A Cultura dos Senhores Advogados

18/02/2021 às 07:31
Leia nesta página:

A crítica, se arma a bom efeito, é sempre louvável; é porém escusada, quando injusta e malévola. Constitui gênero de vício de julgamento estender a toda a classe o conceito depreciativo sobre apenas alguns de seus membros.

A Cultura dos Senhores Advogados

I – Desencantados com o nível cultural dos que abraçam uma das mais nobres das profissões, em cujo número se conta a Advocacia([1]), críticos veementes (e quase sempre abalizados) têm vindo a público para verberá-lo. De férula em punho, arrolam as causas que, a seus avisos, responderiam pelo despreparo profissional: a eversão dos primeiros valores do homem, num século que sacrifica precipuamente ao materialismo; a angústia de tempo, que lhe não deixa vagar nem ócio para as coisas do espírito; a notória degradação do currículo das escolas; a deficiência do ensino universitário, etc. Fatores são estes que, deveras, nenhum estudioso remete à sombra quando considera nos motivos que autorizam a opinião, muita vez desfavorável, da ciência e ilustração dos bacharéis. E, pois que se diagnosticou a “mazela” (que outro nome não merece a carência dos cabedais científicos), será força indicar do mesmo passo os meios de sua cura e erradicação. Este, verdadeiramente, é o estilo de obrar do crítico sensato e benfazejo, o teor de proceder do que traz consigo a centelha que outrora inflamava o peito aos valorosos educadores (não só críticos), os quais a Humanidade hoje reverencia com chamar-lhes, muito à própria e gravemente, apóstolos; que o foram: apóstolos da Civilização.

II –  Longe deste augusto padrão, no entanto, parece ficou a censura que, em jornal de grande circulação no País([2]), certo juiz fez aos advogados que atuam nos pretórios da Justiça Criminal. (Pedem razões de vária ordem lhe conservemos o nome debaixo de espesso véu: à uma, porque não está excluída a hipótese de lhe haver recolhido mal as palavras o jornalista que as publicou; à outra, porque, ainda que as tivesse dito, bem pode ser que, havendo-as lido depois, em letras redondas, já lhes não afiançasse, no recôndito de sua consciência, o modo como as tirou à luz do dia: à derradeira, porque o conceito em que, desde a mais alta antiguidade, foram havidos os críticos([3]) — tomado o vocábulo à má parte —, não quadra nunca à pessoa do juiz, cujo timbre mais precioso ninguém ignora foi sempre a serenidade).

    Vindo agora ao ponto. O que disse o magistrado, a propósito dos problemas que obstam à boa administração da justiça, foi que “o nível dos advogados criminais é péssimo. Dissera-o com assombro da gente do foro, a qual, mais que um rude epigrama, interpretou essa desprimorosa referência por injúria formal contra a verdade e injustiça manifesta aos criminalistas. Estes, como era forçoso receberam-na com profunda consternação; mas, habituados já à poeira de seu caminho — afinal, não houve até quem lhes quisesse cortar a língua?!([4]) —, deram logo de mão às acerbas invectivas. Contudo, não lhes sofreu o ânimo que antes não retorquissem: a) que não era de crítico assisado generalizar afirmações pejorativas; b) que, houvesse alguém de notar defeitos em outrem, que o fizesse com a atenção devida à sua pública reputação; c) que, de necessidade, fora injusta a crítica só empenhada em esquadrinhar deficiências, sem exaltar virtudes.

III –    Ao criticar os indivíduos de uma classe, é de mau exemplo arrojar-se alguém a ofendê-la em sua totalidade. Concedendo-se que a censura procedesse em relação a uns poucos, decerto não houvera de prevalecer quanto à maioria. E tratar (na verdade, maltratar) igualmente os desiguais passa por gênero grande de injustiça. Repugna também à consciência crítica bem formada isso de, na apreciação de eventuais defeitos que se achem num indivíduo, calar muito de estudo suas qualidades. Ainda: para ser equânime e reto, não deverá o crítico subtrair ao aplauso dos sujeitos honestos os fatos e as notícias relativos à instituição que pretende censurar. É que, da mesma sorte que os homens, também elas nunca deixarão de ser aquilo que foram com suas misérias e grandezas. Dito da Advocacia Criminal, isto importaria a evocação de páginas imortais de abnegação e sacrifícios. Interrogue a História aquele que ainda não conhece as excelências da “ínclita profissão”, e ela haverá de responder-lhe com a lição do imenso Malesherbes, um dos três defensores de Luís XVI, de França. Herói e mártir da profissão, teve o mesmo fim que o seu real constituinte: “pagou com a vida a honra de ter defendido seu rei”([5]).

       Por fim, está no modo de fazê-la a alma e o egrégio merecimento da crítica; há de conformar-se com os princípios da moral social e refletir os sentimentos próprios do coração probo e virtuoso([6]).

IV –    Alguma insuficiência, que a crítica implacável se afadigue em surpreender nos advogados criminalistas([7]), não será outra coisa que o comum tributo que os mortais se obrigam a recolher, à conta de sua própria condição, que nada quer perfeito e acabado.

       E, se arguirem de suspeita esta defesa, porque deduzida por praticante do ofício, a argumentar “pro domo sua”, então seja permitido que falem pelos criminalistas dois titãs do Direito, que não foram só exímios advogados, mas também juízes modelares: Eliézer Rosa e Alfredo Tranjan. Escreveu o primeiro, elegante e sabiamente: “Há no semblante austero dos grandes advogados criminais uma discreta sombra de amargura que atesta a convivência diuturna com a angústia alheia, que neles se imprime como a verônica inapagável da profissão. Eu lhes vi a muitos a cabeça aureolada pelo forte esplendor da glória e do saber. Eu vi-os passar soberbos na humildade dos sábios e dos bons” (Eliézer Rosa, Romeiro Neto, O Último Romântico da Advocacia Criminal, 1984, p. 21). Alfredo Tranjan, citando Viviani, discursou: “O que faz a grandeza de nossa profissão é que, quando abraçamos uma causa justa, nós a defendemos contra a ignorância da multidão, contra a paixão do povo, contra a tirania dos poderosos. O advogado é o primeiro homem acima de todos, em volta de nós, capaz de fazer ouvir, mesmo acima dos clamores da multidão, as palavras de justiça e verdade” (A Beca Surrada, 1994, p. 309).

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

       Donde se mostra claro que aqueles mesmos que foram, segundo craveira mesquinha, indiscriminadamente apodados de péssimos, distinguem-se, no juízo de dois varões da primeira eminência, pelo “esplendor da glória e do saber” e pelo ideal de “justiça e verdade”.

       Ao pio e avisado leitor já não fica difícil aquilatar de que lado desce a concha da balança!

Notas


([1])        À Advocacia chamou Voltaire “a mais bela das profissões humanas”. “Le plus bel état du monde” (apud Carvalho Neto, Advogados, 1946, p. 83). Louvor é este que sobe de ponto quando sabemos que seu autor “foi talvez a primeira cabeça, o mais fecundo gênio do século XVIII” (Ernesto Carneiro Ribeiro, Tréplica, 1923, p. 666).

([2])        Folha de S. Paulo, 27.9.95.

([3])        Vem aqui a pelo o instrutivo conto de Boccalini: “Tendo certo crítico famoso ajuntado todos os defeitos de um grande poeta, fez deles presente a Apolo. Este deus os recebeu graciosamente, e determinou recompensar o autor de um modo conveniente ao trabalho que tivera. Com este intento pôs-lhe presente um pouco de trigo por alimpar, e ordenou-lhe que separasse a palha, e a pusesse à parte. Começou o crítico a trabalhar com muita indústria e diligência; e depois de ter feito a separação, Apolo lhe deu a palha pelo seu trabalho” (apud Cardeal Saraiva, Obras Completas, 1883, vol. X, p. 154).

([4])        Napoleão: “Quero que se possa cortar a língua ao advogado, se dela usar contra o governo” (apud Rui, Obras Completas, vol. XXXVIII, t. II, p. 57).

([5])        Cf. Romeiro Neto, Fora do Júri, 1970; p. 98.

([6])        Sentenciou o erudito Cardeal Saraiva “não ser jamais decente que o homem bem nascido e bem educado note ou repreenda com expressões de desprezo, com ditérios picantes e com amargosa sátira qualquer gênero de defeito que observe nos seus semelhantes” (op. cit., p. 159).

([7])        Advogado criminalista — ensinou o reputado Prof. Napoleão Mendes de Almeida (a quem pedimos nos soltasse a dúvida) — é a designação correta daquele que professa a Advocacia Criminal. Eliézer Rosa, jurista de prol e escritor de exemplar vernaculidade, prefere a expressão advogado criminal. “Grammatici certant!

Sobre o autor
Carlos Biasotti

Desembargador aposentado do TJSP e ex-presidente da Acrimesp

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos