NOÇÕES DE SEGURANÇA
Apenas se puder prever as consequências que se vincularão aos seus atos é que o homem poderá decidir cientemente. É a necessidade de poder assentar-se sobre algo reconhecido como estável, ou relativamente estável, o que permite vislumbrar com alguma previsibilidade o futuro: é o que enseja projetar e iniciar, consequentemente – e não aleatoriamente, ao mero sabor do acaso -, comportamentos cujos futuros são esperáveis a médio e longo prazo.
A garantia que a segurança sugere é a de que, ainda que a vida seja essencialmente mutável, será sempre necessário – no que diz com a ordem jurídica ou com os direitos individuais – que tanto quanto possível, uma parte do hoje seja igual ao ontem ou uma fração do amanhã seja igual ao hoje, de tal sorte que a cadeia do tempo se constitua sempre com esse quid de permanência do velho no novo.
O direito de ser protegido decorre do cumprimento dos limites postos pelo direito, ao que se chama confiança. Não há direito que não dure, que seja instantâneo e surpreendente, e planejar é parte da liberdade, fundamento da razão oposta ao arbítrio. Não há direito que não tutele a autodeterminação humana. E todas as formas e procedimentos, ainda que duradouras, são controladas materialmente pela dignidade, universal e geral, na qual se identifica a coerência que une as instâncias do tempo e faz admitir a circunstância, sem injustiça. Nisso consiste a segurança jurídica.
ESTADO DE DIREITO E SEGURANÇA JURÍDICA
A segurança de que se fala está relacionada com o direito, tomada esta palavra quer na acepção de direito objetivo, como conjunto de normas editadas ou reconhecidas pelo Estado para ordenar a vida em sociedade, quer como direito subjetivo, ou seja, como vantagem de que os indivíduos são titulares.
A consagração do Estado de Direito implica na garantia dos direitos e liberdades fundamentais que, para além da proteção da liberdade individual, projeta a exigência de interferência estatal necessariamente limitada à segurança jurídica bem como à confiança. A essencialidade do postulado da proteção da confiança e a necessidade de se respeitarem situações consolidadas no tempo, amparadas pela boa-fé do cidadão, são fatores a que o intérprete constitucional não pode ficar alheio, já que correspondem ao próprio fim do Estado de Direito, fundamento constitucional da segurança jurídica.
Assim, a segurança pode ser considerada a partir da sua relação com os elementos objetivos da ordem jurídica, garantias à estabilidade jurídica, segurança nas orientações e na realização do direito, atrelada aos elementos de ordem subjetiva, como a possibilidade de previsibilidade acerca dos indivíduos sobre os efeitos jurídicos que decorrem dos atos do Poder Público, em todas as esferas dos Poderes. Demanda a segurança jurídica transparência dos atos do poder, racionalidade, clareza de idéias e palavras e fiabilidade.
Há segurança jurídica diante de leis estáveis, claras, prospectivas, que protegem direitos adquiridos, provindos da responsabilidade dos agentes estatais que os tenham praticado, que devem assegurar não só sejam que os atos estatais decorrentes de fundamentação jurídica vigente, como, também, que a eficácia prevista das normas aplicadas seja verificada pragmaticamente, no cotejo entre ordem positiva e mundo fático.
A segurança jurídica é, pois, um direito do indivíduo contra o Estado, e, onde quer que o absolutismo seja mais forte, menos segurança jurídica é verificada, especialmente no direito público, no qual a questão da intervenção estatal é elemento essencial. Pode-se dizer que a sedimentação do direito, e a segurança, advém da força da tradição, normalmente ínsita ao direito privado, ou decorre da ampliação das garantias da cidadania contra o absolutismo estatal; mas foi a solidificação do direito privado a causa da permanência do direito, ao longo do tempo, e, em especial, a inserção da racionalidade no direito, contrária a exclusivas razões de império.
O princípio da segurança jurídica é um subprincípio do Estado de Direito e do princípio da legalidade dos atos da Administração Pública, devendo-se levar em conta as garantias fundamentais da ampla defesa e do contraditório, em sua incidência no âmbito dos processos administrativos (STF - RE 636553/RS).
A segurança jurídica veda a retroatividade da lei, bem como a aplicação imediata de mudança de entendimento jurisprudencial para fatos ocorridos sob a vigência de outra jurisprudência (TRF/3ª Região – ApCiv 0000644-93.2020.4.03.9999). Pois, ao lado do prestígio do precedente, há o prestígio da segurança jurídica, princípio segundo o qual a jurisprudência não pode causar uma surpresa ao jurisdicionado a partir de modificação do panorama jurídico (STF - AR 2422/DF). Segurança jurídica e surpresa não combinam, resolvendo-se os conflitos e as tensões sempre em prol do primeiro valor. A aplicação imediata de nova lei agride o princípio da proteção da confiança, dimensão subjetiva do princípio da segurança jurídica, tornando incerto o que certo, instável o que o texto constitucional buscou preservar (STF - RE 633703/MG).
O que se revela incontroverso, nesse contexto, é que a exigência de segurança jurídica, enquanto expressão do Estado Democrático de Direito, mostra-se impregnada de elevado conteúdo ético, social e jurídico, projetando-se sobre as relações jurídicas, mesmo as de direito público, em ordem a viabilizar a incidência desse mesmo princípio sobre comportamentos de qualquer dos Poderes ou órgãos do Estado, para que se preservem, desse modo, situações consolidadas (STF - RE 649154/MG).
CONSTITUCIONALIZAÇÃO PÓS POSITIVISTA DO DIREITO
O fenômeno da Constitucionalização do Direito, pelo qual se reconheceu a supremacia material e axiológica da Constituição, permitiu que o princípio implícito da boa-fé objetiva, e da moralidade, tenha âmbito de aplicação também nas relações estabelecidas entre a Administração Pública e seus administrados. Assim, segurança jurídica, e a proteção da confiança, surge como limite à adoção de comportamentos contraditórios, na medida em que impõe o dever bilateral de lealdade entre Estado e cidadão.
É possível constatar que a segurança jurídica deitava raízes i) em uma teoria do Estado de Direito e da legalidade baseada em uma rígida separação de poderes e na distinção entre o âmbito político e o jurídico, ii) na adoção do conceito de norma jurídica enquanto regra e de ordenamento como um conjunto de regras, iii) no fundamento filosófico do paradigma da filosofia da consciência, iv) na redução do direito a uma teoria analítica de cunho científico e v) em uma teoria hermenêutica racionalista e subdividida em etapas cientificamente demonstráveis.
Há que ressaltar a diferença entre texto jurídico e norma jurídica, assim como a relação entre Direito e Linguagem, com a superação do modelo subjetivista da relação sujeito-objeto adotada pela Filosofia da Consciência, que fez surgir, no direito, uma crise de dupla face, cujas características são a interpretação da lei baseada no patrimonialismo novecentista do Código de Beviláqua, e a não recepção dos aportes teóricos da reviravolta linguístico-pragmática de meados do século XX.
A crítica ao racionalismo e a emergência do paradigma da linguagem levaram à denúncia da dimensão existencial e histórica do sujeito, que não mais se apresenta como razão pura, neutra e imparcial, das época dos códigos, objetos de culto da hermenêutica jurídica, cuja normatividade, atrelada a primazia legislativa da era moderna, ensejava uma separação entre direito e existência, daí se dizer que o paradigma linguístico é o que devolve à atenção do intérprete a mais que o dever passivo de implementar o ativismo legislativo da consciência.
O neoconstitucionalismo sustenta a tese da conexão necessária, identificativa e/ou justificativa, entre direito e moral, contrapondo-se ao positivismo metodológico. Como pressuposto lógico da adoção da ideia de que o Direito é composto de regras e princípios, exsurge a necessidade de utilização da técnica interpretativa da ponderação de princípios, como alternativa ao positivismo, com ganhos ao processo de constitucionalização e concretização dos direitos fundamentais. O neoconstitucionalismo busca ir além da legalidade estrita, mas não despreza o direito posto; procura empreender uma leitura moral do Direito, mas sem recorrer a categorias metafísicas”; e, mediante o reconhecimento da força normativa da constituição, também promove a expansão da jurisdição constitucional e o desenvolvimento de uma nova dogmática da interpretação constitucional.
RELATIVIDADE DA SEGURANÇA JURÍDICA
Quanto à normatividade dos princípios, diz-se que a segurança jurídica, a seu turno, não se trata de princípio absoluto no ordenamento jurídico, contudo, o princípio da segurança jurídica está na base do ordenamento, é da essência do Direito, configurando-se, por conseguinte, em norma fundamental, no que tange aos efeitos jurídicos de atos dos poderes públicos, tanto nas esferas do Legislativo e Judiciário, como também no âmbito do Poder Executivo.
Uma das principais características dos direitos fundamentais, enquanto princípios que são, é a sua relatividade, ou seja, por se tratarem de princípios constitucionalmente previstos, os direitos fundamentais não se revestem de caráter absoluto, em caso de tensão entre eles cabe o sopesamento de um sobre o outro para que se decida daquele mais adequado, pois os direitos e garantias fundamentais consagrados pela Constituição Federal não são ilimitados, uma vez que encontram seus limites nos demais direitos igualmente consagrados pela carta Magna, e, por causa disso, relativiza-se o princípio da segurança jurídica para i. relativizar atos legais praticados no passado, ii. para manter a eficácia de atos ilegais no presente, ou, iii. para o projetar no futuro a eficácia de atos administrativos; mas, vale destacar, mediante a devida ponderação, quando a relevância dos demais direitos fundamentais em conflito assim determinar em adequado balanceamento proporcional.
OS ATOS ESTATAIS E SUA MUTABILIDADE
O direito adquirido e a confiança legítima, assim, atuam como recurso para limitar a retroatividade das leis que passam por constantes modificações, mas devem garantir a preservação das situações jurídicas já consolidadas no tempo, e essa é umas das principais fontes da segurança de um ordenamento, a qual exige do poder público a boa-fé nas relações com os particulares e o respeito pela confiança que os indivíduos depositam na estabilidade e continuidade do ordenamento jurídico.
De tal maneira, os atos estatais desfrutam de uma propensa imutabilidade motivada por sua auto-vinculação à lei, por ser o Estado autor do ato, e da obrigatoriedade externa de tais atos diante de seus destinatários. A proteção da confiança, portanto, traduz-se num princípio de dever-poder de qualquer administrador público zelar pela estabilidade decorrente de uma relação de mútua confiança com seus administrados, cuja vinculação e tendencia a estabilidade decorrem de um parâmetro jurídico de controle.
Trata-se de uma relação que se desenvolve sob a orientação da lei, e, por isso, por ser a expressão da vontade observável do Estado, liga Estado e cidadão no ajuste de seus comportamentos com ares de definitividade, fazendo-se presente nas expectativas que os sujeitos nutrem em face do sistema jurídico.
O PRINCÍPIO DA CONFIANÇA
O princípio da confiança gera mais que um estado subjetivo de eticidade, erige-se em fonte de normas objetivas. Sem a confiança que decorre da auto-vinculação jurídica do estado, passar-se-ia a exigir comportamentos éticos dos particulares e não se faria a mesma exigência do Estado, lesando o aspecto subjetivo do princípio da segurança, que representa também limitação aos poderes públicos, pois implica na proteção das legítimas expectativas dos particulares frente às ações do estado, o que se evidencia em toda e qualquer situação de transformação ou mudança de atitude estatal.
O princípio da proteção à confiança é acolhido como regra superior de Direito, abrangendo vasta gama de situações, pertinentes (i) à invalidação de atos administrativos ilegais, (ii) à mudança de regime jurídico sem prévia adoção de medidas transitórias, (iii) à responsabilidade extracontratual do Estado, no campo do direito administrativo econômico, pela ruptura de promessas firmes e compromissos assumidos, como, por exemplo, na concessão de subvenções públicas, bem como (iv) especialmente nos casos de anulação de atos administrativos geradores de benefícios para seus destinatários de boa-fé.
O princípio da moralidade exige que a administração e seus agentes atuem em conformidade com princípios éticos aceitáveis socialmente. Moralidade significa correção de atitudes, boa administração e eficiência. A norma jurídica é norma moral. O Direito depende sempre de uma convicção amplamente difundida de que há uma obrigação moral a obedecer. O sistema jurídico sempre buscará demonstrar, para que continue existindo, uma relação mínima e específica com a moral vigente.
A moralidade administrativa serve, pois, para impedir que os dirigentes estatais se desviem das finalidades do Estado de Direito, empregando seus poderes públicos no intuito de se afastar das vontades estatais democraticamente legitimadas, impondo que a moralidade ínsita a legalidade se faça observar, teleologicamente, quando o poder público se distancia da lei estrita, isto é, quando age e/ou muda de atitude, ilegalmente, diante de comportamentos conformes do administrados geradores de expectativas legítimas. É a moralidade finalística do ato administrativo, congruente à legalidade, que desconsidera a absolutez da regra, e a subsunção que a fundamenta, para indagar as suas finalidades implícitas e assegurar direitos por vezes solapados pela fundamentação legalista. Afirma-se, destarte, que é a ambiência moral que se espraia na onipresença do direito o que permite, funcionalmente, controlar a eficácia concreta do ato administrativo, não na sua fundamentação ostensiva, mas na sua finalidade essencial, igualmente vinculante. À vista disso, é que a segurança jurídica tutela expectativas moralmente vinculantes, mesmo que só aparentemente legais, sendo essa a fundamentação da legitimidade de expectativas que, essencialmente ilegais, ainda assim, devem ser executadas pelo Estado, como forma de preservar comportamentos sedimentados no tempo.
Como conseqüência da proteção às legítimas expectativas surge excepcionalmente o dever da Administração não revogar atos lícitos, porém inoportunos, e não invalidar atos ilegais se já consolidadas certas situações, numa tradução da eficácia negativa do princípio da confiança, fundada na teoria da aparência e na presunção de legitimidade de atos administrativos, ou seja, na crença do particular de que o Estado atua conforme as normas jurídicas, isto é, no comportamento particular conforme ao direito frente ao direito demonstrado e/ou concretizado pela Administração, que nem sempre é verdadeiramente compatível com o ordenamento jurídico.
Objetivamente gerada a confiança por atos, palavras ou comportamentos estatais, esta se incorpora ao patrimônio jurídico daqueles a quem são dirigidos esses atos, palavras ou comportamentos. Reconhece-se que a segurança jurídica, enquanto garantia dada ao indivíduo de que sua pessoa, seus bens e seus direitos não serão objeto de ataques violentos, ou de que, se esses ataques vierem a produzir-se, a sociedade lhe assegurará proteção e reparação.
Existem duas dimensões de proteção às legítimas expectativas dos contribuintes, a saber: a) a prévia imposição do devido processo legal, e, b) a proteção diante de legítimas expectativas criadas pelo comportamento da administração, incluindo a exigência de proporcionalidade dos atos estatais.
O DEVIDO PROCESSO LEGAL E A LEGITIMIDADE DOS ATOS ESTATAIS
O Estado não pode, nos procedimentos administrativos perante ele instaurados, transgredir postulados básicos como a garantia do “due process of law”, que representa indisponível prerrogativa de índole constitucional assegurada à generalidade das pessoas. O Estado não pode, em tema de restrição à esfera jurídica de qualquer pessoa, exercer a sua autoridade de maneira abusiva ou arbitrária, desconsiderando, no exercício de sua atividade, o postulado da plenitude de defesa. O processo não é apenas instrumento técnico, mas principalmente ético, tendente à pacificação social. E o aspecto substancial da garantia do devido processo legal abarca a razoabilidade, a finalidade e a justiça da norma, possibilitando que o cidadão exija que o Estado não exerça os seus poderes arbitrariamente. E ainda, a Constituição não mais limita o contraditório e a ampla defesa aos processos administrativos punitivos, mas estende as garantias a todos os processos administrativos, não-punitivos e punitivos, ainda que neles não haja acusados, mas simplesmente litigantes. O processo administrativo afigura-se, pois, num instrumento legitimador da atividade administrativa que, ao mesmo tempo, materializa a participação democrática na gestão da coisa pública e permite a obtenção de uma atuação administrativa mais clarividente e um melhor conteúdo das decisões administrativas.
Os atos administrativos presumem-se ser legítimos, a bem da primazia do interesse público, uma vez que decorrem da lei, material e procedimentalmente, possuindo veracidade os fatos alegados pela Administração Pública. O procedimento de formação dos atos administrativos dá ao mesmo a certeza típica de títulos judiciais, tanto que são auto-executáveis, sem a intervenção do poder judiciário, porque correspondem eles a um objeto previamente definido pela lei, a fim de produzir determinados resultados, previamente pretendidos pela legislação, razão pela qual até que se prove o contrário, seus efeitos são verdadeiros, isto é, dotados de veracidade como correspondência com a legalidade, e, por isso se presumem legítimos.
A noção de veracidade, e presunção de legitimidade dos atos do poder público, tem como base a mera legalidade, essencialmente formal e distinta da verdade real, podendo ser contrastada com o mundo dos fatos propriamente dito, já que a administração não tem o poder de alegar sem o mínimo lastro probatório, porque, além da legalidade, o poder público está vinculado do princípio da motivação dosa atos administrativos. Nos casos de prova diabólica, entendida aquela impossível de ser realizada pelo particular, é da administração o ônus da prova dos pressupostos de legalidade do ato administrativo, por ser ela a causadora da modificação jurídica que reflete na vida do administrado, e, também, por ser inadmissível a realização do devido processo legal, o contraditório e ampla defesa, vedada a pratica de ato administrativo como cheque em branco, condicionado que é pelo prévio devido processo administrativo, sem perda do acesso ao poder judiciário.
Nada obstante, liberada a ação do estado da estrita legalidade, tal incongruência não pode ser imputada em prejuízo do administrado, que, por força da segurança jurídica, tem tuteladas suas legitimas expectativas, nos casos de descompasso evidente da ação estatal com a lei, como, de igual forma, nos casos de mera mudança de posicionamento do poder público.
PROPORCIONALIDADE E AS ALTERNATIVAS A ANULAÇÃO DOS ATOS ADMINISTRATIVOS
A anulação poderá ser a medida que trará mais benefícios para a manutenção do Estado de Direito. Mas, há casos em que o desfazimento dos efeitos pretéritos do ato ilegal é algo impensável. Seja porque a situação se tornou irreversível, seja porque a atribuição de efeitos pretéritos à invalidação originaria uma situação indesejada, por ser excessivamente injusta, por ter gerado direitos a terceiros ou ter transcorrido tempo suficiente à constituição definitiva de determinada situação, ponderações igualmente inerentes ao conceito de interesse público.
Pode-se entender a preservação de situações constituídas sob fundamentação ilegal como malferimento aparente da legalidade estrita, mas, vista a questão de outra maneira, entender-se-á que se trata sempre do resultado de uma ponderação que conclui no sentido da relativização da legalidade, em prol de outro princípio ou bem jurídico, sendo isso o que causa estranheza: ter de relativizar a legalidade.
O problema, metodologicamente, diz respeito mais à distinção entre subsunção e ponderação que outra qualquer causa. Entre desconsiderar, ou não, o manto da legalidade estrita, para, mediante a proporcionalidade, agregar a cada situação todos os valores envolvidos, além da legalidade, com conclusão por outra medida que não a simples anulação, isto é do que se trata. Outras medidas poderão se revelar mais adequadas, sem que, com isso, esteja-se violando o ordenamento, pois, como se quer provar, a relativização da legalidade também implica na relatividade de todos os demais direitos que com ela conflitarem, inclusive a segurança jurídica, do contrário não se trataria de uma essencial ponderação.
Logo, o amortecimento da mudança e a permanência do ordenamento são valores a serem preservados quando se está diante de um ato ilegal, por força mesmo da face objetiva da segurança jurídica, que remete a solução dos problemas ao aspecto atemporal, e básico, do ordenamento, sede de outros valores igualmente relevantes para a estabilidade social, que não a só legalidade.
Não se trata de normas obscuras ou vagas, mas de regras superáveis em si, tendo em vista a pluralidade de valores em questão, num cenário de ruptura com o positivismo, isto é, é o pós positivismo, e o reconhecimento da normatividade dos princípios, o que permite a adoção de medidas menos gravosas que a anulação, como são a revogação, a convalidação ou até mesmo a manutenção de situações que se tornaram ilegais, seja concomitante ou posteriormente à sua prática e relação com o Estado.
Não se pode barrar o processo de justificação do direito em hipótese alguma. É sempre possível inaugurar o raciocínio que conduz a positivação de uma regra, e, isso, é o que a metodologia subsuntiva pretende evitar, sendo esta também a razão pela qual a legalidade estrita alçou tamanha relevância em alguns campos do direito, como no direito administrativo, por exemplo. A obrigatoriedade da subsunção é o que explica a cisão entre casos fáceis e casos difíceis, como se houvesse uma determinação no sentido da primazia da mesma, o que é premissa falaciosa no contexto do neoconstitucionalismo; do contrário a possibilidade de universalização de critérios normativos que legitimaria decisões ficaria impossibilitada, em favor de um apriorismo que reputaria legítima tão somente a solução que não desconsiderasse a rigidez estrutural das regras, e não cedesse espaço à aplicação de princípios, o que não se admite, pois, se assim fosse, contrariar-se-ia a própria segurança jurídica, que fornece a imagem valorativa que determina a constância e a estabilidade do sistema, extraída da comunhão racionalizada dos princípios informadores das decisões legislativas.
Assim, decisões legalistas tomadas mediante subsunção obstariam a consideração objetiva da segurança jurídica e o conjunto sedimentado do direito. O aspecto axiológico comum e duradouro do ordenamento, que conflita com a legalidade, é, portanto, o elemento objetivo que justifica porque não se anulam, sempre, as decisões consideradas ilegais, para manter a segurança jurídica. Igual raciocínio se aplica aos casos de desfazimento discricionário de atos administrativos, como são a revogação e a convalidação, por exemplo, ou seja, é o exame, conjunto e proporcional, da legalidade com outros valores o que permitirá decidir o destino de condutas estatais, sejam ou não ilegais, dizendo da retirada ou mero ajuste dos atos de estado.
A SEGURANÇA JURÍDICA NO DIREITO BRASILEIRO
Afirma-se que a segurança jurídica, o teor das garantias que transporta, é uma norma-princípio que exige, dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, a adoção de comportamentos que contribuam mais para a existência, em benefício dos cidadãos e na sua perspectiva, de um estado de confiabilidade e de calculabilidade jurídicas, com base na sua cognoscibilidade, por meio da controlabilidade jurídico-racional das estruturas argumentativas reconstrutivas de normas gerais e individuais, como instrumento garantidor do respeito à sua capacidade de – sem engano, frustração, surpresa e arbitrariedade – plasmar digna e responsavelmente o seu presente e fazer um planejamento estratégico juridicamente informado do seu futuro.
Em seu preâmbulo, a Constituição define a segurança como um dos valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos. Na tradição do direito constitucional brasileiro, protege-se o direito adquirido, a coisa julgada e o ato jurídico perfeito contra alterações legislativas, como está disposto no art. 5º, inciso XXXVI, da atual Constituição Federal.
Na Lei do Processo Administrativo (Lei n.º 9.784/99), a segurança jurídica é arrolada entre os princípios a que se submete a Administração Pública, numa versão ampliada do elenco consignado no art. 37 da Constituição Federal (art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência).
Todas as disposições da lei visam esclarecer e instrumentalizar a efetivação do direito à segurança jurídica, seja como direito objetivo, e, portanto, segurança como a existência de ordenamento jurídico permanente, transparente, público e observável; seja como direito subjetivo, para o que a dimensão fática da segurança jurídica ganha relevo, bem como a noção de proporcionalidade das medidas estatais (art. 2º, Lei n.º 9784/99), dentre elas: I - atuação conforme a lei e o Direito; II - atendimento a fins de interesse geral; III - objetividade no atendimento do interesse público; IV - atuação segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé; V – comunicação e divulgação oficial dos atos administrativos, especialmente nos processos considerados punitivos; VI - imposição de obrigações, restrições e sanções em medida não superior àquelas estritamente necessárias ao atendimento do interesse público; VII - indicação dos pressupostos de fato e de direito que determinarem a decisão; VIII – observância das formalidades essenciais à garantia dos direitos dos administrados; IX - adoção de formas simples, suficientes para propiciar adequado grau de certeza, segurança e respeito aos direitos dos administrados; XIII - interpretação da norma administrativa da forma que melhor garanta o atendimento do fim público a que se dirige, vedada aplicação retroativa de nova interpretação.
A reunião de processos para julgamento conjunto, por conexão ou continência, é exigência de uniformidade, evitamento de decisões contraditórias sobre casos semelhantes, e, portanto, manifestação de segurança juridica (arts. 55 e 56, CPC/15).
A exigência constitucional (art. 93, IX e X, CF/88) de motivação das decisões, tanto cíveis como penais, controla o poder estatal e assegura segurança aos jurisdicionados (art. 489, CPC e art. 315, CPP).
A segurança jurídica está intrinsecamente ligada a estabilidade, a previsibilidade das consequências jurídicas, segurança de orientação e realização do direito. Daí surge a necessidade de estabilidade da ordem jurídica, integridade e coerência da jurisprudência, pois as decisões judiciais devem ser contínuas para que tenha eficácia junto aos jurisdicionados, traduzindo-se a estabilidade, também, na continuidade e o respeito às decisões judiciais, ou melhor, aos precedentes (arts. 926 e 927, CPC).
A lei processual determina a instauração de incidente de demandas repetitivas, com base na segurança jurídica e economia processual (art. 976, CPC).
Junto aos tribunais superiores, a segurança jurídica determina reunião de processos repetitivos para julgamento em bloco, bem como restringe a admissão de causas em que inexista repercussão geral, para os efeitos de instruir o julgamento isonômico das decisões das demais causas de igual natureza (art. 928 e 1035, CPC).
O conceito de preceito fundamental (art. 102, § 1º, CF/88 c/c art. 1º da Lei n.º 9.882/99), previsto como objeto da ação de descumprimento de preceito fundamental na Constituição Federal, é, em si, visto como elemento de estabilidade do ordenamento, e, portanto, de segurança jurídica, na medida em que não depende da sucessão ou de conflitos intertemporais de leis; e controla atos do poder público apenas com base no conceito de fundamentalidade extraido da ideia etérea da Constitiução, norma rígida de sobredireito com a finalidade de manutenção da estrutura política do Estado Democrático de Direito, sem referência a determinado topos constitucional especial, isto é, não limitada a interpretação isolada de dispositivos da Carta Constitucional, sendo, desta forma, um elemento de controle principiológico atemporal da constitucionalidade dos atos do poder púbico (Lei n.º 9882/99).
A segurança jurídica é arguida para apressar o julgamento de ações de controle concentrado de constitucionalidade (art. 12, Lei n.º 9868/99). E, tendo em vista razões de segurança jurídica, poder-se-á restringir os efeitos da declaração de constitucionalidade ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado (art. 27, Lei n.º 9868/99).
Processualmente, a segurança jurídica já foi causa de nulidade de sentença condicional que deixou a lide sem solução.
Determina-se a estabilização da lide, para oportuno saneamento da lide e definição dos limites da causalidade e da sucumbência, prestigiando os princípios da segurança jurídica e da não surpresa.
Há segurança jurídica quando se reúnem suficientes elementos probatórios para a decisão.
A segurança jurídica fundamenta a impossibilidade de aplicação de nova lei, quando a sentença foi publicada em data anterior, por força do princípio da atualidade da lei processual.
A segurança jurídica já impediu o recolhimento a maior de valores, quando o recolhimento feito, a época do pagamento, era suficiente.
Também a imprescritibilidade fere os princípios da segurança jurídica e da ampla defesa. A prescrição, em todas as suas espécies, seja material ou processual, é instituto regido pela exigência de segurança jurídica.
Segundo o Decreto-lei n.º 4657/42, as autoridades públicas devem atuar para aumentar a segurança jurídica na aplicação das normas, inclusive por meio de regulamentos, súmulas administrativas e respostas a consultas (art. 30, Decreto-lei n. 4657/42), respeitando a época de suas respectivas edições. A bem da segurança jurídica, não se permite julgamento administrativo com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão (art. 20, Decreto-lei n. 4657/42), que devem ser indicadas na decisão (art. 21).
A decisão administrativa, controladora ou judicial que estabelecer interpretação ou orientação nova sobre norma de conteúdo indeterminado, impondo novo dever ou novo condicionamento de direito, deverá prever regime de transição quando indispensável para que o novo dever ou condicionamento de direito seja cumprido de modo proporcional, equânime e eficiente e sem prejuízo aos interesses gerais (art. 23, Decreto-lei n.º 4657/42), devendo ser consideradas as orientações gerais da época, sendo vedado que, com base em mudança posterior de orientação geral, se declarem inválidas situações plenamente constituídas (art. 24, Decreto-lei n.º 4657/42).
E, por fim, vê-se que a administração deve anular seus próprios atos, quando eivados de vício de legalidade, e pode revogá-los por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos. O direito da Administração de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai em cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé, e, em decisão na qual se evidencie não acarretarem lesão ao interesse público nem prejuízo a terceiros, os atos que apresentarem defeitos sanáveis poderão ser convalidados pela própria Administração (arts. 53-55 da Lei n.º 9784/99).
CONCLUSÕES
Já se pode exercer a faculdade de planejamento de forma muito mais racional que antes. Rompeu-se com o paradigma positivista e se autoriza o uso da razão principiológica, dotada de normatividade, no direito.
A segurança jurídica mantem a estabilidade objetiva do direito e assegura a fruição de direitos subjetivos, com duas dimensões.
Diante dos movimentos retrospectivos e prospectivos do direito, com a intertemporalidade das leis e decisões estatais, é preciso reconhecer um ponto de controle atemporal, responsável pela imutabilidade progressiva do direito, acima das necessidades pontuais de cada um dos sistemas existentes no ordenamento, ao que se denomina segurança jurídica, também.
A segurança jurídica, bem como a legalidade, são direitos relativos, o que permite suas relativizações, com consequências práticas no mundo, como, por exemplo a modulação das medidas adotadas diante da ilegalidade ou inconveniência de atos estatais.
A referência ao sistema como um todo pode aconselhar medidas que, igualmente, optem por privilegiar as expectativas dos particulares no estado, com base no dever estatal de proporcionar uma atmosfera firme e dirigente que não desmorona a cada caso, sendo o aspecto objetivo da segurança jurídica, e não o contrário, o que determina a manutenção de situações aparentemente ilegais, seja por gerar benefícios a terceiros ou pelo decurso do tempo, fundamentada na abrangência universal da moralidade, que vincula direiros e deveres do Estado e dos administrados.
O devido processo legal é o meio que legitima a ação estatal e assegura a participação democrática na formação dos atos administrativos, controla privilégios e faz compactuar o direito com a racionalidade, a justiça, os valores, permitindo que as decisões estatais possam ser consideradas racionais e igualitárias, a partir do inter-relacionamento da casuística com a base imutável do ordenamento jurídico, e sua axiologia, denominada de segurança jurídica.
É a relatividade dos princípios, a era dos princípios, o ocaso da subsunção obrigatória e a admissão da ponderação como método de aplicação do direito, o que dita a modulação das alternativas de solução dos casos de incongruência aparente entre direito e fatos, sem nunca desconsiderar o dever de estabilidade e publicidade atribuído ao Estado, e as expectativas que surgem em favor dos administrados, sejam em razão da ponderação de outros valores, seja pela constância dos benefícios gerados as pessoas, ou pelo decurso do tempo, que tornam, situações identificadas com a atemporalidade que informa a estabilidade do ordenamento.
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