A escravidão contemporânea sob as perspectivas Marxista e Habermasiana

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Uma visão crítica sobre a existência da escravidão contemporânea. O tema será abordado sob duas perspectivas: marxista, no que diz respeito à exploração do trabalhador; e habermasiana, no que diz respeito aos direitos humanos.

RESUMO

Este trabalho visa formar no leitor uma visão crítica sobre a existência da escravidão, conscientizando-o de que ela ainda existe, e não é rara. Este artigo abordará este tema sob duas perspectivas: uma marxista, no que diz respeito à exploração do trabalhador, e outra habermasiana, no que diz respeito aos direitos humanos, que são violados quando esses trabalhadores são submetidos a um trabalho análogo ao de escravo.

Palavras-chave: escravidão, Lista Suja, Habermas, Marx, Direitos Humanos, Teoria da Exploração, trabalho alienado.

ABSTRACT

This work aims to train the reader a critical view of the existence of slavery, educating him that it still exists, and is not rare. This article will address this issue from two perspectives: Marxist, with regard to the exploitation of the worker, and another Habermas, when it comes to human rights, which are violated when these workers are subjected to compulsory labor slave.

Keywords: slavery, Blacklist, Habermas, Marx, Human Rights, Theory of Operation, alienated labor.

  1. - INTRODUÇÃO

Lei Áurea, 1888: não foi aí que a escravidão acabou. Uma lei do final do século XVII não foi capaz de fazer desaparecer uma das condições mais humilhantes a qual um ser humano pode ser submetido. Século XXI: estima-se que existam no mundo entre 12 a 27 milhões de pessoas escravizadas nos diversos ramos da indústria, serviços

e agricultura. Infelizmente, o Brasil não é exceção no que diz respeito a esses dados alarmantes e quase inacreditáveis para quem está longe dessa triste realidade.

Existe no Brasil, desde 2003, uma lista criada pelo governo federal que é publicada e atualizada semestralmente pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), lista essa que traz uma relação de pessoas e empresas flagradas cometendo o “crime de escravidão”. Estão cadastrados na lista, atualizada em julho de 2014, 609 (seiscentos e nove) nomes de empregadores flagrados na prática de submeter trabalhadores a condições análogas às de escravo, sejam pessoas físicas ou jurídicas. Desse total, o estado do Pará apresenta o maior número de empregadores inscritos na lista, totalizando cerca de 27%, sendo seguido por Minas Gerais com 11%, Mato Grosso com 9% e Goiás com 8%. A pecuária constitui a atividade econômica desenvolvida pela maioria dos empregadores (40%), seguida da produção florestal (25%), agricultura (16%) e indústria da construção (7%).

Um caso bastante emblemático é o do fazendeiro Gilberto Andrade, dono de terras nos estados do Pará e Maranhão. Ele foi condenado pela Justiça Federal do Maranhão em 2008 a 14 anos de prisão, pelos crimes de redução à condição análoga à de escravo, ocultação de cadáver e aliciamento de trabalhadores, artigos 149, 211 e 207 do Código Penal, respectivamente. Este caso tornou-se bastante conhecido devido ao fato de Gilberto Andrade e mais dois capangas seus terem marcado a ferro quente um de seus trabalhadores, apenas pelo motivo de ele ter exigido pagamento de salários atrasados. O fato se deu em uma das fazendas de Gilberto, chamada Bonsucesso, localizada no Pará. Somente nesta fazenda (uma das seis que ele possui) foram encontradas 35 pessoas em situação análoga à escravidão, que dormiam em um curral abandonado, junto com esterco de boi, e eram alimentadas com restos de carne: pulmões e tetas de vaca. Nenhum dos 35 tinha carteira assinada. A maior parte deles havia chegado em dezembro para fazer a limpeza do pasto para o gado, mas ainda não havia recebido salário.

  1. - ESCRAVIDÃO CONTEMPORÂNEA

Pela letra da lei a escravidão é extinta. O último país a abolir a escravidão foi a Mauritânia em 1981. Porém a escravidão continua em muitos países, porque as leis não são aplicadas. Elas foram somente feitas pela pressão de outros países e da ONU, mas não representam a vontade do governo do respectivo país. Hoje em dia existem pelo menos 27 milhões de escravos no mundo.

De acordo com o artigo 149 do Código Penal brasileiro, são elementos que caracterizam o trabalho análogo ao de escravo: condições degradantes de trabalho (incompatíveis com a dignidade humana, caracterizadas pela violação de direitos fundamentais coloquem em risco a saúde e a vida do trabalhador), jornada exaustiva (em que o trabalhador é submetido a esforço excessivo ou sobrecarga de trabalho que acarreta a danos à sua saúde ou risco de vida), trabalho forçado (manter a pessoa no serviço através de fraudes, isolamento geográfico, ameaças e violências físicas e psicológicas) e servidão por dívida (fazer o trabalhador contrair ilegalmente um débito e prendê-lo a ele). Os elementos podem vir juntos ou isoladamente.

O termo “trabalho análogo ao de escravo” deriva do fato de que o trabalho escravo formal foi abolido pela Lei Áurea em 13 de maio de 1888. Até então, o Estado brasileiro tolerava a propriedade de uma pessoa por outra não mais reconhecida pela legislação, o que se tornou ilegal após essa data.

Não é apenas a ausência de liberdade que faz um trabalhador escravo, mas sim de dignidade. Todo ser humano nasce igual em direito à mesma dignidade. E, portanto, nascemos todos com os mesmos direitos fundamentais que, quando violados, nos arrancam dessa condição e nos transformam em coisas, instrumentos descartáveis de trabalho. Quando um trabalhador mantém sua liberdade, mas é excluído de condições mínimas de dignidade, temos também caracterizado trabalho escravo.

A Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, através de sua relatora para formas contemporâneas de escravidão, apoiam o conceito utilizado no Brasil.

A assinatura da lei Áurea, em 13 de maio de 1888, decretou o fim do direito de propriedade de uma pessoa sob outra, porém o trabalho semelhante ao escravo se manteve de outra maneira. A forma mais encontrada no país é a da servidão, ou ‘peonagem’, por dívida. Nela, a pessoa empenha sua própria capacidade de trabalho ou a de pessoas sob sua responsabilidade (esposa, filhos, pais) para saldar uma conta. E isso acontece sem que o valor do serviço executado seja aplicado no abatimento da conta de forma razoável ou que a duração e a natureza do serviço estejam claramente definidas.

A nova escravidão é mais vantajosa para os empresários que a da época do Brasil Colônia e do Império, pelo menos do ponto de vista financeiro e operacional, como se observa, dentre outras coisas, no quadro a seguir (um paralelo entre a escravidão tradicional e a contemporânea):

BRASIL

antiga escravidão

nova escravidão

propriedade legal

permitida

proibida

custo de aquisição de mão-de-obra

alto. a riqueza de uma pessoa podia

ser medida pela quantidade de escravos

muito baixo. não há compra e, muitas vezes, gasta-se apenas o transporte

lucros

baixos. havia custos com a

manutenção dos escravos

altos. se alguém fica doente pode ser

mandado embora, sem nenhum direito

mão-de-obra

escassa. dependia de tráfico negreiro, prisão de índios ou reprodução. bales afirma que, em 1850, um escravo era vendido por uma quantia equivalente

a r$ 120 mil

descartável. um grande contingente de trabalhadores desempregados. um homem foi levado por um gato por r$ 150,00 em eldorado dos carajás, sul

do Pará

relacionamento

longo período. a vida inteira do escravo e até de seus descendentes

curto período. terminado o serviço, não é mais necessário prover o

sustento

diferenças étnicas

relevantes para a escravização

pouco relevantes. qualquer pessoa pobre e miserável são os que se tornam escravos, independente da cor

da pele

manutenção da ordem

ameaças, violência psicológica, coerção física, punições exemplares

e até assassinatos

ameaças, violência psicológica, coerção física, punições exemplares e

até assassinatos

Infelizmente, não são raros os casos de escravidão contemporânea. Como forma de aplacar esse tipo de condição, foi criada a Lista Suja. É uma lista, criada pelo governo federal em 2003, que é mantida e atualizada semestralmente pelo Ministério do Trabalho e Emprego e a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, onde estão os nomes dos empregadores flagrados com esse tipo de mão de obra e que tiveram oportunidade de se defender em primeira e segunda instâncias administrativas, antes de ser confirmado o conjunto de atuações que configuraram condições análogas às de escravo. Por sua vez, as exclusões dos nomes derivam do monitoramento, direto ou indireto, pelo período de dois anos da data da inclusão do nome do infrator no Cadastro, a fim de verificar a não reincidência na prática do "trabalho escravo" e do pagamento das multas resultantes da ação fiscal.

  1. - O CASO DO FAZENDEIRO GILBERTO ANDRADE

Em setembro de 2003 O fazendeiro Gilberto Andrade foi condenado a pagar a primeira indenização por dano moral por manter trabalhadores em condições de trabalho escravo. Por decisão da juíza da Terceira Vara da capital maranhense, Maria da Conceição Meirelles, o fazendeiro foi condenado a pagar indenização de R$ 5 mil a cada um dos 28 empregados e ex- empregados. A juíza julgou procedente a ação civil pública proposta pelo Ministério Público do Trabalho contra o fazendeiro. Além da documentação e fotos apresentados no MPT, Gilberto Andrade confessou, em depoimento, uso do trabalho escravo há 31 anos em suas fazendas com a contratação de pessoal feita por intermediário, identificado como "gato".

O fazendeiro Gilberto Andrade, que na época residia no município de Paragominas (PA), foi considerado pelo Ministério Público do Trabalho como reincidente no uso de trabalhadores em condições de semi-escravidão. A condenação decorre de três fiscalizações realizadas em suas seis fazendas, no Maranhão e no Pará, no período de 1989 e 1999.

Gilberto Andrade ainda respondia ações penais por denúncias de espancamentos e assassinatos de trabalhadores. Em 1998 foram resgatados de uma das fazendas oito trabalhadores, e no ano seguinte, mais 20. Auditores fiscais, policiais federais e a gerência de Segurança Pública localizaram em uma das propriedades três cadáveres que foram exumados e periciados.

Já em 2008 O Tribunal Regional Federal da 1ª Região confirmou a sentença do juiz federal, Neian Milhomem Cruz, que condenou, em abril do mesmo ano, o fazendeiro Gilberto Andrade pelos crimes de trabalho escravo, aliciamento de trabalhadores e ocultação de cadáver.

Isso se deu porque o TRF da 1ª Região negou provimento ao recurso impetrado pelos advogados do réu, que alegaram cerceamento de defesa. Gilberto Andrade foi condenado pela Justiça Federal no Maranhão a 14 anos de prisão. A decisão saiu no dia 23 de abril de 2008.

Em um trecho da sentença, estava escrito: “O réu andava sempre armado, impondo um clima de medo em suas fazendas, dada sua conduta violenta, agindo como um verdadeiro e autêntico senhor de escravos, denotando uma atividade parasitária e anti-social”

Segundo a denúncia do Ministério Público Federal, Gilberto Andrade, dono das fazendas Caru, Baixa Verde e Bonsucesso, após aliciar trabalhadores com falsas promessas de emprego, submetia-os a condições degradantes de trabalho, além de cerceá-los a liberdade de locomoção. Ele era proprietário de terras nos estados do Pará e do Maranhão, conhecido pela crueldade com que tratava seus trabalhadores. O fazendeiro condenado consta na Lista Suja do trabalho escravo por manter 18 pessoas em condições semelhantes no município de Centro Novo do Maranhão (MA), desde 2005.

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Em 2008, Andrade foi denunciado pelo Ministério Público Federal no Pará sob a acusação de torturar com ferro para marcar gado um funcionário de uma de suas propriedades em Paragominas (PA).

.De acordo com levantamento de um jornal local, Gilberto Andrade já foi visitado pelo grupo móvel de fiscalização formado pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), Ministério Público do Trabalho (MPT) e Polícia Federal (PF)

por denúncias de trabalho escravo em maio de 1998, setembro de 1999, novembro de 2004, maio de 2005 e fevereiro de 2008.

Mas o caso do fazendeiro ganhou projeção internacional pelo fato de ele ter sido acusado de torturar um trabalhador com ferro quente de marcar gado, a fim de puni-lo por reclamações relacionadas à qualidade da comida e à falta de salários. Ainda nessa ação que libertou 23 pessoas, ele tentou driblar a fiscalização induzindo os trabalhadores a assinar contratos fraudulentos.

Como já foi dito acima, Gilberto Andrade foi condenado a 14 anos de prisão, e de acordo com a sentença não será possível a suspensão da execução das penas, bem como a substituição das penas privativas de liberdade por outras como doação de cestas básicas e serviços à comunidade.

Gilberto Andrade está na "lista suja", com isso, ele perde acesso a créditos de instituições públicas e de alguns bancos privados e clientes ligados ao Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo. Entre os frigoríficos que já compraram sua produção em anos passados está o Mãe do Rio, hoje nas mãos do Margen. Este grupo tornou-se signatário do Pacto Nacional em 2008, comprometendo-se a adotar uma política de restrição comercial a quem se utiliza desse tipo de exploração.

  1. - O CASO NUMA PERSPECTIVA DE KARL MARX: TRABALHO ALIENADO E TEORIA DA EXPLORAÇÃO

Observando este caso de explícito trabalho escravo, pode-se vê-lo, para um maior entendimento, através da visão do pensador alemão Karl Marx. De início, é necessário entender o conceito de trabalho alienado e teoria da exploração, que estarão fundidos numa mesma explicação.

De acordo com a teoria da exploração, os lucros representam uma dedução injusta daquilo que deveria ser, naturalmente e por direito, o salário do trabalhador. Um trabalhador é capaz de produzir, em menos de um dia inteiro de trabalho, os bens de que ele necessita para ter a força e a energia necessárias para labutar um dia inteiro de trabalho.

Para utilizar um dos exemplos fornecidos pelo próprio Marx, um trabalhador é capaz de produzir em 6 horas todos os alimentos e todas as necessidades de que ele precisa para ser capaz de trabalhar 12 horas. Estas 6 horas — a título de exemplo — são rotuladas por Marx de "tempo de trabalho necessário". Já as horas que o trabalhador trabalha além do tempo de trabalho necessário são rotuladas por Marx de "tempo de trabalho excedente”. O lucro do capitalista, portanto, representa a "mais-valia", que corresponde ao "tempo de trabalho excedente".

Esta suposta situação de salários de subsistência — aliás, de salários abaixo da subsistência —, jornada de trabalho desumana e condições precárias, seria o resultado do funcionamento do capitalismo e da busca pelo lucro, diz Marx, tendo por base sua teoria da exploração. E essa exploração só se torna possível a partir do momento da divisão do trabalho, onde agora o trabalhador não conhece a totalidade da produção, mas somente a parte dela que lhe diz respeito, surgindo, daí, o trabalho alienado.

Marx chega à seguinte conclusão: se o produto do trabalho é alienado do trabalhador, por ser algo exterior a ele, a ponto de não lhe pertencer, deve ser então propriedade de outro, então logicamente deve ser outro homem que tomou dele aquilo que deveria lhe pertencer. Com isto, estão fundadas as bases para a exploração de um homem por outro. Portanto, quanto mais o trabalhador produz, menos ele custa para a economia e, consequentemente, mais ele se desvaloriza, chegando ao ponto de ser tornar uma mercadoria do capitalismo.

Fazendo uma analogia ao caso apresentado na introdução, ele se enquadra perfeitamente no conceito de Marx de trabalho alienado, juntamente com a teoria da exploração. Os 35 trabalhadores faziam apenas o trabalho que lhe dizia respeito, sem conhecer a produção como um todo: por exemplo, não faziam parte da negociação do

gado, da gerência da produção, da parte burocrática da fazenda Bonsucesso, etc. Portanto, eram trabalhadores alienados. Gilberto Andrade, por sua fez, se aproveitava dessa alienação, concomitantemente com a necessidade desses pobres trabalhadores, utilizando-se dessa força de trabalho para obter seu lucro através da mais-valia, já que o valor obtido através de todo o trabalho feito a mais do que o necessário à subsistência dos trabalhadores não era divido entre eles, transformando-se em “tempo de trabalho excedente”, beneficiando o fazendeiro. E “pior” do que isso, é importante frisar, é que aquelas pessoas não estavam nem ao menos recebendo qualquer salário, uma situação de verdadeira escravidão. E outro fato que agrava ainda mais o caso é que havia tido um assassinato, tendo o corpo do morto sido escondido, provavelmente o corpo de algum trabalhador que tenha “ameaçado” ir atrás de seus direitos caso aquela situação não fosse resolvida.

  1. - O CASO NUMA PERSPECTIVA DE JÜRGEN HABERMAS: DIREITOS HUMANOS SOB O VIÉS HABERMASIANO

A fim de se entender melhor sobre os direitos humanos, toma-se como referência o conceito dado e minimamente explicado pelo filósofo e sociólogo alemão Jürgen Habermas. Para ele, o conceito “direito”, na expressão “direitos humanos”, deve ser entendido como conceito jurídico. Direitos humanos são, segundo seu pleno significado, direitos jurídicos, e não direitos pré-jurídicos, puramente morais; eles são normas legais, que foram declarados em atos de fundações revolucionárias do Estado ou, como após a Segunda Guerra mundial, anunciados nas convenções de direito internacional (como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948).Nesse sentido ,direitos humanos são compreendido como direitos subjetivos.

Ou seja, Habermas defende que os direitos humanos são direitos subjetivos, por si mesmos, de natureza jurídica e, portanto, direitos positivados (ou melhor, deveriam ser). Se permanecerem concebidos somente como direitos puramente morais, eles serão fracos, fazendo com que o indivíduo não possa processar diante de um tribunal e que esses direitos não sejam protegidos e impostos com o apoio do poder estatal legal em casos de necessidade. Ao contrário, os direitos humanos, se entendidos como direitos jurídicos, são desde o princípio situados em um sistema. Eles são direitos fortes no

sentido de que se pode processar por intermédio deles, diante de um Tribunal, e pode-se impô-los e protegê-los com a ajuda do poder estatal. É o caso do Estado brasileiro.

Ainda sobre o conceito de direitos humanos, o filósofo alemão entende que os direitos humanos são direitos fundamentais legais através do princípio de que os direitos humanos e a soberania do povo se pressupõem mutuamente. Dessa forma, existiria uma conexão interna entre direitos humanos e soberania popular no momento em que existe o exercício da autonomia política, pelo diálogo de cidadãos que expressam sua opinião e vontade livremente e, por conseguinte, criam suas normas reguladoras.

A partir desse princípio, Habermas apresenta cinco categorias de direitos fundamentais, que se subdividem em duas classes, A primeira classe diz respeito a direitos liberais à liberdade, em que se especificam as condições em que as pessoas individuais se reconhecem como sujeitos de direitos e destinatários das leis, ou seja, têm o direito à reclamação e proteção jurídica.

A segunda classe diz respeito, resumidamente, aos direitos de chances de igualdade na participação política, onde, implicitamente, se encontram os direitos de participação social, os quais asseguram a garantia às condições de vida para um “aproveitamento em igualdade de chances” dos direitos inicialmente denominados fundamentais.

Voltando às categorias, as três primeiras representam o espaço da autonomia privada e as duas outras o da autonomia pública. Na terceira categoria é que Habermas entende situarem-se os direitos fundamentais de postulação judicial, que garante caminhos jurídicos pelos quais a pessoa que se sentir prejudicada em seus direitos pode fazer valer suas pretensões. A partir dessa última categoria é possível compreender como o filosofo alemão trata da discussão do direito fundamental de acesso à justiça.

Cabe destacar que Habermas, ao elencar as cinco categorias de direitos fundamentais, torna perceptível a questão da relevância dos direitos mínimos no sentido de serem básicos e imprescindíveis para a vida em comum entre os homens, ou seja, os direitos fundamentais que os cidadãos são obrigados a se atribuirem mutuamente caso queiram regular sua convivência com os meios legítimos do direito positivo. Nesse sentido, será explanado as cinco categorias de direitos fundamentais como forma de compreender as ideias de Habermas sobre os Direitos Humanos.

A primeira categoria estaria relacionada com a ideia de liberdade de ação subjetiva empreendida por Habermas, onde o individuo portador de direitos subjetivos encontra-se livre para exercer sua vontade e, como tal, possui liberdade de ação. Desse

modo, só serão legítimas no direito ações que sejam compatíveis aos direitos de igualdade entre todos. O conceito de lei explicita a exigência, já compreendida no conceito de direito, de um igual tratamento: na forma de uma lei geral e abstrata, em que a todos os sujeitos correspondem direitos iguais.

  1. Direitos fundamentais que resultam da configuração politicamente autônoma do direito à maior medida possível de iguais liberdades subjetivas de ação.

Dessa forma, ao pensar na concepção de liberdade subjetiva na forma como indivíduo expressa a sua vontade livremente, têm – se na lei a expressão máxima de garantias de direitos iguais aos sujeitos. Nesse sentido, pode ser analisado o caso do trabalhador que se encontrava em situação análogo a de escravo pelo fazendeiro Gilberto Andrade ,no momento em que o trabalhador “visualiza na lei” uma forma de ser tratado igualmente e de ter os seus direitos assegurados.

À sua vez, estes direitos exigem, como correlatos necessários, as seguintes categorias jurídicas:

  1. Direitos fundamentais que resultam da configuração politicamente autônoma do status de um membro numa associação voluntária de parceiros do direito.

  1. Direitos fundamentais que resultam imediatamente da possibilidade de postulação judicial de direitos e da configuração politicamente autônoma da proteção jurídica individual.

A segunda categoria de direitos estaria relacionada à ideia de pertencimento a algum tipo de comunidade jurídica organizada, que asseguraria ao indivíduo o reconhecimento efetivo de qualquer outro direito desde que ele assuma a identidade de portador de direito subjetivo.

O terceiro grupo é o que atribui aos sujeitos garantias de defesas e de proteção jurisdicional ante as possíveis ofensas aos direitos. Com o princípio do discurso podem ser fundamentados os direitos fundamentais de acesso à administração da justiça. Eles asseguram a todas as pessoas idêntica proteção jurídica, igual direito a ser ouvido, igualdade na aplicação do direito, igual trato perante a lei, etc. Sob essa

ótica, o trabalhador marcado a ferro pelo fazendeiro Gilberto Andrade e seus dois capangas se reconheceu como sujeito do segundo e do terceiro grupo , pelo fato de ter se reconhecido como sujeito portador de direitos e por ter recorrido à Justiça para denunciar seu patrão e, consequentemente, assegurar seus direitos, buscando a proteção jurídica. Estes direitos elencados no terceiro grupo são similares aos do primeiro grupo, no momento em que os dois estão pautados na lei, como forma de assegurar direitos iguais e direitos de defesa a todos os sujeitos que recorrerem à Justiça, no sentido de terem os seus anseios alcançados.

Para Habermas, estas três categorias de direitos nascem da aplicação do princípio do discurso ao medium do direito enquanto tal. E esses direitos fundamentais garantem a autonomia privada de sujeitos jurídicos somente na medida em que esses sujeitos se reconhecem mutuamente em seu papel de destinatários de leis, erigindo desse modo um status que lhes possibilita a pretensão de obter direitos e de fazê-los valer reciprocamente. Apenas em um segundo momento é que os indivíduos assumem a posição de autores da ordem jurídica pela configuração dos seguintes direitos:

  1. Direitos fundamentais à participação, em igualdade de chances, em processos de formação da opinião e da vontade, nos quais os civis exercitam sua autonomia política e através dos quais eles criam direito legítimo.

Nessa quarta categoria, o sujeito de direito é destinatário no momento em que ele se torna coautor do ordenamento jurídico e não apenas mero sujeito de direito. Portanto, esse sujeito assume um status de cidadão, com direitos iguais de participação nos processos de formação de opinião e de vontade.

E os direitos elencados acima repercutem em:

  1. Direitos fundamentais a condições de vida garantidas social, técnica e ecologicamente, na medida em que isso for necessário para um aproveitamento, em igualdade de chances, dos direitos elencados de (1) até (4).

Na última categoria são tratados os direitos sociais, estes como garantidores do pleno exercício da autonomia publica e privada. Nesse sentido, infelizmente, as 35 pessoas encontradas na fazenda Bonsucesso não tiveram esses direitos garantidos, observando-se a condição precária de vida e trabalho em que se encontravam.

Como já foi citado, para Habermas, Direitos humanos são, segundo seu pleno significado, direitos jurídicos, e não direitos pré-jurídicos, puramente morais; eles são normas legais, que foram declarados em atos de fundações revolucionárias do Estado ou, como após a Segunda Guerra mundial, anunciados nas convenções de direito internacional (como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948).

Diante disso, apresenta-se a seguir legislação nacional e internacional sobre o assunto.

  1. - LEGISLAÇÃO NACIONAL E INTERNACIONAL SOBRE ESCRAVIDÃO CONTEMPORÂNEA

“Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.”

(Declaração Universal dos Direitos Humanos - Artigo 1.º)

Os direitos fundamentais do homem foram conquistados pela sociedade, construídos ao longo dos anos, através de constantes lutas que foram realizadas contra o poder opressor do Estado. Sobre o assunto, afirma Norberto Bobbio (1992,p.5):

Os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizados por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez, nem de uma vez por todas.

Nesse sentido, através de frequentes violações dos direitos dos homens ao longo da história, foram sendo consagrados instrumentos jurídicos como forma de proteção ao individuo que sofra qualquer tipo de violação de seus direitos. Deste modo, instrumentos legais que visam a proteção do individuo e a não exploração deste, podem ser encontrados em instrumentos internos (Constituição) que contém um rol de direitos fundamentais bem como em diversos tratados internacionais de proteção aos direitos humanos. Estes instrumentos serão tratados a seguir :

DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS

Artigo IV - Ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas.

ONU - CONVENÇÃO SUPLEMENTAR SOBRE PRÁTICAS ANÁLOGAS À ESCRAVATURA*

  • A servidão por dívidas, isto é, o estado ou a condição resultante do fato de que um devedor se haja comprometido a fornecer, em garantia de uma dívida, seus serviços pessoais ou os de alguém sobre o qual tenha autoridade, se o valor desses serviços não for equitativamente avaliado no ato da liquidação da dívida ou se a duração desses serviços não for limitada nem sua natureza definida;

  • A servidão, isto é, a condição de qualquer um que seja obrigado pela lei, pelo costume ou por um acordo, a viver e trabalhar numa terra pertencente a outra pessoa e a fornecer a essa outra pessoa, contra remuneração ou gratuitamente, determinados serviços, sem poder mudar sua condição;

* Promulgada pelo Decreto nº 58.563 de 1º de junho de 1966.

CONVENÇÃO 29 DA OIT

Art. 2º - 1 Para fins da presente convenção, a expressão “trabalho forçado ou obrigatório” designará todo trabalho ou serviço exigido de um indivíduo sob ameaça de qualquer penalidade e para o qual ele não se ofereceu de espontânea vontade.

Destaque-se que a Constituição Federal Brasileira disciplina a questão de tratamento desumano e degradante, além de prever indenização por dano moral.

CONSTITUIÇÃO FEDERAL – ART. 5º

III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante;

X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a

indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

XLVII - não haverá penas:

c) de trabalhos forçados;

Na esfera criminal de condutas típicas da redução à condição análoga à

de escravo e do trabalho degradante estão disciplinadas no Código Penal, com as alterações previstas na Lei nº 9.777/98, verbis:

CÓDIGO PENAL

ART.198 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a celebrar contrato de trabalho, ou a não fornecer a outrem ou não adquirir de outrem matéria-prima ou produto industrial ou agrícola:

Pena - detenção, de 1 (um) mês a 1 (um) ano, e multa, além da pena correspondente à violência.

  • Frustração de direito assegurado por lei trabalhista ART.203 - Frustrar, mediante fraude ou violência, direito assegurado pela legislação do trabalho:

Pena - detenção de um ano a dois anos, e multa, além da pena correspondente à violência.

§ 1º Na mesma pena incorre quem:

  1. - obriga ou coage alguém a usar mercadorias de determinado estabelecimento, para impossibilitar o desligamento do serviço em virtude de dívida;

  2. - impede alguém de se desligar de serviços de qualquer natureza, mediante coação ou por meio da retenção de seus documentos pessoais ou contratuais.

§ 2º A pena é aumentada de um sexto a um terço se a vítima é menor de dezoito anos, idosa, gestante, indígena ou portadora de deficiência física ou mental.

Redação dada pela Lei nº 9.777/98.

CÓDIGO PENAL

  • Aliciamento de trabalhadores de um local para outro do território nacional

ART.207 - Aliciar trabalhadores, com o fim de levá - los de uma para outra localidade do território nacional:

Pena - detenção de um a três anos, e multa.

§ 1º Incorre na mesma pena quem recrutar

trabalhadores fora da localidade de execução do trabalho, dentro do território nacional, mediante fraude ou cobrança de qualquer quantia do trabalhador, ou, ainda, não assegurar condições do seu retorno ao local de origem.

§ 2º A pena é aumentada de um sexto a um terço se a vítima é menor de dezoito anos, idosa, gestante,

indígena ou portadora de deficiência física ou mental.

*Redação dada pela Lei nº 9.777/98.

  1. - CONCLUSÃO

A decisão da Justiça Federal do Maranhão, ao condenar Gilberto Andrade pelos crimes de redução à condição análoga à de escravo, ocultação de cadáver e aliciamento de trabalhadores é perfeitamente condizente com o que foi explicitado tanto sobre as teorias de Karl Marx quanto de Habermas. Com as terias de Karl Marx porque a decisão reconheceu a exploração e a condição sub-humana e de mera mercadoria à qual estavam submetidos aqueles trabalhadores, beneficiando unicamente o proprietário da fazenda Bonsucesso: Gilberto Andrade. Com a teoria de Habermas porque reconheceu aqueles 35 trabalhadores, submetidos à condição análoga à de escravo, como detentores de direitos humanos, e com liberdade de poderem recorrer a um tribunal para assegurarem seus direitos, que são positivados na Constituição.

REFERÊNCIAS

Portaria do MTE cria cadastro de empresas e pessoas autuadas por exploração do trabalho escravo. Disponível em: <http://portal.mte.gov.br/trab_escravo/portaria-do- mte-cria-cadastro-de-empresas-e-pessoas-autuadas-por-exploracao-do-trabalho- escravo.htm>. Acesso: 15 de julho de 2014.

THEONÓRIO, Iberê. Trabalhador escravo é torturado com ferro quente no Pará.

Disponível em:

<http://reporterbrasil.org.br/2008/02/trabalhador-escravo-e-torturado-com-ferro-quente- no-para/>. Acesso em: 15 de julho de 2014.

Fazendeiro que marcou trabalhador a ferro é condenado por escravidão. Disponível em:

<http://reporterbrasil.org.br/2008/05/fazendeiro-que-marcou-trabalhador-a-ferro-e-

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<http://manifestzine.blogspot.com.br/2009/05/o-trabalho-alienado-segundo-karl- marx.html>. Acesso: 17 de julho de 2014.

HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. Volume I. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,1997. p. 671.

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Sobre os autores
Thamires Sunamita

Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Piauí - UFPI

Informações sobre o texto

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