LUGAR DE FALA É MUTISMO IMPOSTO AO OUTRO

19/02/2021 às 13:17
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Crítica sobre a questão do chamado "Lugar de Fala" diante da Liberdade de Pensamento e Expressão.

Dentre os variados clichês, expressões enfáticas sem fundamentação, gritos de guerra erigidos a conclusões apodíticas, eis que surge o famigerado “lugar de fala”.

Agora se tornou comum pretender invalidar qualquer discurso discordante mediante o artifício da alegação de que o interlocutor não tem “lugar de fala” a respeito deste ou daquele assunto ou aspecto, normalmente tendo por base alguma questão identitário-comunitarista.

Então brancos não podem tocar em qualquer assunto que envolva negros, homens não podem tocar em qualquer assunto que diga respeito a mulheres, heterossexuais nada podem falar a respeito de questões que envolvam homossexuais ou mesmo a respeito de qualquer tema sobre gênero e assim por diante numa espiral de silêncio infinita.

Essas coisas nos levam a pensar como poderia a ciência médica ter se desenvolvido na área da ginecologia sem a participação de um homem sequer, bem como que até hoje, seria de se pensar em cassar as licenças de todos os ginecologistas homens, bem como de todas as proctologistas mulheres. Gente como José Porfírio de Carvalho, Marechal Rondon, Leonardo, Cláudio e Orlando Villas-Boas, deveriam ter sido impedidos de criar coisas como o “Serviço de Proteção aos Índios”, germe da atual FUNAI ou de trabalhar ali como o primeiro deles, destacando-se na defesa dos índios e na denúncia de seus problemas. Também todos os abolicionistas históricos no Brasil e no mundo, deveriam ter permanecido calados até que dentre os negros surgisse alguém com lugar de fala para acabar com a barbaridade da escravidão. Para tratar de surdos, um médico ou um fonoaudiólogo teria de ser surdo? Talvez não para tratar, mas para escrever ou estudar sobre a surdez em seus mais variados aspectos. O crítico de arte tem de ser artista? O comentarista esportivo tem de ser atleta? Somente juízes podem criticar ou elogiar o Judiciário? Somente policiais podem falar sobre violência policial ou segurança pública? Crianças deveriam escrever sobre pedagogia, serem pediatras etc., já que a experiência vivida foi certamente por demais perdida na noite do tempo pelo atual adulto?  E pior, somente criminosos podem julgar outros criminosos?  Será?

É óbvio que não. Mas, as obviedades hoje têm de ser explicadas, provadas e fundamentadas à exaustão. Embora se saiba há muito tempo que o notório não precisa ser provado, isso tem sido olvidado e nos mais diversos temas se tem cedido espaço para teorizações desprovidas de qualquer vínculo com o mundo real, absolutamente contraditórias e até autofágicas.

O exemplo do “lugar de fala” é eloquente. Ora, se não se pode falar ou manifestar a respeito de certos temas, eis que estes ficam reservados aos grupos identitários respectivos, sob a alegação de que o falante ou manifestante não tem condições de se expressar com a devida vivência ou experiência do outro que pertence ao dado grupo, uma primeira consequência é que, na verdade, todos deveríamos ter nascido mudos e permanecido analfabetos para que não viéssemos a nos manifestar a respeito de absolutamente nada. Isso porque vivenciar a experiência do outro é algo que somente pode existir no bojo de uma teoria desapegada totalmente do mundo real. Ninguém vive a experiência do outro, seja no aspecto grupal seja individual. Isso é impossível. Um negro não pode se arvorar então a dizer que é capaz de falar ou defender qualquer ideia, não em face de um branco, mas em face de qualquer outro indivíduo, ainda que negro. A experiência não é grupal, ela é um testemunho humano individual e intransmissível. No mesmo passo uma mulher não poderia dizer nada a respeito das vivências de outra mulher ou de um homem e assim por diante. Cada um tem sua particular história, vivência, experiência que somente pode ser vista desde fora pelos outros, somente pode ser percebida por observação, como narrativa, jamais interiorizada em sua totalidade.

Na realidade, longe de ensejar uma fala qualificada, o chamado “lugar de fala” empobrece, reduz à miserabilidade a experiência humana intersubjetiva e intergrupal. Ao focar-se nas diferenças ou como preferem muitos, na “diversidade” de maneira exacerbada, desprezam aquilo que permite a comunicação, o discurso e o debate entre os seres humanos, ou seja, suas experiências e vivências comuns fundadas em sua natureza humana que não cede jamais a distinções ou discriminações raciais, sexuais, de orientação sexual, étnicas etc. Sem uma base comum, sem um acordo inicial sobre as condições do debate, não havendo o encontro de qualquer espécie de sistema comunicativo, ideológico (no sentido de ideias) comum, é impossível qualquer relação entre pessoas ou grupos. No máximo se consegue criar um “diálogo de surdos” que gritam entre si e não sabem linguagem de sinais.

O artifício em estudo é tão contraditório que é autofágico. Ao pretenderem os defensores do chamado “lugar de fala” impor o silêncio aos outros, deveriam, acaso levassem a sério sua ideologia, emudecerem a si mesmos. Ora, são grupos identitários, normalmente considerados como oprimidos e minoritários aos quais se atribui o “lugar de fala” a seu próprio respeito, vedando quaisquer manifestações externas. Pois bem, esses grupos, para falaram ou exporem suas condições, reivindicações etc., dependem da descrição da relação entre opressores/oprimidos; privilegiados/excluídos. Mas, não são eles ocupantes de apenas um dos polos, os quais não tem qualquer vivência pessoal da condição oposta? Como podem então ter “lugar de fala” para se manifestarem acerca dos chamados opressores e privilegiados? Aqui vai uma dose de ironia, mas não haveria motivos ocultos para que alguns fossem opressores? Eles, os opressores, não teriam suas razões particulares insondáveis pelos oprimidos que não teriam “lugar de fala” para tratar desse assunto? Note-se a absurdidade a que se pode chegar quando se acatam teorias tresloucadas. O “lugar de fala” daqueles que defendem tal tese, se levado a sério, eliminaria todo o direito de pensamento e expressão de seus próprios criadores. A criatura devora o criador.

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A construção social (e isso é realmente uma pura construção social alienada) do chamado “lugar de fala” não passa de um instrumento erístico autoritário que tem por fim calar o adversário numa discussão, sem dar a mais mínima atenção aos seus argumentos. Trata-se de um suposto pré-requisito formal inventado para o ingresso em um debate, que, na verdade, elimina totalmente a possibilidade de qualquer debate e cria bolhas de isolamento grupais num fascismo identitário absurdo.

A proliferação e o crédito a esse tipo de construção artificial somente conduz à divisão entre as pessoas, à polarização absoluta e, num momento posterior, à inevitável violência. Isso porque se os seres humanos não podem se comunicar e discutir civilizadamente, o único recurso será o conflito violento entre grupos isolados, fechados em seus nichos de interesses e idiossincrasias. O “lugar de fala” é um instrumento de mutismo do outro por meio de uma teorização formal insustentável diante da realidade, o qual, na verdade, tem por finalidade a conquista de poder inconteste e nada mais que isso. Mas, o “lugar de fala” não serve sequer para impor um poder absoluto sobre os outros, isso na medida em que pressupõe uma polifonia incompreensível que só pode conduzir a uma espécie de guerra de todos contra todos, no seio de uma anarquia conflituosa e sangrenta.

Enfim, o tal “lugar de fala” nos desvela um futuro distópico. É um “não-lugar”, é o reino do negativo e da destruição, uma espécie de maldição similar à imagem da conhecida “Torre de Babel” numa versão potencialmente muito mais confusa e violenta.

Sobre o autor
Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia Aposentado. Mestre em Direito Ambiental e Social. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós - graduação e cursos preparatórios. Membro de corpo editorial da Revista CEJ (Brasília). Membro de corpo editorial da Editora Fabris. Membro de corpo editorial da Justiça & Polícia.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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