A desconsideração inversa da personalidade jurídica.

20/01/2021 às 15:52
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O mau uso da personalidade jurídica pode criar obstáculos à pretensão do credor, e isso deve ser coibido pelo direito, o que vem sendo feito através da desconsideração da personalidade jurídica, inclusive em caráter inverso, que é tema desse nosso ensaio.

I – Introdução.

Embora importante para as atividades econômicas, negociais e empresariais, a personalidade jurídica acabou por ser usada, muitas vezes, como impeditivo ou obstáculo ao ressarcimento do credor. A pessoa jurídica, devedora e insolvente, encobria sócios que dela abusavam, sugando seus recursos, deixando-a à míngua, frustrando seus credores. Veio daí a teoria que visava desconsiderar os efeitos da personificação, para imputar a responsabilidade aos sócios que se escondiam sob seu véu. Essa teoria ganhou vida e foi positivada no direito pátrio, no Código de Defesa do Consumidor e no Código Civil, entre outros diplomas legais.

Mas, como o ser humano é mestre em pensar e fazer coisa errada, logo a situação se inverteu, passando o devedor a utilizar a pessoa jurídica para esconder seus bens. Era o mau uso da personalidade em ação novamente, mas em via contrária. E com isso, vai surgir uma nova teoria, da desconsideração inversa da personalidade jurídica, que é alvo desse nosso pequeno ensaio.

II – A desconsideração da personalidade jurídica.

As obrigações de uma pessoa jurídica empresária não deve, em princípio, ser estendida aos sócios de responsabilidade limitada. Por força do art. 45 do Código Civil, a existência da pessoa jurídica se dá com o registro, no órgão competente, de seus atos constitutivos. A sociedade adquire personalidade jurídica com a inscrição, no registro próprio e na forma da lei, dos seus atos constitutivos (CC, art. 985). O empresário e a sociedade empresária vinculam-se ao Registro Público de Empresas Mercantis a cargo das Juntas Comerciais, e a sociedade simples ao Registro Civil das Pessoas Jurídicas, o qual deverá obedecer às normas fixadas para aquele registro, se a sociedade simples adotar um dos tipos de sociedade empresária (CC, art. 1.150).

Ao adquirir personalidade própria, sociedade empresária torna-se uma pessoa (jurídica) cuja existência não se confunde com a de seus sócios, associados, instituidores ou administradores (art. 49-A do Código Civil), revelando os princípios da separação e da autonomia patrimonial.

A exceção, reconhecida em nosso ordenamento jurídico, fica por conta da desconsideração da personalidade jurídica, que é um instrumento próprio para transpor ou afastar a personalidade jurídica da pessoa jurídica, e responsabilizar diretamente o sócio por trás dela, nos casos previstos e autorizados em lei.

A atribuição da personalidade à sociedade empresária implica, entre outros fatores, a autonomia patrimonial e a separação da pessoa da sociedade e das pessoas dos seus sócios, de forma que a obrigação contraída pela sociedade não passa para seus sócios, devendo ser saldada pela própria sociedade, com o seu patrimônio. Todavia, em alguns casos, a personalidade jurídica da sociedade empresária constitui obstáculo ao ressarcimento do credor, fazendo surgir teorias buscando afastar essa autonomia da pessoa jurídica para responsabilizar diretamente o sócio, às quais se denominou teoria da desconsideração da personalidade jurídica. Por essa teoria, o juiz estaria autorizado, em certas e determinadas situações, a desconsiderar momentaneamente a personalidade jurídica da sociedade, transferindo a obrigação para os sócios.

Hoje contamos com a positivação daquela teoria no ordenamento jurídico, como se vê do art. 28 do Código de defesa do Consumidor ou do art. 50 do Código Civil, entre outros.

II – O incidente de desconsideração da personalidade jurídica.

Para efetivar processualmente a desconsideração da personalidade jurídica, o CPC/2015 estabeleceu, nos arts. 133 a 137, um incidente processual, denominado incidente de desconsideração da personalidade jurídica, que é uma modalidade de intervenção de terceiros provocada.

Devemos observar que a formalização da desconsideração deve se dar por meio do incidente estabelecido no CPC, art. 133 e seguintes. A primeira coisa a ser notada é de que o incidente de desconsideração deve ser requerido pela parte interessada ou pelo MP, quando atua como fiscal da ordem pública, o que significa dizer que o juiz não poderá decretar a desconsideração da personalidade jurídica de ofício. Outra observação é a de que o juiz, ao instaurar o incidente, deverá atentar para os pressupostos autorizadores presentes na lei material correspondente.

O referido incidente poderá ser suscitado em qualquer fase do processo de conhecimento, inclusive – e principalmente – no cumprimento de sentença, e no processo de execução (CPC, art. 134), com suspensão do processo, para citação dos sócios. O requerimento materializa-se mediante uma simples petição intermediária, na qual o requerente deverá indicar os sócios da pessoa jurídica, bem como demonstrar a presença dos pressupostos legais autorizadores para a desconsideração. Os sócios serão citados para se manifestarem sobre a pretensão desconsideratória, no prazo de 15 dias (CPC, art. 135).

Admitida a desconsideração, os sócios citados tornar-se-ão intervenientes no processo, incluídos no polo passivo da demanda.

Não haverá necessidade de se instaurar o incidente quando a desconsideração for requerida pelo autor na petição inicial. Nesse caso, será citado o sócio ou a pessoa jurídica, conforme o caso da desconsideração, para oferecer contestação, sem suspensão do feito (CPC, art. 134, § 2º).

No requerimento para instauração do incidente, o requerente deverá demonstrar a presença dos pressupostos legais autorizadores para a desconsideração, levando-se em conta o dispositivo legal aplicável à relação jurídica subjacente e que deu origem ao processo em que o incidente foi suscitado.

Ao final da instrução processual do incidente de desconsideração, o juiz deverá julgá-lo, acolhendo-o ou rejeitando-o. Quando a decisão é pelo acolhimento do pedido de desconsideração, o principal efeito dessa decisão é de considerar ineficaz qualquer alienação ou oneração de bem ocorrida depois do ajuizamento da ação, em relação ao requerente (CPC, art. 137). Isso significa que o juiz irá reconhecer em fraude à execução, tornando ineficaz o ato de alienação ou oneração praticado pelo sócio ou pela pessoa jurídica, conforme o caso. 

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A decisão que julga o incidente de desconsideração da personalidade jurídica é uma interlocutória (CPC, art. 136), sobre a qual caberá, qualquer que seja o seu desfecho, recurso de agravo de instrumento (CPC, art. 1.015, IV). Caso a decisão seja proferida no tribunal, monocraticamente, pelo relator, o recurso cabível será o agravo interno (CPC, art. 136, parágrafo único c.c. art. 1.021).

III - A desconsideração inversa da personalidade jurídica.

Eis que chegamos ao âmago do presente ensaio.

A desconsideração inversa da personalidade jurídica é aquela em flui em sentido contrário, do sócio para a sociedade. Ocorre quando o sócio é o devedor, e ele tem seu patrimônio atribuído à pessoa jurídica de cuja sociedade faz parte. O incidente de desconsideração da personalidade jurídica se aplica também à desconsideração inversa (CPC, art. 133, § 2º).

A desconsideração inversa será cabível quando a pretensão é estabelecer a transferência da responsabilidade da pessoa física (ou mesmo de uma pessoa jurídica) para a pessoa jurídica da qual é sócia. Imagine-se, assim, que haja um processo contra uma pessoa física e, iniciada a execução, descobre-se que inexistem bens para garantia do juízo, mas que ela é sócia de uma pessoa jurídica com capacidade econômica suficiente para fazer frente à execução. Através da desconsideração inversa, requer-se ao juiz que estabeleça a atribuição da responsabilidade para aquela pessoa jurídica.

Mesmo antes da vigência do CPC/2015, a jurisprudência já admitia a possibilidade da desconsideração inversa. No REsp 1.647.362-SP, relatado pela Ministra Nancy Andrighi, o STJ entendeu que o sócio oculto pode ter responsabilidade pelas obrigações decorrentes da desconsideração inversa da personalidade jurídica, desde que seja comprovada a sua participação da sociedade. Tal comprovação deverá ser feita no incidente de desconsideração, que deve ser admitido e processado desde que haja indícios de participação do suposto sócio oculto.

Em outro caso interessante, no julgamento do REsp 1.522.142-PR, cujo relator foi o Ministro Marco Aurélio Bellizze, o STJ reconheceu a possibilidade da desconsideração inversa da personalidade jurídica em ação de divórcio, sempre que um dos cônjuges intenta utilizar a sociedade da qual detém participação e controle para frustrar direitos patrimoniais conjugais do outro.

Conclusão.

                A atividade satisfativa é sempre a parte mais complicada da atuação jurisdicional. A execução, seja ela por meio do cumprimento de sentença, seja por meio do processo de execução, revela-se difícil por diversas razões, e uma delas é decorrente do mau uso da personalidade jurídica. Por conta disso, o direito vem se ocupando de encontrar meios de coibir isso, dentre os quais a desconsideração da personalidade jurídica, inclusive pela via inversa, como ora apontamos.

 

Bibliografia.

 

SALES, Fernando Augusto De Vita Borges de. Desconsideração da personalidade jurídica da sociedade limitada nas relações de consumo. Leme: JHMizuno, 2019.

_____. Manual de processo do trabalho. São Paulo: Rideel, 2020.

_____. Manual de prática processual civil. Leme: JHMizuno, 2020.

_____. Manual de direito processual civil. São Paulo: Rideel, 2018.

 

 

 

 

 

Sobre o autor
Fernando Augusto Sales

Advogado em São Paulo. Mestre em Direito. Professor da Universidade Paulista - UNIP, da Faculdade São Bernardo - FASB e do Complexo de Ensino Andreucci Proordem. Autor dos livros: Direito do Trabalho de A a Z, pela Editora Saraiva; Súmulas do TST comentadas, pela Editora LTr; Manual de Processo do trabalho; Novo CPC Comentado; Manual de Direito Processual Civil; Estudo comparativo do CPC de 1973 com o CPC de 2015; Comentários à Lei do Mandado de Segurança e Ética para concursos e OAB, pela Editora Rideel; Direito Ambiental Empresarial; Direito Empresarial Contemporâneo e Súmulas do STJ em Matéria Processual Civil Comentadas em Face do Novo CPC, pela editora Rumo Legal; Manual de Direito do Consumidor, Direito Digital e as relações privadas na internet, Manual da LGPD, Manual de Prática Processual Civil; Desconsideração da Personalidade Jurídica da Sociedade Limitada nas Relações de Consumo, Juizados Especiais Cíveis: comentários à legislação; Manual de Prática Processual Trabalhista e Nova Lei de Falência e Recuperação, pela editora JH Mizuno.

Informações sobre o texto

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