O concurso de pessoas no Código Penal Militar: uma breve análise a respeito da figura do “cabeça”
O concurso de pessoas trata da possibilidade de dois ou mais agentes concorrerem para a prática de um ou mais crimes. A legislação penal comum e a legislação penal militar tratam esse instituto de forma muito semelhante em diversos aspectos; porém, em razão da finalidade desta última, da época em que foi redigida e a quem se destina sua aplicação, existem alguns dispositivos que são peculiares à ela. No âmbito do concurso de agentes, trazemos como exemplo disso a figura jurídica do “cabeça”, expressa nos parágrafos 4º e 5º do art. 53 do CPM. Assim, o presente artigo tem como escopo a compreensão do concurso de pessoas no âmbito da legislação penal castrense, trazendo os pontos convergentes, divergentes e exclusivos em relação à legislação penal comum, além de aprofundar o estudo em relação a fictio iuris do “cabeça”, no intuito de entender o papel dessa figura na estrutura penal militar.
Inicia-se pela análise do tratamento dispensado pelos dois diplomas legais ao concurso de agentes para que se possa, em seguida, aprofundar a discussão desse instituto no âmbito militar. Em relação aos pontos convergentes, tanto a legislação penal militar quanto a comum adotam como regra a teoria monista, mas a aplicam de forma temperada, adotando em casos específicos as teorias pluralista e dualista¹. Ambos os diplomas apresentam em seus artigos que quem concorrer para o crime incidirá nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade, não se comunicando as circunstâncias de caráter pessoal, salvo se elementares do crime. Também não punem, salvo disposição em contrário, a determinação, instigação e o auxílio, se o crime não chega a ser tentado. O ponto que apresentam de forma divergente é o tratamento diferenciado para a participação de menor importância; enquanto no Código Penal a pena é diminuída de um sexto a um terço, no Código Penal Militar a pena é atenuada. E, por fim, no que tange aos pontos específicos de cada legislação, o Código Penal prevê ao agente que quis participar de crime menos grave a aplicação da pena deste, aumentando até a metade se o resultado mais grave era previsível. A legislação castrense não traz expressamente no seu corpo essa disposição; porém, grande parte da doutrina entende ser cabível a aplicação subsidiária na esfera militar². Os pontos trazidos pela Código Penal Militar que lhe são peculiares em razão das características que informam a sociedade militar, no âmbito do concurso de pessoas, são os casos de agravação da pena do art. 53, §2º do CPM³, e a figura do cabeça, constante nos §§4º e 5º do mencionado artigo:
Art. 53. Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas.
§ 4º Na prática de crime de autoria coletiva necessária, reputam-se cabeças os que dirigem, provocam, instigam ou excitam a ação.
§ 5º Quando o crime é cometido por inferiores e um ou mais oficiais, são estes considerados cabeças, assim como os inferiores que exercem função de oficial.4
Conforme a leitura do texto legal, reputa-se como “cabeça” o agente que dirige, provoca, instiga ou excita a ação nos crimes de autoria coletiva necessária, bem como o oficial ou o praça que exercer função de oficial, quando cometer a prática delituosa juntamente com inferiores. Somente é aplicada a figura do cabeça nos tipos legais que a trazem de forma expressa em seu preceito secundário, quais sejam: a tentativa contra a soberania do Brasil, do art. 142; o motim, do art. 149; a revolta, do art. 150; o amotinamento do art. 182; e o motim, revolta ou conspiração do art. 368, tanto na sua forma simples, quanto na qualificada5. Se não previsto no preceito secundário, o instituto será inócuo para a dosimetria, e fora dos casos de autoria coletiva, não se pode distinguir os cabeças para puni-los mais severamente6. Pensa-se que o objetivo do legislador pátrio militar ao criar a ficção jurídica do cabeça era atingir mais severamente os oficiais coautores, em respeito aos princípios basilares da hierarquia e disciplina, levando em conta o maior grau de responsabilidade que os superiores possuem de impedir o injusto7.
A fictio iuris do cabeça é criticada pela doutrina no que diz respeito a sua necessidade. Alexandre Saraiva entende que quaisquer que sejam os concorrentes no crime, suas penas serão individualizadas, adequadas e proporcionais às suas culpabilidades, sendo isso uma garantia do próprio sentenciado, não havendo, portanto, razões que justifiquem a necessidade da figura do cabeça8. Ou seja: não se pode aplicar a figura do cabeça em homenagem ao princípio da individualização da pena. Porém, é justamente a figura do cabeça que dá tonalidade própria a cada caso, individualizando a resposta penal9. No mesmo sentido entende Silvio Martins Teixeira, que leciona que a graduação da pena para cada agente dentro dos limites do máximo e do mínimo em cada crime não satisfaz completamente os princípios da disciplina e hierarquia, indispensáveis na apreciação dos crimes militares¹º. O inferior obedece, estando habituado a fazê-lo; o superior é obedecido, presumindo-se nele mais livre discernimento e, consequentemente, maior responsabilidade e possibilidade de impedir o injusto¹¹. Quem se encontra em funções de comando deve ser um exemplo para seus comandados, já que preparado para o exercício de funções de comando, de chefia e de direção, e justamente por possuir posição de destaque e importância no organismo militar é que deve ser apenado mais gravemente. Por isso, jutifica-se o tratamento diferenciado entre oficiais e inferiores hierárquicos quando do cometimento de crimes de autoria coletiva necessária.
Portanto, percebe-se que as legislações penais comum e militar assemelhamse no tratamento dado ao concurso de pessoas em diversos pontos; porém, a última possui pontos peculiares, como a figura do cabeça, criticada doutrinariamente quanto a sua necessidade. Coadunamos com o posicionamento que entende pela necessidade dessa fictio iuris, pois parece ser justificável a severidade do tratamento dado a estes em razão de terem maior responsabilidade e possibilidade de impedir o injusto. Parece ser imprescindível essa diferenciação para a própria manutenção dos pilares estruturais das instituições militares – a disciplina e a hierarquia – atributos próprios de todos, porém, muito mais afetos aos que comandam, chefiam e dirigem as forças armadas e forças auxiliares¹² .
1. No caso do CPM, a teoria dualista é adotada nos arts. 149 e 155 – incitamento e motim, respectivamente –, e a teoria pluralista é adotada nos arts. 308 e 309 – que tratam da corrupção passiva e ativa. Na primeira, autor e partícipe cometem crimes diferentes; na segunda, a lógica é a mesma, mas haverão tantas infrações quanto houver partícipes/coautores.
2. ASSIS, Jorge Cesar de. Considerações sobre a participação de crime menos grave no Direito Penal Militar. Conteúdo Jurídico, Brasilia: 26 jun 2020. Disponivel em: <https://conteudojuridico.co
m.br/consulta/Artigos/16576/consideracoes-sobre-a-participacao-de-crime-menos-grave-no-direito-pe
nal-militar. Acesso em: 26 jun 2020.
3. Conforme o disposto no art. 53, §2º do CPM, a pena é agravada em relação ao agente que: a) promove ou organiza a cooperação no crime ou dirige a atividade dos demais agentes; b) coage outrem à execução material do crime; c) instiga ou determina a cometer o crime alguém sujeito à sua autoridade, ou não punível em virtude de condição ou qualidade pessoal; e d) executa o crime, ou nele participa, mediante paga ou promessa de recompensa.
4. BRASIL. Código Penal Militar. Decreto lei nº 1.001, de 21 de outubro de 1969. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del1001Compilado.htm. Acesso em: 20 jun 2020.
5. ASSIS, op. cit., p. 65.
6 NEVES, Cicero Coimbra. A figura do cabeça está presente apenas em crime de concurso necessário? Disponível em: https://blog.grancursosonline.com.br/a-figura-dos-cabecas-esta-present%20e-apenas-em-crime-de-concurso-necessario/. Acesso em: 26 jun 2020.
7. COSTA, Álvaro Mayrinck da. Crime Militar. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2005, pp. 388-389.
8 SARAIVA, Alexandre J. B. L. Comentários à Parte Geral do Código Penal Militar. Fortaleza: ABC Editora, 2007, pp.112-113.
9 NEVES, op. cit., não paginado.
10 TEIXEIRA, Silvio Martins. Novo Código Penal Militar do Brasil. Rio de Janeiro: Livraria Editora Freitas Bastos, 1946, pp. 102-103.
11 COSTA, op. cit., p. 389.
12 ASSIS, op. cit., p. 65.