, no primeiro caso, o dobro do que houver cobrado e, no segundo, o equivalente do que dele exigir, salvo se houver prescrição.”
18 - MARCO ANTONIO DOS SANTOS RODRIGUES levanta, ainda, interessante observação, ao propugnar no mesmo sentido do aqui dito: “[V]erifica-se que foi suprimida uma instância decisória, prejudicnado o réu, que não teve como contribuir à formação da sentença.
Note-se, ainda, que a ofensa ao contraditório parece se agravar, ao se recordar que, caso a reforma da sentença seja à unanimidade de votos, não serão mais cabíveis outros recursos para rediscutir a justiça da decisão, mas apenas recursos especial e extraordinário, e somente se o acórdão supostamente tiver violado dispositivo de lei federal ou da Constituição da República, respectivamente, sendo que tais meacnismos de impugnação possuem uma série de exigências que limitam bastante sua admissibilidade”.
19 - Lei 13300/16, que disciplina o Mandado de Injunção: “Art. 6º A petição inicial será desde logo indeferida quando a impetração for manifestamente incabível ou manifestamente improcedente.
Parágrafo único. Da decisão de relator que indeferir a petição inicial, caberá agravo, em 5 dias, para o órgão colegiado competente para o julgamento da impetração”.
20 - FREDIE DIDIER (p. 680) traz-nos como exemplo: “demanda para reconhecimento de usucapião de bem público, pedir autorização para matar alguém ou determinar que o Brasil declare guerra aos EUA; também serve de exemplo o pedido que contrarie expressamente texto normativo não reputado inconstitucional”.
21 - “Art. 4º Quando a lei for omissa, o juiz decidirá de acordo coma analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”.