UMA REPRESENTAÇÃO CRIMINAL CONTRA O PRESIDENTE DA REPÚBLICA

29/01/2021 às 17:04
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O ARTIGO DISCUTE SOBRE RECENTE FATO CONCRETO ENVOLVENDO REPRESENTAÇÃO CONTRA O ATUAL PRESIDENTE DA REPÚBLICA.

UMA REPRESENTAÇÃO CRIMINAL CONTRA O PRESIDENTE DA REPÚBLICA

Rogério Tadeu Romano

I – O FATO

Segundo o Estadão, um grupo de ex-integrantes da cúpula da Procuradoria-Geral da República (PGR) pediu no dia 29 de janeiro do corrente ano que o procurador-geral da República, Augusto Aras,  apresente uma denúncia contra o presidente Jair Bolsonaro por conta de sua atuação no enfrentamento da pandemia do novo coronavírus.

“Jair Bolsonaro sempre soube das consequências de suas condutas, mas resolveu correr o risco. O caso é de dolo, dolo eventual, e não culpa”, afirmam o ex-procurador-geral da República Claudio Lemos Fonteles e o ex-procuradores Federais dos Direitos do Cidadão Deborah Duprat, Alvaro Augusto Ribeiro Costa e Wagner Gonçalves.

O documento também é assinado pelo subprocurador-geral da República aposentado Paulo de Tarso Braz Lucas e pelo desembargador aposentado Manoel Lauro Volkmer de Castilho.

Eles apontam que as atitudes de Bolsonaro configuram crime de epidemia previsto no artigo 267 do Código Penal, que prevê pena de 10 a 15 anos de reclusão. A pena pode ser aplicada em dobro se resultar em morte.

“A aposta de disseminação do vírus como estratégia de enfrentamento à pandemia fica mais evidente após entrevista por ele concedida à rádio Tupi, em 17 de março, onde afirma: ‘O que está errado é a histeria, como se fosse o fim do mundo. Uma nação como o Brasil só estará livre quando certo número de pessoas for infectado e criar anticorpos’”, destacam os ex-procuradores.

“Em atenção ao princípio da eventualidade, requerem que, caso se entenda pela não tipificação do crime de epidemia, as condutas criminosas acima narradas sejam enquadradas nos artigos 132 (perigo para a vida ou saúde de outrem), 268 (infração de medida sanitária preventiva), 315 (emprego irregular de verbas ou rendas públicas) e 319 (prevaricação)”.

Desde já, lembro que o crime previsto no artigo 315 do Código Penal para a sua configuração depende da necessária existência de lei disciplinando a gestão financeira e, principalmente, estabelecendo as vedações. Evidentemente, as leis orçamentárias próprias (lei orçamentária anual, plano plurianual e lei de diretrizes orçamentárias) estabelecem determinações e proibições específicas. A lei Complementar n. 101/ 2000, quando disciplina a geração de despesa, estabelece que a “ação governamental que resulte no aumento de despesa deve ser acompanhada de declaração de que o aumento tem adequação orçamentária e financeira com a lei orçamentária anual e compatibilidade com o plano plurianual e com a lei de diretrizes orçamentárias”. Sendo assim, é indispensável que exista lei regulamentando a aplicação dos recursos orçamentário-financeiros: não pode ser qualquer lei, por certo, mas somente a lei orçamentária, referida no art. 165§ 5º, da constituição federal. Logicamente, não se pode desconhecer que além dessa lei orçamentária existem leis especiais que vinculam a aplicação de determinados recursos, como ocorrem com algumas taxas, tarifas, contribuição social, enfim, tributos diversos com determinações específicas. A leia que s refere o texto legal deve ser considerada no sentido substancial, afastando, dessa forma, eventuais prescrições em decretos que regulamentem outros atos administrativos.

II – O CRIME DE EPIDEMIA

Será caso de examinar o artigo 267 do Código Penal, que trata o crime de epidemia.

 

Determina o artigo 267 do Código Penal:

Art. 267 - Causar epidemia mediante a propagação de germes patogênicos.

Pena: Reclusão, de 10 (dez) a 15 (quinze) anos.

Parágrafo 1º: se do fato resulta morte, a pena é aplicada em dobro

Parágrafo 2º: No caso de culpa, a pena é de detenção, de 1 (um) a 2 (dois) anos, ou, se resulta morte de 2 (dois) a 4 (quatro) anos.

 

Epidemia, como explicou Guilherme de Souza Nucci (Código Penal Comentado, 8º edição, pág. 959) significa uma doença que acomete, em curto espaço de tempo e em determinado lugar, várias pessoas.

 

O objeto do crime é a incolumidade pública, considerando-se o perigo decorrente da difusão de epidemias, que põem em risco à saúde de indeterminado número de pessoas.

Trata-se de um crime de perigo para a incolumidade pública, perigo que se presume de forma absoluta. Para Guilherme de Souza Nucci (Código Penal Comentado, 8º edição, pág. 960) trata-se de crime de perigo comum concreto, mas há posição oposta, como a de Delmanto e outros (Código Penal Comentado, pág. 486), para quem é crime de perigo abstrato. Mas o tipo exige que o agente provoque alguma doença. No mesmo sentido da posição de Nucci, tem-se a lição de Luiz Régis Prado (Código Penal anotado, pág. 823).

Heleno Cláudio Fragoso (Lições de Direito Penal, parte especial, volume II, 5º edição, pág. 199) vê também a existência no delito de epidemia de um crime de dano, já que a epidemia constitui em si mesmo evento lesivo da saúde pública.

De toda sorte, a presunção de perigo funda-se na possibilidade notável de difusão da moléstia.

O crime é comissivo e, de forma excepcional, omissivo impróprio ou comissivo por omissão, quando o agente tem o dever jurídico de evitar o resultado . Magalhães Noronha (Direito Penal, volume IV, pág. 5) e ainda Delmanto e outros (Código Penal Comentado, pág. 486) observam que pode haver um delito passivo de cometimento na forma omissiva: quando o agente tem o dever jurídico de impedir o resultado.

O delito é instantâneo.

Sujeito ativo do crime pode ser qualquer pessoa e o sujeito passivo é a coletividade.

O tipo objetivo do crime em discussão consiste em causar epidemia, mediante a propagação de germes patogênicos. Está excluído o tipo penal se a propagação se der por qualquer outro meio.

O modo pelo qual a ação de propagar (espalhar, difundir, reproduzir) se pratica, é irrelevante.

Germes patogênicos, como dito na Exposição de Motivos ministerial do Código Penal Italiano, são todos os microrganismos (vírus, bacilos, protozoários), capazes de produzir uma moléstia infecciosa. São os micro-organismos capazes de gerar doenças, como os vírus e as bactérias, dentre outros.

 

O crime se consuma pela superveniência da epidemia que não se refere, como ensinou Heleno Cláudio Fragoso, à luz das conclusões de Manzini, a qualquer moléstia infecciosa e contagiosa, mas somente àquela suscetível de difundir-se na população, pela fácil propagação de seus germes, de modo a atingir, ao mesmo tempo, grande número de pessoas, com caráter extraordinário. Deve se tratar de moléstia humana.

Diverso das epidemias são as endemias, que são moléstias que atingem determinadas regiões e que se devem a causas ambientais.

O tipo subjetivo é o dolo especifico, bastando o dolo eventual, de forma que o agente assuma o risco de produzir a epidemia.

O objeto material é o germe patogênico. O objeto jurídico do crime é a saúde pública.

Resultado Qualificador: De acordo com o parágrafo 1º do art. 267 do CP, se o fato resulta morte, a pena é aplicada em dobro o resultado morte é imputado ao agente a título de culpa, na maioria das hipóteses, culpa consciente.

Modalidade Culposa: O tipo culposo se caracteriza pela inobservância do cuidado objetivo necessário, dando causa ao evento se da conduta culposa resulta morte, o crime é qualificado pelo resultado. O delito de epidemia é material.

Ação Penal: A ação penal é pública incondicionada.

 

III – O CRIME DO ARTIGO 132 DO CP

 

Há um tipo genérico para o caso, previsto no artigo 132 do CP:

Art. 132 - Expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente:

Pena - detenção, de três meses a um ano, se o fato não constitui crime mais grave.

Parágrafo único. A pena é aumentada de um sexto a um terço se a exposição da vida ou da saúde de outrem a perigo decorre do transporte de pessoas para a prestação de serviços em estabelecimentos de qualquer natureza, em desacordo com as normas legais. (Incluído pela Lei nº 9.777, de 1998)

Esse tipo é válido para todas as formas de exposição da vida ou de terceiros a risco de dano, necessitando da prova da existência do perigo, para configurar-se.

O sujeito ativo pode ser qualquer pessoa e o sujeito passivo deve ser pessoa certa.

O crime exige dolo de perigo.

O risco há de ser palpável de dano voltado a pessoa determinada. A conduta, como explicou Guilherme de Souza Nucci (Código pena comentado, 8ª edição, pág. 632), exige, para configurar este delito, a inserção de uma vítima certa numa situação de risco real – e não presumido – experimentando uma circunstância muito próxima ao dano. Há um perigo concreto. O dano é iminente, mas o perigo é atual.

Como tal, trata-se de crime de perigo concreto (delito que exige prova de existência do perigo gerado para a vítima) e exige a forma comissiva.

Quanto a questão do transporte público, que envolve a edição da Lei 9.777, de 29 de dezembro de 1998, a questão envolve os proprietários de veículos que promovem o transporte de trabalhadores sem lhes garantir a necessária segurança.

Trata-se de crime de menor potencial ofensiva caso não constitua crime mais grave. Ora, trata-se de crime subsidiário, pois somente será utilizado quando outra mais grave deixa de se concretizar. Assim se houver tentativa de homicídio, aplicam-se as regras atinentes a esse crime contra a vida.

IV – O CRIME PREVISTO NO ARTIGO 268 DO CP

 

Será ainda necessário analisar o artigo 268 do CP. Em diversas ocasiões, tem sido sistemática a presença do presidente da República, em público, provocando aglomerações, incentivando as pessoas a se comportarem como ele, ou seja: sem usar a máscara e tomar as medidas de distanciamento.

Determina o artigo 268 do Código Penal:

Art. 268 - Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa:

Pena - detenção, de um mês a um ano, e multa.

Parágrafo único - A pena é aumentada de um terço, se o agente é funcionário da saúde pública ou exerce a profissão de médico, farmacêutico, dentista ou enfermeiro.

Sujeito ativo do crime pode ser qualquer pessoa.

O elemento subjetivo é o dolo de perigo, ou seja, a vontade de gerar um risco não tolerado a terceiros. Não se exige o dolo especifico.

O que é determinação do Poder Público? É ordem ou resolução dos órgãos investidos de autoridade para realizar as finalidades do Estado. Trata-se de norma penal em braço, dependente de que venha a complementá-la para que se conheça o seu real alcance.

É certo que essa determinação do Poder Público deve voltar-se à introdução (ingresso ou entrada) ou à propagação (proliferação ou multiplicação) de doença contagiosa.

O bem jurídico tutelado é a saúde pública.

Para o caso a Lei nº 13.979/2020, que prevê várias medidas para evitar a contaminação ou a propagação da doença, destacando-se o isolamento, a quarentena e a realização compulsória de exames médicos, testes laboratoriais, vacinação e tratamentos médicos específicos, é a fonte normativa para a matéria. Desobedecida pode gerar conduta criminal inscrita no artigo 268 do Código Penal.

Mesmo que o sujeito não tenha certeza de estar contaminado, mas aceita a hipótese, e transita normalmente por locais públicos, assumindo o risco de transmitir a doença, cometerá o ilícito com dolo eventual.

Está aí esse perigoso contagioso que exige para os casos concretos aplicação da norma penal específica.

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É crime comum, formal (que não exige para a sua consumação resultado naturalístico). Havendo dano ocorre o exaurimento. É crime instantâneo, de perigo comum, unissubjetivo.

É crime que admite a tentativa.

O parágrafo único daquele artigo 268 apresenta causas de aumento.

É crime que admite a transação, tal como previsto na Lei nº 10.259, de 12 de julho de 2001.

 

A ação penal é pública incondicionada.

O núcleo do crime é infringir, que possui a significação de violar, transgredir, desrespeitar, desobedecer. O que se pune é a conduta de infringir determinação do Poder Público destinada a introdução ou propagação da doença contagiosa.

Como dito trata-se de lei penal em branco que se completa com a existência de outro ato normativo. Para o caso há esse ato normativo, embora tenha-se entendido que a portaria não teria força fora dos limites da Administração.

Poderá o Executivo Estadual, uma vez que a matéria de saúde pública envolve competência concorrente entre as unidades federativas, editar decreto trazendo medidas de poder de polícia na matéria e complementando as providências traçadas no artigo 268 do Código Penal.

 

 

V   – O CRIME DE PREVARICAÇÃO

Por fim, como já disse em outras oportunidades, deve ser analisado o crime de prevaricação.

Prevaricar é a infidelidade ao dever de oficio. É o descumprimento de obrigações atinentes à função exercida.

Na forma do artigo 319 do Código Penal, de 3(três) maneiras o agente poderá realizar o delito. Duas delas de natureza omissiva(retardando ou omitindo o oficio). Outra, de feição comissiva, praticando ato contrário a disposição expressa de lei.

O fato pode ser objeto, por certo, além de responsabilidade no âmbito penal, de condenação no campo civil da improbidade, à luz dos artigos 11(violação de lei ou de princípio) e 12, III, da Lei n. 8.429/92.

O elemento subjetivo é o dolo genérico ou especifico. O primeiro consiste na vontade livremente endereçada à realização de qualquer das condutas referenciadas na norma. O dolo específico consiste na finalidade de o funcionário satisfazer interesse ou sentimento pessoal.

Se há interesse pecuniário o crime é de corrupção passiva.

Na forma comissiva pode ocorrer tentativa.

O crime é de menor potencial ofensivo.

Destaco aqui que a jurisprudência no sentido de que não se pode reconhecer o crime de prevaricação na conduta de quem omite os próprios deveres por indolência ou simples desleixo, se inexistente a intenção de satisfazer interesse ou sentimento pessoal(JUTACRIM 71/320) e ainda outro entendimento no sentido de que ninguém tem a obrigação, mesmo o policial, de comunicar à autoridade competente fato típico a que tenha dado causa, porque nosso ordenamento jurídico garante ao imputado o silêncio e até mesmo a negativa de autoria(RT 526/395).

VI – A ATUAÇÃO DO PROCURADOR GERAL DA REPÚBLICA

O procurador-geral da República não pode recursar-se a ajuizar ação penal pública quando o texto da lei o obrigue. Não se trate de conveniência ou oportunidade, mas de obrigatoriedade. Isso porque, como aduziu Hugo Nigro Mazzilli (O inquérito civil, pág. 102) estará a ação do membro ministerial iluminada pelo princípio da obrigatoriedade, ou seja, identificando uma lesão para cujo combate está a Instituição legitimada, surge o dever de agir.

Desta forma não se admite que o Ministério Público, identificando uma hipótese em que a lei lhe imponha o dever de agir, mesmo assim se recuse a fazê-lo: nesse sentido, sua ação é um dever. No caso da investigação penal, da ação penal pública, embora tenha o membro do Parquet ampla liberdade funcional, sua atuação é estreitamente regrada, já que, identificando uma hipótese em que a lei lhe imponha a atuação, não pode abster-se do dever de agir.

Se não o faz, incide nos crimes previstos no artigo 40 da Lei de impeachment, em especial, nos incisos II, III, IV.

Poderá, de pronto, mandar arquivar o pedido por entender genérico e incabível ou ainda, com informações prestadas ao Supremo Tribunal Federal, abrir um procedimento preliminar para apuração. Poderá, desde já, pedir à Polícia Federal que investigue o fato ouvido o STF.

O que não pode é se omitir.

 

 

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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