O concurso de pessoas no Código Penal Militar: uma breve análise a respeito da figura do “cabeça”

21/01/2021 às 10:56
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O presente artigo tem como escopo a compreensão do concurso de pessoas no âmbito da legislação penal castrense, trazendo os pontos convergentes, divergentes e exclusivos em relação à legislação penal comum, especialmente sobre a fictio iuris do “cabeça”.

O concurso de pessoas no Código Penal Militar: uma breve análise a respeito da figura do “cabeça”

O concurso de pessoas trata da possibilidade de dois ou mais agentes concorrerem para a prática de um ou mais crimes. A legislação penal comum e a legislação penal militar tratam esse instituto de forma muito semelhante em diversos aspectos; porém, em razão da finalidade desta última, da época em que foi redigida e a quem se destina sua aplicação, existem alguns dispositivos que são peculiares à ela. No âmbito do concurso de agentes, trazemos como exemplo disso a figura jurídica do “cabeça”, expressa nos parágrafos 4º e 5º do art. 53 do CPM. Assim, o presente artigo tem como escopo a compreensão do concurso de pessoas no âmbito da legislação penal castrense, trazendo os pontos convergentes, divergentes e exclusivos em relação à legislação penal comum, além de aprofundar o estudo em relação a fictio iuris do “cabeça”, no intuito de entender o papel dessa figura na estrutura penal militar.

Inicia-se pela análise do tratamento dispensado pelos dois diplomas legais ao concurso de agentes para que se possa, em seguida, aprofundar a discussão desse instituto no âmbito militar. Em relação aos pontos convergentes, tanto a legislação penal militar quanto a comum adotam como regra a teoria monista, mas a aplicam de forma temperada, adotando em casos específicos as teorias pluralista e dualista¹. Ambos os diplomas apresentam em seus artigos que quem concorrer para o crime incidirá nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade, não se comunicando as circunstâncias de caráter pessoal, salvo se elementares do crime. Também não punem, salvo disposição em contrário, a determinação, instigação e o auxílio, se o crime não chega a ser tentado. O ponto que apresentam de forma divergente é o tratamento diferenciado para a participação de menor importância; enquanto no Código Penal a pena é diminuída de um sexto a um terço, no Código Penal Militar a pena é atenuada. E, por fim, no que tange aos pontos específicos de cada legislação, o Código Penal prevê ao agente que quis participar de crime menos grave a aplicação da pena deste, aumentando até a metade se o resultado mais grave era previsível. A legislação castrense não traz expressamente no seu corpo essa disposição; porém, grande parte da doutrina entende ser cabível a aplicação subsidiária na esfera militar². Os pontos trazidos pela Código Penal Militar que lhe são peculiares em razão das características que informam a sociedade militar, no âmbito do concurso de pessoas, são os casos de agravação da pena do art. 53, §2º do CPM³, e a figura do cabeça, constante nos §§4º e 5º do mencionado artigo:

Art. 53. Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas.
§ 4º Na prática de crime de autoria coletiva necessária, reputam-se cabeças os que dirigem, provocam, instigam ou excitam a ação.
§ 5º Quando o crime é cometido por inferiores e um ou mais oficiais, são estes considerados cabeças, assim como os inferiores que exercem função de oficial.4

Conforme a leitura do texto legal, reputa-se como “cabeça” o agente que dirige, provoca, instiga ou excita a ação nos crimes de autoria coletiva necessária, bem como o oficial ou o praça que exercer função de oficial, quando cometer a prática delituosa juntamente com inferiores. Somente é aplicada a figura do cabeça nos tipos legais que a trazem de forma expressa em seu preceito secundário, quais sejam: a tentativa contra a soberania do Brasil, do art. 142; o motim, do art. 149; a revolta, do art. 150; o amotinamento do art. 182; e o motim, revolta ou conspiração do art. 368, tanto na sua forma simples, quanto na qualificada5. Se não previsto no preceito secundário, o instituto será inócuo para a dosimetria, e fora dos casos de autoria coletiva, não se pode distinguir os cabeças para puni-los mais severamente6. Pensa-se que o objetivo do legislador pátrio militar ao criar a ficção jurídica do cabeça era atingir mais severamente os oficiais coautores, em respeito aos princípios basilares da hierarquia e disciplina, levando em conta o maior grau de responsabilidade que os superiores possuem de impedir o injusto7

A fictio iuris do cabeça é criticada pela doutrina no que diz respeito a sua necessidade. Alexandre Saraiva entende que quaisquer que sejam os concorrentes no crime, suas penas serão individualizadas, adequadas e proporcionais às suas culpabilidades, sendo isso uma garantia do próprio sentenciado, não havendo, portanto, razões que justifiquem a necessidade da figura do cabeça8. Ou seja: não se pode aplicar a figura do cabeça em homenagem ao princípio da individualização da pena. Porém, é justamente a figura do cabeça que dá tonalidade própria a cada caso, individualizando a resposta penal9. No mesmo sentido entende Silvio Martins Teixeira, que leciona que a graduação da pena para cada agente dentro dos limites do máximo e do mínimo em cada crime não satisfaz completamente os princípios da disciplina e hierarquia, indispensáveis na apreciação dos crimes militares¹º. O inferior obedece, estando habituado a fazê-lo; o superior é obedecido, presumindo-se nele mais livre discernimento e, consequentemente, maior responsabilidade e possibilidade de impedir o injusto¹¹. Quem se encontra em funções de comando deve ser um exemplo para seus comandados, já que preparado para o exercício de funções de comando, de chefia e de direção, e justamente por possuir posição de destaque e importância no organismo militar é que deve ser apenado mais gravemente. Por isso, jutifica-se o tratamento diferenciado entre oficiais e inferiores hierárquicos quando do cometimento de crimes de autoria coletiva necessária.

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Portanto, percebe-se que as legislações penais comum e militar assemelhamse no tratamento dado ao concurso de pessoas em diversos pontos; porém, a última possui pontos peculiares, como a figura do cabeça, criticada doutrinariamente quanto a sua necessidade. Coadunamos com o posicionamento que entende pela necessidade dessa fictio iuris, pois parece ser justificável a severidade do tratamento dado a estes em razão de terem maior responsabilidade e possibilidade de impedir o injusto. Parece ser imprescindível essa diferenciação para a própria manutenção dos pilares estruturais das instituições militares – a disciplina e a hierarquia – atributos próprios de todos, porém, muito mais afetos aos que comandam, chefiam e dirigem as forças armadas e forças auxiliares¹² . 

1. No caso do CPM, a teoria dualista é adotada nos arts. 149 e 155 – incitamento e motim, respectivamente –, e a teoria pluralista é adotada nos arts. 308 e 309 – que tratam da corrupção passiva e ativa. Na primeira, autor e partícipe cometem crimes diferentes; na segunda, a lógica é a mesma, mas haverão tantas infrações quanto houver partícipes/coautores.
2. ASSIS, Jorge Cesar de. Considerações sobre a participação de crime menos grave no Direito Penal Militar. Conteúdo Jurídico, Brasilia: 26 jun 2020. Disponivel em: <https://conteudojuridico.co
m.br/consulta/Artigos/16576/consideracoes-sobre-a-participacao-de-crime-menos-grave-no-direito-pe
nal-militar. Acesso em: 26 jun 2020.
3. Conforme o disposto no art. 53, §2º do CPM, a pena é agravada em relação ao agente que: a) promove ou organiza a cooperação no crime ou dirige a atividade dos demais agentes; b) coage outrem à execução material do crime; c) instiga ou determina a cometer o crime alguém sujeito à sua autoridade, ou não punível em virtude de condição ou qualidade pessoal; e d) executa o crime, ou nele participa, mediante paga ou promessa de recompensa.
4. BRASIL. Código Penal Militar. Decreto lei nº 1.001, de 21 de outubro de 1969. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del1001Compilado.htm. Acesso em: 20 jun 2020.
5. ASSIS, op. cit., p. 65.
6 NEVES, Cicero Coimbra. A figura do cabeça está presente apenas em crime de concurso necessário? Disponível em: https://blog.grancursosonline.com.br/a-figura-dos-cabecas-esta-present%20e-apenas-em-crime-de-concurso-necessario/. Acesso em: 26 jun 2020.
7. COSTA, Álvaro Mayrinck da. Crime Militar. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2005, pp. 388-389. 
8 SARAIVA, Alexandre J. B. L. Comentários à Parte Geral do Código Penal Militar. Fortaleza: ABC Editora, 2007, pp.112-113.
9 NEVES, op. cit., não paginado.
10 TEIXEIRA, Silvio Martins. Novo Código Penal Militar do Brasil. Rio de Janeiro: Livraria Editora Freitas Bastos, 1946, pp. 102-103.
11 COSTA, op. cit., p. 389.
12 ASSIS, op. cit., p. 65.

Sobre a autora
Anajulia Marques Cunha

Bacharela em Direito pela Universidade de Caxias do Sul - UCS (2018). Aprovada no XXIX Exame da Ordem dos Advogados do Brasil (2019). Pós-graduada em Direito e Processo Penal pela Fundação do Ministério Público - FMP (2020). Pós-graduanda em Direito Tributário pela Unyleya (2021).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Artigo elaborado para avaliação final de módulo da Pós-graduação em Direito Penal e Processo Penal pela Fundação do Ministério Público - FMP/RS.

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